Por Lidiane Alves do Nascimento e Marilúcia Mendes Ramos.
Este texto pretende refletir sobre a representac?a?o litera?ria da func?a?o social do velho na literatura africana, como guardia?o da memo?ria e da tradic?a?o, ao conservar o passado, interligando-o ao presente, no que respeita a? tradic?a?o dos conhecimentos aos po?steros e a? contribuic?a?o que esta significa na formac?a?o identita?ria dos mais novos.
Para tanto, faremos uma leitura dos contos africanos, a saber: Kahitu, Manga Verde e sal tambe?m, dos angolanos Uanhenga Xitu e Ondjaki, respectivamente, e Nas a?guas do tempo, do moc?ambicano Mia Couto .
Palavras-chave
Tradic?a?o. Memo?ria. A?frica. Literatura.
Primeiras considerac?o?es sobre a memo?ria
Ao remetermos a? abordagem da memo?ria em nosso estudo, temos em mira que as pesquisas concernentes a esta tema?tica recorrente no interesse de historiadores e estudiosos da literatura tornam-se relevantes a? medida que buscam investigar aspectos da cultura popular, da vida em comunidade, sublinhando ainda a identidade de um povo, ao atentar para seus costumes, religiosidade, tradic?o?es, enfim, nuanc?as que dizem respeito a? constituic?a?o social da memo?ria.
Percorrendo o passado e os meandros da valorizac?a?o da memo?ria para a constituic?a?o da histo?ria e da identidade de um povo, podemos reportar a?s civilizac?o?es antigas para entender a origem da histo?ria atrelada aos mitos. O terreno sobre o qual a histo?ria inicia seu trabalho perscrutador sera?, assim, sistematizado pelo aspecto mi?tico, sendo os mitos fornecedores de respostas para todas as perguntas, esclarecedores daquilo que no passado na?o pareceu compreensi?vel. Ocorre que os relatos mi?ticos emergidos com a tradic?a?o, fundada em aspectos religiosos, em costumes muito antigos, fornecem, ha? tempos, subsi?dios indispensa?veis para se compreender o que caracteriza, da? forma e garante o funcionamento a uma sociedade.
E? sabido que os mitos, as crenc?as, matizados por acervo religioso, histo?rico e, muita vez, imagina?rio, eram transmitidos via oralidade, ratificando, desta feita, o estabelecimento de uma tradic?a?o. A perpetuac?a?o desta, sua presentificac?a?o e/ou cristalizac?a?o no imagina?rio coletivo, divulgada atrave?s da oralidade, encontrara?, pois, vei?culo poderoso nos textos litera?rios, asseverando a estreita relac?a?o entre histo?ria e literatura.
As narrativas orais, ouvidas dos velhos1, na?o podem ser percebidas como invenc?o?es particulares, uma vez que mesmo se configurando como histo?rias pessoais, sa?o influenciadas, indubitavelmente, pela voz narradora, seu meio de interac?a?o, suas ordens morais, sociais e outros aspectos que tais. E? li?cito dizer que, pelo exerci?cio de contar e recontar histo?rias sustenta-se a cie?ncia do sujeito sobre si mesmo e sobre os outros com os quais interage em comunidade. Nesse sentido, Walter Benjamin (1980) entendera? a narrativa como transmissa?o de experie?ncias entre gerac?o?es, consoante o movimento coletivo de tradic?o?es, ao relacionar fatos narrados com fatos vivenciados, na?o sendo possi?vel conceber narrativa alijada da ideia de memo?ria. O narrador, incumbido do trabalho de rememorar, ainda que nos relate histo?rias marcadas por viso?es de mundo pro?prias e peculiares, transcende a memo?ria individual, sendo a memo?ria sempre coletiva e, portanto, social, formada, como se quer reiterar, na esteira do grupo a que pertence.
Um dos maiores estudiosos da memo?ria, Halbwachs (2006) impulsiona o seu cara?ter social, as refere?ncias exteriores, como a mola propulsora na acepc?a?o do tema. Para ele, na?o sendo inteiramente isolada e fechada, a memo?ria individual prove? o conhecimento da memo?ria coletiva, tendo em vista que “para evocar o pro?prio passado, em geral, a pessoa precisa recorrer a?s lembranc?as de outras, e se transporta a pontos de refere?ncia que existem fora de si, determinados pela sociedade” (HALBWACHS, 2006, p. 72).
Na evocac?a?o do depoimento da testemunha e do contexto referencial sobre o qual transitam o grupo e o indivi?duo que o atesta, como forma de reconstruir o que se chama memo?ria, Halbwachs (2006) tratou de distinguir entre “memo?ria histo?rica” e “memo?ria coletiva”, entendendo a primeira como reconstrutora dos elementos do presente da vida social e projetada sobre o passado reinventado, ao passo que a segunda cumpriria recompor magicamente o passado.
Acredita-se, no liame deste pensamento que corrobora a memo?ria coletiva, que o ato de recordar e? algo que se realiza em sociedade, pela presenc?a ou evocac?a?o, no chamamento a outros e a suas obras. E? preciso ressaltar, entrementes, que mesmo sob as bases de uma comunidade, sa?o os indivi?duos que se lembram e essa memo?ria individual representara? um, entre muitos pontos de vista possi?veis acerca da memo?ria coletiva. Nossas lembranc?as mais pessoais na?o podem prescindir da ambie?ncia coletiva onde estamos inseridos e, portanto, influenciados pelas suas transformac?o?es. Inferimos que a memo?ria individual, na?o podendo se engendrar isoladamente, se coaduna a?s lembranc?as de outros, na interac?a?o dia?ria com o grupo, em conversas e leituras que ajudam a interligar memo?ria pessoal e memo?ria social.
Em sua obra, ao propor uma distinc?a?o entre memo?ria coletiva e histo?ria, Halbwachs (2006, p. 100) lembra que a histo?ria procura compilar os fatos que ocuparam lugar na memo?ria dos homens, selecionando-os em manuais dida?ticos que utilizamos nas escolas, os que atendem a?s regras “que na?o se impunham aos ci?rculos dos homens que por muito tempo foram seu reposito?rio vivo”. A existe?ncia da memo?ria estaria, pois, condicionada a? sensac?a?o de que ela remonta a?s lembranc?as de um momento conti?nuo, de uma continuidade que a histo?ria intenta restabelecer, ao erigir uma ponte entre passado e presente. Mas, so? a memo?ria coletiva seria capaz de promover verdadeiramente essa continuidade, por na?o reter “do passado sena?o o que ainda esta? vivo ou e? incapaz de viver na conscie?ncia do grupo que o mante?m” (HALBWACHS, 2006, p. 102). Na memo?ria, presente e passado na?o se alijam tal como dois peri?odos histo?ricos distintos.
Ecle?a Bosi (2004), em seu importante estudo Memo?ria e sociedade: lembranc?as de velhos, ao remeter a? func?a?o social do velho de rememorar, aconselhar, como um elo entre o passado e o porvir, reclama o estilhac?amento da lembranc?a na sociedade capitalista, que se utiliza do velho apenas no que tange a? sua forc?a servil. O fato e? que a sociedade moderna capitalista, ao oprimir a velhice, suplanta os apoios da memo?ria, dando relevo a? histo?ria oficial em detrimento da lembranc?a.
Na esteira de Halbwachs, Bosi (2004) reitera a ideia de memo?ria individual sintonizada com os grupos sociais: fami?lia, escola, Igreja, os quais ajudam a delinear as lembranc?as que figurara?o como refere?ncias do sujeito. A autora, ao perscrutar um estudo da memo?ria, levando em conta a inserc?a?o dos fatores sociais, opta por direcionar seu trabalho a?s lembranc?as das pessoas idosas, dado que elas ja? tiveram a experie?ncia de percorrer toda uma sociedade, com todas as suas marcas e caracteri?sticas que tais.
Versando sobre as lembranc?as dos velhos, depreende-se que eles, na func?a?o de rememorar, na?o se encontram furtivos em sonhos que servem para aparta?-los da vida cotidiana e seus ofi?cios, mas esta?o ocupados com o seu pro?prio passado de modo consciente, trazendo a? tona o que da? contorno a sua vida. Na?o e? o que acontece com o sujeito adulto ativo, que se entretece com a vida presente e suas muitas exige?ncias, sem tempo para se delongar em lembranc?as passadas, as quais, quando aparecem, figuram como sonhos, lazer, atividade contemplativa.
Como vimos, a atividade de rememorar perpassa pela func?a?o social do sujeito que, no presente, reconstro?i os fatos passados. Tal func?a?o sera? exercida quando este sujeito, antes ativo na sociedade de que faz parte, deixa de “contribuir” para o presente coletivo, alcanc?ando o momento da velhice social que faz restar a ele apenas o encargo de lembrar, tornando-se a memo?ria do grupo a que pertence. E? a memo?ria, nos dizeres de Pollak (1989), que, ao definir o que e? comum ao grupo e o que o diferencia, ira? fundamentar e reforc?ar sentimentos de pertencimento.
Com os velhos e? que se pode promover a continuidade da cultura e da educac?a?o da gente adulta do presente e dos po?steros, das gerac?o?es futuras, pois permitem, em sua experie?ncia, reviver o que ja? passou, como as histo?rias e tradic?o?es de um tempo ido, mas que permanecem, de alguma maneira, nos rastros de suas lembranc?as partilhadas, “pois deles ainda ficou alguma coisa em nosso ha?bito de sorrir, de andar. Na?o se deixam para tra?s essas coisas, como desnecessa?rias” (BOSI, 2004, p. 74).
Afora os malefi?cios e opresso?es que cai?ram sobre os velhos, com a sociedade industrial, abandonando-os ao esquecimento, e? preciso ter em mira que, em sociedades outras, muito antigas, onde os costumes, modos de viver, na?o se contaminaram pela hegemonia do individualismo, o velho e? tido como o maior bem social daquele povo.
Em outros casos, temos no oriente um exemplo de sociedade antiga, pore?m na?o concebida como primitiva, na qual se observa este tipo de transmissa?o de conhecimentos dos mais-velhos aos mais novos. Podemos lembrar o respeito que os japoneses dispensam a seus velhos, sino?nimo de elo entre o passado e o presente, tanto que, na?o raro, as crianc?as sa?o confiadas aos avo?s para receberem os conhecimentos do passado, assim como seus pais receberam de seus avo?s na infa?ncia. Tal ligac?a?o e? garantia de manutenc?a?o das tradic?o?es mesmo em uma das sociedades mais modernas da atualidade. O lugar de honra e privile?gio do mais-velho desvela ai? a beleza daquele que tem o poder de iniciar uma obra a que, certamente, sera? continuada por seus descendentes.
No exemplo dos povos africanos, como discutiremos mais detidamente no to?pico seguinte, o ancia?o cumprira? “a religiosa func?a?o de unir o comec?o ao fim, de tranqu?ilizar as a?guas revoltas do presente alargando suas margens” (BOSI, 2004, p. 82). Guardia?o do tesouro espiritual e das tradic?o?es da comunidade, pelo velho uma diversidade de conhecimentos chega aos mais novos, corroborando a forc?a de sua experie?ncia e de sua memo?ria.
A memo?ria dos velhos e a valorizac?a?o da tradic?a?o na literatura africana
Doravante, sem perder de vista a discussa?o da memo?ria e da tradic?a?o como aspectos constituintes da identidade de um povo, centralizaremos o contexto da cultura africana, fazendo um breve prea?mbulo pela histo?ria da literatura de A?frica, ressaltando-se de antema?o que, por meio do vei?culo cultural poderoso que representa a literatura, imprime-se a resiste?ncia destes povos, em manter sua cultura, suas tradic?o?es e sua memo?ria, a despeito dos efeitos despo?ticos e irreversi?veis da colonizac?a?o.
Emergidos no cena?rio de uma sociedade onde ha? muito a cultura escrita mante?m sua hegemonia, esquecemo-nos, muita vez, de que ha? sociedades originalmente a?grafas que ate? bem pouco tempo valiam-se exclusivamente da palavra oral para se comunicarem. A?frica se nos apresenta como uma dessas nac?o?es cuja imensa valorizac?a?o da tradic?a?o oral encontrara? nos chamados griotes, os seus mais nota?veis representantes, guardio?es da memo?ria e responsa?veis pela transmissa?o dos conhecimentos aos mais novos.
Malgrado a modernidade ter assinalado a hegemonia do racionalismo, evidenciando, assim, o culto a? experie?ncia individual, a que traz em seu bojo aspectos como o presti?gio da cultura escrita, a oralidade procura resistir, assegurando seu lugar de importa?ncia nos falares antigos dos contadores de histo?rias, os griotes, que se nos apresentam como “memo?ria viva” ao recuperarem narrativas que cumprem o papel de transmitir saberes antigos que povoam a sociedade africana e ajudam, ainda hoje, pelos fios da continuidade, a tecer o curso da histo?ria.
A valorizac?a?o da tradic?a?o oral, na A?frica, longe de significar apenas um meio de comunicac?a?o, reluz uma maneira de preservar a sabedoria da ancestralidade. Nesse sentido, a palavra transmitida na oralidade conduz a heranc?a ancestral ta?o valorizada por esta cultura. Os seus griotes relatam as histo?rias ouvidas de seus antepassados, que por sua vez, devera?o ser ouvidas entres as gerac?o?es seguintes.
Ao nos determos na literatura africana, mais especificamente, voltados para Angola e Moc?ambique, consideramos pertinente passar em revista alguns aspectos gerais que nos permitem compreender melhor a histo?ria e a importa?ncia dessas literaturas para se fazer conhecer as culturas e as tradic?o?es dos pai?ses supracitados.
Manuel Ferreira (1977) situa a origem da literatura africana de expressa?o portuguesa no contexto do se?culo XV, peri?odo em que se edifica ao ni?vel de cie?ncia e das grandes literaturas europeias, dado o esforc?o de cronistas, poetas, historiadores, pensadores, missiona?rios, entre outros que ajudaram a delinear uma literatura feita por portugueses no peri?odo renascentista, a que chamamos de literatura de Descobertas e Expansa?o. Nascida sob o berc?o crista?o e as poli?ticas de dominac?a?o, tal literatura prescindiria, pois, da literatura africana de expressa?o portuguesa, uma vez que, historicamente, e? somente a partir da criac?a?o e do desenvolvimento do ensino oficial, da liberdade de expressa?o e instalac?a?o do prelo, datados dos anos 40 do se?culo XIX, que emerge, na A?frica, uma atividade cultural regular.
Ao trazermos a? tona a discussa?o sobre as bases da histo?ria dos povos africanos, importa salientar que se?culos de colonialismo culminaram na destruic?a?o de trac?os culturais e na interdic?a?o dos contatos entre as gentes que habitavam o continente. Em Angola e Moc?ambique, a exemplo, desde o ini?cio de suas atividades litera?rias, no se?culo XIX, aos dias atuais, a literatura “carrega o peso das contradic?o?es sobre as quais se estruturava a sociedade colonial e suas repercusso?es no peri?odo que sucede a? independe?ncia poli?tica conquistada nos anos 1970” (CHAVES, 2005, p. 250).
Uma dessas contradic?o?es, consoante as acepc?o?es de Chaves (2005), seria a escolha da li?ngua portuguesa como instrumento de expressa?o, mais especificamente, o problema da escrita, que no contexto de uma sociedade hierarquizada tornou-se elemento de distinc?a?o, uma vez que o seu domi?nio fez-se essencial na instituic?a?o do perfil social. Desde o se?culo XIX, em Angola, a escrita tornou-se promovedora de uma linha fronteiric?a entre a civilizac?a?o e a barba?rie. Doravante, intensificou-se o abismo entre a tradic?a?o oral e o co?digo da escrita no papel de formulac?a?o e transmissa?o de conhecimento.
Situados a? margem e interditados em seus direitos, os moc?ambicanos, dominando o co?digo identificado com a civilizac?a?o, fara?o da escrita um vei?culo propi?cio para denunciar sua situac?a?o injustificada e injustamente marginalizada. Enquanto em Angola as propostas da Gerac?a?o de Mensagem sa?o buscadas no afa? de revigorar as rai?zes atingidas pela cisa?o, concomitantemente, em Moc?ambique, a voz de um Jose? Craveirinha po?e-se a anunciar que sua africanidade na?o excluiria o lado paterno, pois, sendo ele um portugue?s do Algarve, ao trazer em seu sangue marcas de muitas misturas acredita, como muitos outros poetas, que em um contexto liberto da hierarquizac?a?o das diferenc?as as trocas e as mesclagens acarretariam um rico processo de formac?a?o das identidades.
Na?o obstante a conscie?ncia da importa?ncia de se noticiar o patrimo?nio de uma literatura escrita, Santilli (1985), ao realizar um percurso pela literatura tradicional, ressalta que as nac?o?es de Angola, Cabo Verde e Moc?ambique eram originalmente a?grafas, tendo cultivado por tempos imemoriais uma literatura oral. A? luz dos estudos de He?li Chatelain, missiona?rio sui?c?o que chegara a Angola em 1885, a pesquisadora elenca, didaticamente, seis categorias da literatura oral levantadas por Chatelain para fins de estudo da literatura oral africana. A primeira, de esto?rias de ficc?a?o; a segunda, de esto?rias verdadeiras ou tidas como orais; a terceira classe, das malunda, nas quais os efeitos de nac?a?o ou tribo eram transmitidos entre velhos e ancio?es; a quarta classe, composta de prove?rbios que sintetizam esto?rias; e, ainda, a quinta e sexta classes, da poesia e mu?sica, com estilos variados, desde o e?pico e o drama?tico; das adivinhas que entreteciam e incitavam a memo?ria.
Tais elementos concorrem para indicar um patrimo?nio oral a ser recuperado nessas nac?o?es, embora o atestado de uma literatura oral, por si so?, consiga demolir o pensamento, ja? descartado, na atualidade, de que as sociedades africanas seriam esta?ticas, na?o passi?veis de evoluc?a?o. A esse propo?sito, na fortuna litera?ria de Angola, a situac?a?o de angu?stia dos negros e? contemplada por escritores como Fernando Monteiro de Castro Soromenho, que teriam aderido a? causa dos oprimidos, erigindo suas narrativas a partir das experie?ncias de convi?vio e aprendizado advindos do serta?o angolano. Paralelamente, no caso de Moc?ambique, a penetrac?a?o da cultura portuguesa manteve-se insignificante por um longo tempo, sendo a maioria da populac?a?o analfabeta e permanente em suas pra?ticas tradicionais, no que concerne ao uso da transmissa?o oral.
Ao longo de sua trajeto?ria, os estudos das Literaturas Africanas eram fortemente matizados pelas questo?es referentes a? busca da identidade nacional, caracteri?stica que reflete a resiste?ncia pelas ciso?es provocadas pelo regime opressor colonialista, vigorando por longo tempo. Hoje, as questo?es que envolvem o tema da identidade foram relativizadas, sem com isso, sai?rem da pauta. A preocupac?a?o com a identidade dos povos africanos emerge na literatura moderna, nas narrativas de escritores que recorrem a?s contribuic?o?es de prove?rbios, ritmos, si?mbolos das religiosidades e costumes africanos, que, infelizmente foram, em muito, silenciados pela colonizac?a?o portuguesa, que impo?s sua cultura e sua religia?o.
Nessa realidade em que a presenc?a colonialista promove entraves e pretende silenciar pela forc?a coerciva, a oralidade, o contar histo?rias e o exerci?cio de rememorar se afiguram como modos de se conservar e transmitir os conhecimentos e valores dessas sociedades. Entre os africanos, tradicionalmente, a palavra oral e? vei?culo sagrado de seus ritos, religiosidades e costumes. Por exemplo, escritores angolanos que despontaram nos anos de 50 e 60, amalgamaram a palavra oralizada com a escrita, como forma de (re)inventar maneiras de se contar histo?rias, preservando, por sua vez, a vida cultural coletiva de sua nac?a?o.
As narrativas que mesclam oralidade com te?cnicas exclusivas de escrita, ale?m de informarem ensinamentos pro?prios daquela cultura, muita vez se encarregaram de denunciar os efeitos dilacerantes do colonialismo, cuidando para que na?o se perca o que restou dos costumes e tradic?o?es locais. Na cultura angolana ancestral, sabe-se que narrar e? atribuic?a?o dos velhos, os mais especializados na sabedoria de contar histo?rias, dar conselhos e partilhar experie?ncias. Assim, textos litera?rios refletira?o esse costume tradicional, configurando narrativas que pontuam a presenc?a do velho como imprescindi?vel na conservac?a?o da memo?ria coletiva. Nessa sociedade, a autoridade dos griotes e outros elementos integrantes do mundo angolano que buscam revisitar pra?ticas ancestrais, tais como o dia?logo coletivo, muitas vezes, concretizado em volta da fogueira, corroboram, no a?mbito da literatura, a necessidade de reverenciar os aspectos identita?rios que determinam a cultura.
No contexto moc?ambicano, assim como ocorre em boa parte do continente africano, as tradic?o?es vivem e se expressam no respeito aos mais-velhos, na importa?ncia atribui?da a? palavra falada, no costume de contar histo?rias e valorizar elementos da natureza, na revere?ncia aos antepassados e demais elementos que identificam a formac?a?o de A?frica. Observa-se que no peri?odo da independe?ncia de Moc?ambique, ocorrida em 1975, as manifestac?o?es litera?rias do pai?s convocam a reflexa?o sobre o po?s-guerra, o cena?rio modifica-se, sem, contudo, deixar de lado as questo?es relativas a? tradic?a?o. A literatura na?o e? mais unicamente um suporte de ac?o?es denunciadoras, mas quer cumprir tambe?m o papel de resiste?ncia a? imposic?a?o cultural europeia.
Nessa perspectiva, a memo?ria deixa de ser um elemento natural humano, sobrevivente em si mesma em forma de lembranc?as, para efetivar um meio de transmitir a?s gerac?o?es posteriores o passado de uma comunidade ou nac?a?o. Rememorar os mitos e histo?rias pelo registro da literatura torna-se um modo eficaz de resistir ao processo massificador da modernizac?a?o e a? assimilac?a?o cultural que podem, coercitivamente, afastar os povos de seus costumes e origem, pore?m, sem conseguir suplantar as marcas impressas pela memo?ria.
1 As palavras “velho” e “mais-velho” sa?o usadas neste artigo, que discute a memo?ria e sua preservac?a?o, como sino?nimas na maioria das vezes, mas esclarecemos que na acepc?a?o africana “mais-velho” na?o diz respeito a idade, mas somente a acu?mulo de conhecimento.
A presenc?a dos velhos em contos de Angola e Moc?ambique: algumas leituras
Pautados na assertiva de que o ato de narrar e contar histo?rias caracteriza o elo geracional e mantenedor das tradic?o?es, costumes e ha?bitos sociais que ira? colaborar na perenizac?a?o da memo?ria coletiva, abordaremos, no presente to?pico deste estudo, a representac?a?o do velho nos contos “Vozes na sanzala (Kahitu)”, de Uanhenga Xitu, “Manga verde e o sal tambe?m”, de Ondjaki, e “Nas a?guas do tempo”, de Mia Couto como elemento fundamental nesse processo em que a memo?ria exerce a func?a?o social de contribuir na manutenc?a?o das tradic?o?es do povo africano.
Na?o sem raza?o, o lugar do velho na sociedade africana e? corroborado como um espac?o de privile?gio, uma vez que ele concretiza a junc?a?o entre narrativa e vida, metaforizando um elo a interligar as diferentes gerac?o?es e desmitificar a separac?a?o entre espac?os e tempos. Ao promover a diluic?a?o das fronteiras entre espac?os e tempos, o velho enceta momentos de interac?o?es e trocas de experie?ncias que veiculam saberes, os quais, uma vez aprendidos pelos mais novos, na?o se perdera?o, atestando, como vimos, a importa?ncia do papel de transmitir o tradicional, para que este na?o seja dilui?do pelos conhecimentos aclamados pela sociedade moderna.
Do que foi dito anteriormente acerca das literaturas de Angola e Moc?ambique, quer-se reiterar que ambas as nac?o?es te?m suas histo?rias marcadas pela repressa?o empreendida pela forc?a hostil do colonialismo. Em Angola, a longevidade do peri?odo colonial, propiciou uma literatura inicialmente pouco criativa, na concepc?a?o dos cri?ticos especializados, dada a preca?ria escolarizac?a?o, na?o apta a viabilizar uma literatura atuante, quadro modificado apenas em fins da de?cada de 40, com o lanc?amento em Luanda, do brado “Vamos descobrir Angola”. Ja? em Moc?ambique, entrementes, a favora?vel localizac?a?o geogra?fica, a estabelecer fronteiras com muitos outros povos africanos, contribuiu para que se engendrasse, desde a de?cada de 40, uma literatura fe?rtil, marcada por grande quantidade de publicac?o?es.
Enfatizamos ainda que, nas comunidades de Angola e Moc?ambique, fortemente marcadas por trac?os da oralidade, configurando a forc?a dessas culturas, a escrita litera?ria, ao nutrir-se de recursos orais, o faz no afa? de memorizar, lembrar a histo?ria local, fixando modos de expressar e pensar seus costumes, suas tradic?o?es.
No que diz respeito ao conto, no peri?odo po?s-colonial, este tem se configurado como um importante ge?nero litera?rio, ao ganhar destaque no que tange a? fixac?a?o da cultura oral africana e ao resgate da arte de contar histo?rias como mantenedora das tradic?o?es ancestrais. Sob a ameac?a da supremacia da cultura escrita, os contos simbolizam uma forma de resistir ao abandono das tradic?o?es concernentes ao seio familiar, ao perpetuar ensinamentos fundamentais sobre a histo?ria, a cultura, os valores sociais que dizem e da?o sentido a? sociedade. Nos complexos contextos de Angola e Moc?ambique, o conto configura-se como ge?nero apropriado ao “contar histo?rias”, porquanto se mostra adapta?vel e acessi?vel. Muitos contos te?m como motivo a figura do contador de histo?rias, o griot, a simbolizar a presenc?a da oralidade. Na literatura, a retomada desses narradores, contadores tradicionais de histo?ria, revigora, pois, no texto escrito, a releva?ncia de se manterem vivas as belas histo?rias orais. Em um contexto de opresso?es, guerras e lutas pela independe?ncia, a literatura africana assumiu o projeto de reafirmar identidades essenciais em defesa da nacionalidade. Para Fonseca (2003, p. 63): as literaturas africanas de expressa?o portuguesa desenvolveram mecanismos para recuperar uma tradic?a?o que fora sufocada pelo colonialismo. Entre eles, identifica- se a acentuada tende?ncia de retomarem as representac?o?es do velho, o guardador da memo?ria do povo, e com ela compreender peculiaridades da cultura ancestral evidenciada em projetos de nac?a?o e de nacionalidade, assumidos como plataforma das lutas pela independe?ncia, nos espac?os africanos de li?ngua portuguesa.
Em “Vozes na sanzala (Kahitu)”, do escritor angolano Uanhenga Xitu (Agostinho Andre? Mendes de Carvalho), de 1976, encontraremos um cena?rio que retrata o contexto de uma sociedade rece?m-independente, mas que, marcada pelas ac?o?es colonizadoras, precisa recuperar os seus valores e restituir sua identidade. A literatura sera?, dessa forma, instrumento divulgador dos valores identita?rios angolanos. E? o que averiguaremos com Kahitu, acerca do tratamento discursivo, por exemplo, em que os termos pro?prios das li?nguas angolanas sa?o mesclados a? li?ngua portuguesa.
Kahitu e? personagem central do conto, sendo apresentado aos poucos a se tornar um sa?bio, mais-velho e cada vez mais experiente, portador de muitos conhecimentos, pore?m, causara? desequili?brio na sanzala, porque o seu comportamento desvia-se do exemplar. Ramos (1996) reporta-nos que a e?nfase nos espac?os rurais de Angola, como se nota em Kahitu, casa-se com o ensejo de se preservar as tradic?o?es orais, dando continuidade a?s pra?ticas tradicionais, o que se torna mais difi?cil nos meios urbanos que tendem ao cosmopolitismo.
Atrelado aos valores tradicionais africanos, o narrador, ja? no ini?cio do conto, revela preocupac?a?o em estabelecer a ordem (origem) dos fatos narrados, uma vez que, nas histo?rias africanas, tudo tem uma explicac?a?o dada pelas tradic?o?es e costumes do povo pautados em valores ancestrais. A recuperac?a?o desses valores transmitidos pela tradic?a?o oral ja? surge, inicialmente, com a necessidade de se explicar a origem de Kahitu, os fatos que antecedem o seu nascimento e o justificam. Kahitu nasce parali?tico, embora dotado de muita intelige?ncia e sua situac?a?o se explica pelas crenc?as tradicionais africanas. Ocorre que o na?o cumprimento de um ritual a?s divindades que salvaram a vida de sua avo?, por parte de seu pai e denunciado na fala da ma?e, redundou na sua deficie?ncia fi?sica:
[…] Mas quando fiquei no estado de Kahitu perguntei-te se tinham ido ao Kilamba. Respondeste que sim. Mas na?o o fizeste. Enganaste-me. E enganaste-te a ti pro?prio. Porque tu sofres tanto como eu ou mais, desde que se manifestou a doenc?a de Kituta no Kahitu (XITU, 1976, p. 37).
Percebe-se ai? a presenc?a suprema das divindades, as que ira?o cobrar, em forma de punic?a?o, a na?o realizac?a?o do que e? esperado.
Num lugar onde se impo?e de muitas formas a presenc?a do colonizador, Kahitu cresce a? margem, sendo privado a certa altura de frequentar a escola e as demais situac?o?es oficiais. No entanto, seu estado marginal na?o o exime de acumular muitos conhecimentos. Ele consegue aprender a li?ngua do colonizador, adquirir habilidades como a do ofi?cio de ferreiro, ampliar forc?a fi?sica e sua intelige?ncia, uma vez que tendo tempo para ouvir as histo?rias dos antepassados, torna-se o experiente “narrador”, dotado de suficiente sabedoria para resolver as demandas das pessoas de sua comunidade. O conhecimento da li?ngua e da cultura do seu povo, e ainda da li?ngua portuguesa, faz com que ele transite entre as duas culturas, atuando em favor dos seus junto ao colonizador ou tornando-se o velho sa?bio que ate? criara? uma Escola de Civismo, disposto a ensinar meninos e meninas.
Sabedor enta?o de muitos ofi?cios, Kahitu, representando a figura do mais-velho, passa a ser bastante respeitado entre os seus, como mestre conselheiro, a quem “foi dado abranger uma vida inteira. Seu talento de narrar lhe vem da experie?ncia; sua lic?a?o, ele extraiu da pro?pria dor; sua dignidade e? a de conta?-la ate? o fim, sem medo” (BOSI, 2004, p. 91). Assim e? que a vida de Kahitu, circundada por uma atmosfera sagrada e consequentemente atingida pela exclusa?o, adquire importa?ncia e finalidade:
O mestre era o homem mais informado da sanzala. Estava a par de todas as conversas, ate? das i?ntimas. Conhecia a fundo o segredo de algumas fami?lias. Porque, enquanto os seus contempora?neos faziam da sanzala lugar de transic?a?o, ele estava la? desde a nascenc?a. Viu velhos e novos morrerem, e crianc?as a nascerem. Assistiu a casamentos e divo?rcios. Conhecia todo o verbo e ada?gios regionais para conquistar mulheres. Tambe?m saiba derrubar um argumentador astucioso. E servia como orientador de muitos rapazes para conquistarem moc?as, e conselheiro de moc?as para se escaparem de rapazes com ma?s intenc?o?es (XITU, 1976, p. 61).
A esse respeito, Ramos (1996) assevera que as contribuic?o?es de Kahitu na sanzala aludem aos conhecimentos dos griotes, mestres tradicionalistas da A?frica Ocidental, lembrando que ele exerceria as func?o?es do griot ao ser capaz de resolver uma se?rie de questo?es concernentes a? sanzala. Ao mais-velho, conhecedor das tradic?o?es, reitera-se que, caberia mediar, nas situac?o?es de desequili?brio, “resgatando do passado toda a sabedoria para restabelecer a harmonia, sendo a sua palavra ouvida e respeitada […]” (RAMOS, 1996, p. 34).
Na?o obstante, ao mostrar-se conhecedor da arte da seduc?a?o, Kahitu incorre no erro de usar do saber para proveito pro?prio, seduzindo Saki, moc?a bonita e muito desejada, em sua comunidade. Saki engravida apo?s ser envolvida por Kahitu e, nesse episo?dio, mais uma vez e? na fala dos mais-velhos que esta? a revelac?a?o da verdade. Uma idosa mulher de Kisoko e? quem descobre e denuncia a gravidez. No desencadeamento dessa ac?a?o, o erro de Kahitu o submete a? imposic?a?o do julgamento, na?o cumprido por fim, devido a? condenac?a?o antecipada que ele impo?e a si mesmo ao cometer suici?dio. A morte de Kahitu acarretara? tambe?m conseque?ncias desastrosas para sua comunidade, que exageradamente o condenara?, assim como as divindades, que se vingam por meses do desequili?brio causado por ele e pelos seus, que se beneficiaram de seus conhecimentos. Em suma, ve?-se que Uanhenga Xitu, neste conto, dimensiona o poder do tempo mi?tico das tradic?o?es orais angolanas, ao recupera?-las, do passado para o presente de sua ficc?a?o, para que elas se revigorem, em continuidade, e na?o se percam no tempo.
No conto do angolano Ondjaki, escritor contempora?neo, deparamo-nos com uma literatura que conflita os ideais capitalistas edificados sobre a Angola moderna, po?s- independe?ncia, e as ideologias tradicionais arraigadas a? cultura do pai?s. Falamos especificamente da obra Os da minha rua, detendo-nos no conto “Manga verde e o sal tambe?m”, no qual, como nos demais contos dessa coleta?nea, a visa?o infantil do personagem-narrador, crianc?a em fase de transic?a?o para outro esta?gio da vida (o da adolesce?ncia) que conseguira? rememorar um peri?odo lu?dico e feliz, embora vivido em cena?rio de opressa?o dos tempos cri?ticos da sociedade angolana, tentando se recuperar dos traumas da guerra.
O contexto da cidade de Luanda nas de?cadas de 1980 e 1990 e? retomado numa mistura de memo?ria individual do personagem (que sugere tambe?m a memo?ria do escritor, incluindo fatos biogra?ficos no conto) com a memo?ria coletiva de uma sociedade tambe?m em peri?odo de importante transic?a?o histo?rica. A presenc?a da crianc?a e o seu olhar matizado de pureza dos que veem o mundo com ares de novidade, contribui, sobretudo, para uma compreensa?o histo?rica de Angola, desprovida de influe?ncias e comprometimentos, porque ousada e irreverente.
Em “Manga verde e o sal tambe?m”, o autor refere-se a? infa?ncia, poeticamente equiparando-a ao tempo dos sabores diferentes, dos cheiros e das lembranc?as que quer resgatar: “Era assim, antigamente, na casa da minha avo?. No tempo da Madalena Kamussekele.” (ONDJAKI, 2007, p. 79).
A alusa?o a? casa da avo? rememora, na pauta presente, o antigamente, que mesmo tangido pela fria realidade dos “trabalhadores sovie?ticos”, na?o deixou dissipar, nas crianc?as, a fe?rtil capacidade inventiva, o que permitia ver nas obras do mausole?u a imagem de um “fogueta?o”. No presente conto, a memo?ria e? liricamente restitui?da pelo menino que se despede dos cheiros da infa?ncia, transic?a?o da vida que se pode cotejar a? transic?a?o do pai?s, tambe?m para a vida adulta.
Para Neves (2008), a perspectiva infantil adotada nos contos de Ondjaki, concomitante ao desvelamento dos sabores pueris e dos brinquedos que cercavam a infa?ncia, logra apresentar os problemas incutidos no bojo da nova sociedade que experimenta a modernizac?a?o ao contemplar o mundo de forma sincera e inocente, destitui?da de viso?es cristalizadas e/ou, conforme expresso?es do cri?tico referenciado, esvai?das de qualquer ranc?o ideolo?gico.
Ao relatar suas peripe?cias com os primos, o narrador personagem de “Manga verde e o sal tambe?m”, nos contara? sobre o dia em que colheram mangas verdes e persuadiram Madalena, que tomara conta da casa e dos meninos na ause?ncia da avo?, a lhes dispensarem o sal para que se deleitassem. Esse universo encantado da infa?ncia sera?, pois, matizado pelo sabor proibido de “manga verde com sal”: “Eram risos ao fim da tarde com banda sonora dos camio?es e restos de sol so? possi?veis de acontecer com manga verde na boca, anestesiada com o sabor salgado do sal grosso, melhor porque roubado” (ONDJAKI, 2007, p. 81).
Madalena e? delatada pelo menino narrador e sofre o castigo de apanhar de cinto da avo? e da tia Maria, por na?o ter cumprido o recomendado, atrasando o jantar, sem ter deixado a mesa pronta e com as pistas denunciadoras deixadas pelos pingos de manga no cha?o. Aqui, no resgate infantil da memo?ria, insiste-se, pela autorizac?a?o dos mais-velhos, personificados pela tia Maria e a avo? Nhe?, em manter vivas as tradic?o?es passadas, continuando-as na vive?ncia dos mais novos, aptos a aprender. Entram em choque os antigos saberes concernentes a? hora do jantar e ao que se pode comer, com a descoberta pelas crianc?as de novos sabores tais como o de “manga verde com sal”, lembrando que o desapontamento da avo? e da tia, frente a? atitude de Madalena, reflete o fato de a memo?ria dos antigos estar apoiada “na estabilidade espacial e na confianc?a em que os seres de nossa convive?ncia na?o se perderiam, na?o se afastariam” (BOSI, 2004, p. 18), pois que valores ligados a? coletividade, como a fami?lia larga, o apego a certas coisas etc., foram constitui?dos.
Na obra de Mia Couto, nota?vel escritor moc?ambicano, as representac?o?es da memo?ria e da identidade cultural de Moc?ambique sa?o atestadas, muita vez, na figura dos velhos, mantenedor dos referenciais da nac?a?o, da memo?ria, que cumpre especular no presente, as histo?rias passadas que colaborara?o para delinear as histo?rias que incidira?o no porvir. Ve?-se, dessa forma, que no trabalho do autor a memo?ria exerce relevante papel no que se refere a? busca de construc?a?o da identidade cultural do pai?s. Segundo Macedo (2008), a memo?ria pontua como elemento fundamental na literatura de Mia Couto, a constituir interrogac?a?o necessa?ria do presente sobre o passado e sobre o futuro, caracteri?sticas tanto de sua obra ficcional como nos seus textos cri?ticos.
O conto “Nas a?guas do tempo”, de 1996, e? emblema?tico, dentre os que abordam a figura do ancia?o como referencial da cultura e das tradic?o?es moc?ambicanas, que tentam se reconstruir apo?s os massacrantes anos de lutas pela libertac?a?o, de guerra civil, que prejudicaram a constituic?a?o da identidade nacional. No referido texto, a coexiste?ncia do tradicional e do moderno perpassa pela relac?a?o temporal a interligar passado e presente, com e?nfase a? valorizac?a?o das tradic?o?es que, repassadas aos mais novos, erigem uma continuidade identita?ria. O ponto central da histo?ria e? o elo entre avo? e neto, o que conduz a? transmissa?o do testemunho, enfocando a importa?ncia do aprendizado dos costumes que resistem na forc?a da oralidade, da palavra sagrada proferida pelos mais-velhos. Atrave?s do avo?, abre-se um manancial de saberes antepassados que revigoram no presente, por vias da continuidade: “[…] era ele quem me conduzia, um passo a? frente de mim […]. O avo? era um homem em flagrante infa?ncia, sempre arrebatado pela novidade de viver. (COUTO, 1996, p. 9).
O neto e?, pois, o narrador-personagem que conta-nos de suas idas, de canoa, com o avo?, a um grande lago onde desaguava um rio, a despeito dos olhos reprovadores da ma?e. O avo?, mestre no ensinamento do que imprimia novidade, transmite ao menino as riquezas das tradic?o?es africanas, aconselhando-o ainda de que va? sempre a favor da a?gua para na?o contrariar a lo?gica das divindades.
Mas o verdadeiro objetivo do avo? no frequ?ente passeio era conduzir o neto para que ele aprendesse a ver os panos brancos da outra margem, conhecendo o “lugar das interditas criaturas”. Tal intento se concretiza apenas quando ocorre a passagem do avo? para a outra margem (o ale?m), fazendo com que, nos olhos do menino, transparec?a o que antes parecia debalde no ensinamento do avo?. Assim, o neto, si?mbolo do “mais novo”, a germinar as sementes do futuro, ao se tornar mais-velho e tendo captado a lic?a?o do avo?, retorna ao lago com o filho para que ele aprenda tambe?m a ver os panos da outra margem, perpetuando no doravante, os rituais ensinados no outrora. O menino e? a ponte que intermediara? as gerac?o?es passadas e as futuras, ao passo que a a?gua e a canoa simbolizam a travessia, o movimento que possibilita a passagem do plano material para o plano espiritual, deixando entrever que esses dois mundos esta?o sempre interligados: “[…] naquele lugar se perdia a fronteira entre a?gua e terra.” (COUTO, 1996, p. 10).
Ademais, sublinha-se que, na cultura africana, vida e morte na?o se encontram separadas, havendo um elo que interliga os dois mundos (material e espiritual). O velho cumpre, enta?o, serenamente, sua missa?o de transmitir os ensinamentos e realizar por fim sua travessia. Essa explicac?a?o mi?tica da morte como travessia para outra margem exprime a linha te?nue entre o sobrenatural e o que e? tido como natural. Aos ouvidos atentos do neto, o velho preconiza que, para enxergar melhor e compreender o inso?lito, o que se afigura como inexplica?vel, os olhos precisam estar limpos de censura, puros e livres das convenc?o?es mundanas que costumam cegar os homens. Dessa forma, cumprindo os ritos africanos, o velho difunde pela oralidade as histo?rias de outros precursores, urdindo um fio de continuidade, a? medida que os mitos, os rituais, as histo?rias sa?o recebidas e repassadas coletivamente:
O que acontece, meu filho, e? que quase todos esta?o cegos, deixaram de ver esses outros que nos visitam. Os outros? Sim, esses que nos acenam da outra margem. E assim, lhes causamos uma total tristeza. Eu levo-lhe la? nos pa?ntanos para que voce? aprenda a ver. Na?o posso ser o u?ltimo a ser visitado pelos panos (COUTO, 1996, p. 12).
Ha?, na imagem de perenidade e continuidade aventadas pelo fluxo das a?guas, a forc?a da memo?ria que se pretende resgatar para que a existe?ncia se perpetue atrave?s das vozes das gerac?o?es vindouras. Aqui, a tradic?a?o se faz presente na retomada ao passado como forma de resiste?ncia ao mundo moderno que tende a desvalorizar os costumes antigos. Pelo liame da tradic?a?o, conforme dito, repisadas vezes, constro?i-se a memo?ria social da comunidade, onde o velho e seu elo com a crianc?a simbolizam o retorno a?s tradic?o?es ancestrais com vistas a impedir que elas desaparec?am nas gerac?o?es futuras.
Para finalizar este to?pico, convocamos, ainda uma vez, as palavras de Bosi (2004, p. 22):
O ancia?o na?o sonha quando rememora: desempenha uma func?a?o para a qual esta? maduro, a religiosa func?a?o de unir o comec?o e o fim, de tranquilizar as a?guas revoltas do presente alargando suas margens […]. O vi?nculo com outra e?poca, a conscie?ncia de ter suportado, compreendido muita coisa, traz para o ancia?o alegria e uma ocasia?o de mostrar sua compete?ncia. Sua vida ganha uma finalidade se encontrar ouvidos atentos, ressona?ncia.
Palavras finais
Conservar a memo?ria coletiva das nac?o?es africanas implica a manutenc?a?o do patrimo?nio das tradic?o?es orais. Os tensos processos de ruptura e descontinuidades experimentados pelas nac?o?es angolanas e moc?ambicanas na?o podem ser esquecidos, pore?m, sempre lembrados, refletidos, recontados, de gerac?a?o a gerac?a?o, juntamente a? divulgac?a?o dos matizes que caracterizam a cultura e as tradic?o?es desses pai?ses. Rememorar, pois, constitui exerci?cio demasiadamente auxiliador das interpretac?o?es do presente que se constro?i paulatinamente. A releitura das crenc?as africanas, promovida no a?mbito litera?rio, pelos autores estudados, ao buscar luz no passado e suas origens, subsidiam na reconstruc?a?o das identidades das nac?o?es mencionadas. Neste intuito, o mais-velho, detentor da sabedoria que perpetua a cultura, representa aquele que tem o poder de remeter ao passado para que o presente se fac?a melhor entendido e o futuro melhor engendrado, elemento sagrado e fundamental na tarefa de mediar valores antigos e valores que incidem sobre a sociedade contempora?nea.
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Refere?ncias
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Title
Memory of old and Appreciation of Tradition in African Literature: Some Readings.
Abstract
Keywords
Tradition. Memory. Africa. Literature. Recebido em 22.09.2011. Aprovado em 28.11.2011.
This paper discusses the literary representation of the social function of the elder man in African literature, as guardian of memory and tradition, to preserve the past, linking it to the present, with regard to the tradition of knowledge to future generations and the contribution that this means in identity formation of the youths. To this end, we will read African tales, namely: Kahitu, Manga verde e sal tambe?m, by Angolan writers Uanhenga Xitu and Ondjaki, respectively, and Nas a?guas do tempo, by Mozambican Mia Couto.
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* Doutoranda em Letras e Lingui?stica, a?rea de Estudos Litera?rios, pela Universidade Federal de Goia?s. E-mail: [email protected].
** Professora Associada Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goia?s. Doutora em Letras (Estudos Comparados de Literatura de Li?ngua Portuguesa) pela Universidade de Sa?o Paulo. E-mail: [email protected].
Este texto pretende refletir sobre a representac?a?o litera?ria da func?a?o social do velho na literatura africana, como guardia?o da memo?ria e da tradic?a?o, ao conservar o passado, interligando-o ao presente, no que respeita a? tradic?a?o dos conhecimentos aos po?steros e a? contribuic?a?o que esta significa na formac?a?o identita?ria dos mais novos.
Para tanto, faremos uma leitura dos contos africanos, a saber: Kahitu, Manga Verde e sal tambe?m, dos angolanos Uanhenga Xitu e Ondjaki, respectivamente, e Nas a?guas do tempo, do moc?ambicano Mia Couto.
Cri?tica Cultural (Critic), Palhoc?a, SC, v. 6, n. 2, p. 453-467, jul./dez. 2011
*Publicado originalmente no site da Unisul.
Fonte: Acorda Cultura.