Leia a crítica de Serra Pelada, dirigido por Heitor Dhalia

Em 1978, os amigos Juliano e Joaquim saem do Rio de Janeiro com o sonho de encontrar ouro. Os dois chegam à Floresta Amazônica, juntamente com outros milhares de homens, cheios de sonhos e ilusões. Mas a mina muda tudo em suas vidas e eles são destruídos pela obsessão ao poder e riqueza.

Serra_Pelada

Por Pablo Villaça.

Dirigido por Heitor Dhalia. Com: Juliano Cazarré, Júlio Andrade, Wagner Moura, Matheus Nachtergaele, Sophie Charlotte, Lyu Arisson.

Logo no início de Serra Pelada, novo trabalho do normalmente ótimo cineasta Heitor Dhalia, vemos recortes de jornais que trazem notícias sobre pepitas de ouro gigantes sobrepostos a imagens de arquivo que revelam garimpeiros enlameados, barbados e exaustos, expondo o contraste potencialmente dramático entre o sonho de riqueza instantânea e a realidade brutal e desgastante dos sonhadores. Não é à toa que a corrida do ouro ocorrida no Brasil no final da década de 70 e início da de 80 representa um período fascinante do ponto de vista cinematográfico, oferecendo elementos de western associados a dramas pessoais que apresentam a qualquer realizador uma infinidade de possibilidades narrativas. E é justamente por isso que é uma pena perceber que este filme elege justamente dois personagens tão desinteressantes como centro de sua história.

São eles Juliano (Cazarré) e Joaquim (Andrade), amigos de infância que largam tudo (o que, no caso do segundo, inclui a esposa grávida) e partem para o norte do país em busca do ouro. Iniciando a investida de maneira simples, como garimpeiros, eles eventualmente compram um barranco e passam a crescer na região, atraindo a atenção do ganancioso Carvalho (Nachtergaele) e do imprevisível Lindo Rico (Moura). Para complicar a situação, Juliano se apaixona pela ex-prostituta Tereza (Charlotte), que encontra-se prestes a se casar justamente com Carvalho.

Demonstrando confusão quanto ao foco da narrativa já ao abrir o filme em um demorado primeiríssimo plano de Juliano mesmo que o papel de narrador (e centro dramático da história) eventualmente seja revelado como sendo de Joaquim, o problemático roteiro de Dhalia e Vera Egito ainda se entrega ao cada vez mais comum vício da narração em off para solucionar de forma preguiçosa a necessidade de explicar certos elementos daquele universo, sendo útil para esclarecer a lógica da hierarquia em Serra Pelada, mas entregando-se no restante do tempo a exposições óbvias e desnecessárias. Para piorar, o protagonista, Joaquim, surge como um indivíduo fraco e desinteressante que jamais muda de fato sua postura (e, quando tenta, é imediatamente recolocado em seu lugar de costume), apresentando-se como um personagem sem qualquer arco dramático identificável, ao passo que Juliano, que oscila entre as condições de antagonista e anti-herói, falha em ambos os papeis por ser estúpido demais para ser eficaz no primeiro e excessivamente antipático para o segundo.

Pior: determinado a apresentar as mudanças de Juliano como fator motivador da ação, o roteiro leva o personagem a assumir personalidades novas a cada segundo de acordo com as necessidades imediatas da trama, tentando ainda forçar uma redenção que não soa como algo plausível ou mesmo merecido. Como se não bastasse, em vez de permitir que o espectador perceba sozinho o que está ocorrendo, o longa opta por martelar tudo através de diálogos como “Tu é o homem mais sozinho do mundo, Juliano”, “Grandão era meu amigo desde moleque. (…) Ele sempre foi meu amigo” e – o pior deles – “Eu gostei de matar”. Como o conturbado romance entre Juliano e Tereza tampouco soa interessante ou importante (graças não só ao roteiro, mas às composições de seus intérpretes), Serra Pelada ainda fica preso a uma subtrama que apenas gasta tempo de tela.

E o mais frustrante é que, correndo ao lado destes três personagens aborrecidos, há duas outras figuras fascinantes que poderiam originar um filme infinitamente mais interessante: Carvalho e Lindo Rico. Enquanto o primeiro é vivido por Matheus Nachtergaele como um homem cuja estatura física é inversamente proporcional à ameaça que representa, o segundo ganha uma composição absolutamente brilhante de Wagner Moura, que cria um tipo simpático e de fala mansa que, por trás dos modos afáveis, esconde um temperamento explosivo e uma personalidade sociopata. Investindo numa caracterização curiosa – com a careca, o bigodinho fino e os óculos enormes -, Moura ainda emprega maneirismos que tornam Lindo Rico sempre divertido de acompanhar, o que explica a relutância do filme em encerrar suas cenas, que chegam a se prolongar mais do que o necessário (como aquela na qual ele conversa com um policial). Assim, Serra Pelada não apenas ganha energia e vida sempre que os dois vilões surgem na tela como ainda, por contraste, parece ser preenchido por um vácuo dramático quando estes saem de cena – e eu pagaria por um ingresso três vezes mais caro caso a história girasse em torno de um embate entre os dois homens.

Mas Serra Pelada tem outras virtudes, claro: o design de produção de Tulé Peak, por exemplo, é espetacular em sua habilidade de criar ambientes carregados de história e personalidade (como os casebres habitados pelos garimpeiros e o vilarejo localizado a trinta quilômetros dos barrancos), sendo extremamente bem sucedido, também, ao recriar partes daquele mundo com uma fidelidade tão grande que jamais conseguimos perceber a diferença entre as imagens de arquivo e aquelas criadas para o filme – o que, logicamente, também se deve à ótima direção de fotografia de Ricardo Della Rosa e aos figurinos detalhistas de Bia Salgado.

Enquanto isso, se Heitor Dhalia peca nas sequências de ação ao investir em uma câmera na mão que, associada aos cortes michaelbaynianos, tornam aquelas passagens visualmente incompreensíveis, ao menos cria também imagens marcantes como a briga entre dois homens que, cobertos por barro cinza, surgem como duas estátuas raivosas cujas feridas vermelhas criam um belo contraste estético (e a cena que traz um delírio de Joaquim é igualmente bela). Em contrapartida, o cineasta escorrega de maneira horrorosa ao selecionar uma canção incrivelmente inapropriada para acompanhar uma tentativa de fuga de Tereza, transformando um momento de repugnante abuso físico e sexual em algo que busca uma leveza através da música que, longe de soar apenas irônica, parece rir do sofrimento da personagem.

Ao final, embora seja capaz de entreter moderadamente, o filme não só se mostra incapaz de levar o espectador a refletir sobre o que foi aquele momento na história do país como ainda transforma Serra Pelada em um mero pano de fundo para o drama de personagens chatos, por vezes soando mais como um aspirante a novo Cidade de Deus do que como um projeto realmente interessado no universo daqueles trágicos e sonhadores garimpeiros.

Imagem: Cartaz do Film Serra Pelada

 Fonte: Cinema em Cena

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