“Quem escreve para jornal é desocupado ou psicopata.”
A frase acima marcou o ponto mais baixo (alguém pode achar mais alto, não eu) do mal-estar interno na redação do Globo causado pela primeira abaixo, da edição de quinta, dia 17.
Tecla de retrocesso.
No meio da tarde daquele dia, o email interno geral do Globo começou a receber centenas de e-mails revoltados com a capa “retrato de bandido” acima (sim, sei qual é o endereço). A imensa maioria – talvez uns 80% – era composta de um texto padrão, educado, que dizia algo como ser inaceitável O Globo fazer uma capa daquela, e 20% eram textos próprios, muitos com impropérios (as minhas fontes não quiseram me passar nenhum, argumentando, com razão, que a vigilância interna deve estar em níveis de alerta vermelho-sangue). No mesmo dia, o cancelamento diário de assinaturas, que normalmente já não é desprezível (em torno de 10), subiu algo entre 10 e 20 vezes, segundo as fontes. A torrente de e-mails continuou até mais ou menos as 9h30min de sexta, quando o sempre competente setor de tecnologia do Globo conseguiu uma forma de bloqueá-la.
Aí o problema real começou.
Em política, há uma frase – “vaca está estranhando bezerro” – que se encaixa perfeitamente no que aconteceu na redação do Globo após o bloqueio dos emails de protesto. A parte mais nova dos repórteres respondeu o email da tecnologia, avisando do bloqueio das mensagens, protestando contra a censura, sob o argumento geral – comportando variações – de que não se poderia ignorar a insatisfação dos leitores, no mínimo porque eles são os clientes.
O “aquário” não gostou, claro, considerando a manifestação como uma espécie de motim, mas isso faz parte da tradição autoritária do Globo. O que não faz – ou fazia – parte dessa tradição é que jornalistas mais velhos apoiassem o bloqueio – ou seja, o cerceamento do direito dos leitores de opinar sobre o jornal que compram – e, mais, se manifestassem contra a discussão do tema no email geral da redação.
Nesse contexto é que Ilimar Franco, titular do Panorama Político, enviou a frase que iniciou esse post e define bem o abismo que separa os estamentos mais altos da redação do Globo – incluídos aí não apenas os que habitam o “aquário” – e a “jovem guarda” da redação, que, até por dever de ofício, está mais ligada ao que ocorre nas ruas (e agora está meio em pânico com as consequências da capa “retrato de bandido” para o seu dia a dia, já suficientemente perigoso ultimamente).
Num mundo menos imperfeito, a manifestação das moças e rapazes geraria não esse tipo de resposta de Ilimar, mas uma meditação dos “aquarianos” e seus aliados quanto aos caminhos que estão sendo seguidos pelo jornal. Talvez, nessa meditação, se chegasse à conclusão que as recentes manifestações no país – tirando os casos de violência gratuita, que são espetaculosos, geram medo, e, com isso, tendem a distorcer o raciocínio, mas não mudam o curso da História – apontam para uma mudança de patamar na democracia brasileira, que, como sabemos, não chega a ter nem 30 anos, como uma grande parte dos manifestantes.
Essa mudança de patamar é causada pela passagem da consciência do nível de subsistência de parte significativa da população – aquele no qual o importante é contar com energia elétrica e ter dinheiro, a fim de comprar a geladeira que permitirá guardar os alimentos por mais tempo, liberando uma parte dele, antes usado de obtê-los – para aquele em que o tal tempo ganho pela existência da geladeira fica à disposição para outras tarefas, como refletir sobre o futuro da família, especialmente a educação dos filhos, e sobre por que raios ele/ela precisa deslocar-se 100 quilômetros para a consulta com um médico que nem sempre está lá, levando um tempo enorme no trajeto devido ao péssimo transporte público.
A adaptação a esse novo tipo de racionalidade é um problema que afeta, em primeiro (e em segundo e terceiro) lugar os políticos e as diversas instâncias governamentais e suas burocracias. Outras instituições da sociedade, porém, terão que passar por esse processo e seria de bom alvitre para elas irem pensando nisso. Entre essas instituições, até pelo seu papel central na sociedade, estão os meios de comunicação.
No caso específico do Globo, a reflexão deveria partir de sua direção de redação, já que, por sua posição no processo de produção, tem acesso privilegiado aos dados reais do problema, entre eles aqueles trazidos pela “jovem guarda”, que anda pelas ruas e enfrenta-os diretamente. Levar essas reflexões aos Marinho é dever dos “aquarianos”. Se não o cumprirem, serão cobrados lá na frente.
E quanto à “jovem guarda”? Bem, se eu tivesse menos 20 anos e fosse tão bem preparado como eles são hoje em dia, e diante desse literal mundo de oportunidades que a mídia e as indústrias criativas e de serviço oferecem, eu estaria pensando seriamente em pular fora desse barco, pois já dá para ouvir as chapas de aço rangendo e uns barulhos estranhos vindo lá da casa de máquinas, enquanto os oficiais se esbaldam no salão de baile.
Fonte: Jornal GGN.