Por Camila Fróis.
“O São Francisco era fundo, que era até escuro, tinha lugar de 20 metros de fundura. Naquele tempo, por falta do conhecimento, desmataram as laterais do rio, derrubando as beiradas. Agora num tem mais as raízes pra segurar a terra e foi tudo desabando e desabando e desabando e entupindo, desabando e entupindo, até ficar assim. Hoje tem lugar que você pode atravessar de pé no rio. Moço, isso aqui ‘diferençou’ foi muito”.
As memórias do sanfoneiro Amarante dos Passos, natural da pequena cidade Manga, no sertão mineiro, foram parar na telona em uma das sessões da 13ª edição do “Cinema no rio”, um projeto que há 8 anos leva a sétima arte para as comunidades às margens do Velho Chico.
No mesmo vídeo exibido ali na beira d’água, outro morador bem mais jovem, Florisvaldo dos Santos, de cerca de 30 anos, também testemunhava transformações rápidas no rio da sua infância. “Quando era criança, a gente só brincava era no rio, banhava na praia, não tinha outra coisa. (…) A gente montava na canoa e ia navegando e os peixes pulado. Ave Maria, era gostoso demais. O rio era bom porque tinha fartura”.
Sob a luz da lua, com a brisa do São Francisco no lugar do ar condicionado e geralmente com um casario secular empoeirado como cenário, as sessões do projeto já foram prestigiadas por mais de 200 mil espectadores em povoados desde a nascente até a foz do Velho Chico. Diante da tela, os ribeirinhos prestigiam os filmes de animação, longas e curtas metragens ficcionais e viajam no tempo ouvindo as próprias histórias sobre o São Francisco, registradas em minidocumentários gravados ali mesmo. Nos depoimentos, a nostalgia de grandes pescarias, da paisagem cercada por uma mata densa, das viagens em navios a vapor e das noites animadas por rodas de batuque iluminadas pelas lamparinas de azeite. As memórias são muitas e hoje estão registradas em um acervo de mais de 70 vídeos produzidos desde as primeiras expedições.
Quando idealizou o projeto, o produtor Inácio Neves já organizava sessões de cinema ao ar livre nas praças de Belo Horizonte, sua cidade natal. Resolveu, então, ir mais longe. Hoje, ele coordena a expedição que chega até vilas de pescadores, comunidades quilombolas e pequenos povoados do Velho Chico, muito distantes das salas de exibição dos shoppings centers. Em cada vilarejo ou cidade por onde passa, nos trechos entre Minas Gerais até Alagoas, a equipe do projeto realiza oficinas de fotografia, pesquisas culturais e grava os depoimentos como os do senhor Amarante, que assiste da janela de casa a deterioração inexorável de um rio que já foi a grande fonte de subsistência de sua comunidade.
À noite, os moradores, cineastas, jornalistas e antropólogos se reúnem todos em uma só plateia. Ao invés de peças pesadas usadas em projeções convencionais, a tela é inflável, muito mais fácil de montar e desmontar. Um grande amontoado de lona se transforma em uma tela de cinema de 10m x 7,5 em apenas 15 minutos. A pipoca é grátis e a fila é de perder de vista.
Além de promover o acesso às produções cinematográficas nacionais menos comerciais, Inácio explica que, hoje, a proposta da expedição é também valorizar as tradições regionais, o folclore, a musicalidade e todas as formas de cultura popular ribeirinha através do estímulo a apresentações locais antes do cinema.
Além disso, a ideia é trazer o foco para o São Francisco. “A gente viaja pelo rio, então não temos como ignorar o drama pelo qual ele está passando. Estamos entrevistando as pessoas, questionando sobre os problemas do rio e colocando isso na tela.”
Os peixes acabaram
Nos vídeos, o tema do fim dos peixes não escapa de nenhum depoimento. Em Matias Cardoso, Luis Mario Cardoso se lembra da época dos barcos transbordando depois das pescarias. “Tinha uns que pescavam mais. Chegavam aqui com a canoa cheia de peixe, mas tinha muito peixe mesmo. Juntava todo mundo da comunidade pra ir escamando, partindo limpando e salgando o peixe pra num perder… Hoje pescar um peixe aí é coisa trabalhosa.”, conta. Em Manga, Florisvaldo ressaltava não só a quantidade, mas o tamanho dos peixes fisgados. “Era surubim, dourado, curimatá. Eram peixes grandes, peixe de 10 kg, até de 20 kg a gente já pegou. Hoje em dia isso não tem mais. Você se aventura a descer o rio pra pegar o seu sustento, mas pode voltar sem nada”, explica o morador. “A gente acabou com a gente mesmo, porque a nossa maior riqueza era o rio”, emenda o morador reflexivo.
Florisvaldo tem razão quando sugere que o modo de ocupação das margens do rio pelos próprios ribeirinhos, sem a noção dos conceitos de sustentabilidade, colaborou com a sua deterioração. A mata ciliar era desmatada e a lenha era vendida para os navios a vapor e a área transformada em plantio de lavouras. Além disso, o período da piracema não era respeitado pelos pescadores e a pesca predatória foi estimulada pelo próprio governo.
Os fatores preponderantes para o esgotamento dos estoques pesqueiros e a redução significativa da vazão do rio, porém, tem a ver com projetos de grande impacto empreendidos pelo poder público. O engenheiro de pesca Eduardo Mota, hoje trabalha para a Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco – CODEVASF, que cuida dos projetos de revitalização do rio. Segundo ele, as barragens construídas ao longo do São Francisco (Sobradinho, Xingó, Itaparica, Paulo Afonso e Três Marias) comprometeram significativamente as condições de reprodução dos peixes e aceleraram o assoreamento do rio. Para o engenheiro, se a usina de Sobradinho tivesse sido projetada com escada ou elevadores de peixes, o impacto seria menor. Hoje, a solução paliativa é investir na reprodução artificial dos peixes. De acordo com o engenheiro, há 30 anos a Codevasf investe em tecnologias para propiciar a reprodução não só de espécies exóticas, como a tilápia, mas também de peixes nativas. Ainda assim, ele explica que é impossível repor os estoques naturais. “O médio São Francisco já foi uma das regiões mais piscosas do país”, ele lembra.
No livro “Flora das Caatingas do São Francisco”, o professor da Univasf, José Siqueira, que coordenou o trabalho de 100 especialistas que assinam a publicação, discorre sobre os ciclos econômicos responsáveis pela atual situação do rio. No capítulo “O inexorável fim do São Francisco”, ele aponta a repetição de políticas públicas desastrosas na bacia do rio, ressaltando as consequências da construção de grande porte sem tecnologias de minimização de impacto ao longo do rio. Ele explica que, apesar de serem responsáveis por 15% de toda energia consumida no Brasil, as barragens do São Francisco alteraram o fluxo de peixes do rio e a qualidade das águas, além de atingir diretamente várias comunidades inundadas.
“Antes da barragem de Sobradinho havia várias lagoas temporárias, altamente piscosas na região. Quase todas desapareceram, assim como povoados e cidades inteiras como Remanso, Casa Nova, Santo, Sé Pilão Aracado e Sobradinho”, afirma o autor. Ele confirma que devido à falta de um melhor estudo dos ecossistemas locais, o empreendimento inviabilizou a reprodução das espécies migradoras, como defende Eduardo Mota. Além do depoimento dos ribeirinhos, estudos científicos também apontam as consequências desse processo. Segundo Siqueira, a análise de dados de peixes coletados há quase 30 anos já indicava que, no trecho entre a Represa de Sobradinho e o Oceano Atlântico, não havia renovação de peixes de piracema, pois quase não existiam lagoas marginais.
Hoje, na tradicional Praça do Peixe em Petrolina (PE), a 700m da margem do Rio São Francisco (que já registrou 158 diferentes espécies de peixes), espécies amazônicas do Pará estão entre as mais comercializadas, devido à falta de peixes locais. “Isso simboliza a falência completa da economia pesqueira da região”, enfatiza.
Além do impacto na pesca, Siqueira conta que a barragem de Sobradinho é responsável pela evaporação de uma enorme quantidade de água do rio. “O lago de Sobradinho é uma das maiores aberrações criadas no período militar. Possui um imenso espelho d’água de baixa profundidade e altas taxas de evaporação de água, atingindo 250 m³/s, o que corresponde a mais de três vezes a vazão prevista no projeto de integração do São Francisco com bacias do nordeste setentrional”. Ele explica que essa evaporação representa ainda o volume necessário para o abastecimento anual de uma população de 144 milhões de habitantes. “Um exemplo concreto de desperdício”, conclui o autor.
Ao todo, José Siqueira participou de 212 expedições pelo Vale do São Francisco, entre julho de 2008 e abril de 2012 com uma grande equipe de pesquisadores, mapeando a flora do entorno do rio através de um projeto exigido pelo IBAMA para o licenciamento das obras da transposição do São Francisco. Depois das pesquisas, a equipe acabou produzindo o mais completo diagnóstico das mudanças provocadas pelo homem tanto nas águas do Velho Chico quanto na vegetação que o circunda.
Analisando a atual relação das comunidades com o rio, Siqueira não percebe uma mudança expressiva de postura. “Rico e pobre proprietários de terras nas margens do São Francisco lidam da mesma forma com o rio. Hoje, residências que valem meio milhão de reais e contam com alta tecnologia de segurança e mobiliário foram concebidas com sistema hidrossanitário arcaicos que contaminam os lençóis freáticos e o próprio rio. O uso tímido de energia solar e eólica e o raro reaproveitamento de água denotam uma percepção de que os recursos seriam inesgotáveis”. O professor também alerta sobre os impactos da agricultura intensiva no vale do São Francisco e a desertificação da caatinga.
Segundo ele, além de embasar pesquisas voltadas para tecnologias de recuperação desde bioma, os diagnósticos servem para nortear novas políticas públicas que prezem pelo desenvolvimento econômico com sustentabilidade. “Vamos fazer outra Sobradinho? Não. As cidades que ficaram debaixo d’água por causa dos represamentos do Rio São Francisco perderam histórias, vidas, sítios arqueológicos inteiros”, defende o professor.
“Em síntese, posso dizer que o caminho a ser seguido para viabilidade do São Francisco como modelo de desenvolvimento para outras regiões é a base científica sólida. Investir em recursos humanos, aporte de recursos financeiros para ciência, tecnologia e educação básica”, emenda.
Fotos: André Fossati
Fonte: O Eco.