40 anos após o golpe militar que derrubou e matou o presidente democraticamente eleito, Salvador Allende, o dono do conglomerado El Mercurio Sociedad Anónima Periodística, Agustín Edwards Eastman, senta no banco dos réus, processado por crime de homicídio múltiplo. A ação em mãos do juiz Mario Carroza, que também investiga a morte do Prêmio Nobel, Pablo Neruda, aponta novo rumo da Justiça Chilena na apuraçãpo dos crimes da Ditadura Pinochet: depois dos militares, o caso Edwards sinaliza que os civis também deverão responder pelos crimes de violação de DDHH. Ouvido pelo juiz Carroza em setembro último, Edwards negou tudo. Menos que havia tomado o café da manhã com a CIA.
Dois grupos apenas – o El Mercurio de Agustín Edwards, e La Tercera, do empresário varejista, Alvaro Sayeh – dominam o mercado midiático chileno. Edwards edita El Mercurio, o vespertino La Segunda e o popular Las Ultimas Noticias, além de 21 jornais regionais do Chile. Em 1987, com TV Cable Intercom, sua empresa ingressou no mercado de mídias eletrônicas. Em 1995, associou-se à Cordillera S.A. (Metrópolis), fundando a Metrópolis Intercom TV, que virtualmente monopoliza os sinais de TV por cabo no Chile, e que tem como sócios a Telefônica espanhola (30%) e a Bresnan International Partners, do falecido empresário norte-americano William Bresnan. O portifolio multimídia se completa no mercado de radiofonia com as emissoras Digital FM e Positiva FM, empresas gráficas e um joint-venture com o grupo espanhol PRISA, na editora El Mercurio-Aguilar. Sua última aquisição, em 2006, foi a Diario el Sur S.A., em Concepción, que edita El Sur e o verspertino Crónica. A estratégia consolidou o monopólio midiático do Grupo El Mercurio, e Agustín Edwards é mais temido que respeitado como o “Rupert Murdoch da Cordilheira”.
Contudo, a crônica da Família Edwards e seu patrimônio no Chile, começou a ser escrita há duzentos anos, e suas origens são assaz bizarras.
No berço, um pirata
Quando George Edwards Brown, numa tórrida manhã de 1804, em Coquimbo, extremo norte do Chile, com um violento chute arrombou a porta da casa do próspero fidalgo espanhol, Diego de Ossandón e, mosquetão engatilhado, berrou em hispanglês com sotaque cockney, “esto es un assault!”, ninguém imaginou que naquele átimo começava a ser escrita uma página sangrenta da história do Chile.
Não, ninguém se machucou: quando os olhos de Edwards Brown cravaram no belo rosto de Isabel Ossandón Iribarren, filha do dono da casa, estatelada de pavor no meio da sala, os indecisos relógios da casa sustaram o tic-tac e, pela primeira vez desde que partira das Ilhas Britânicas, o inglês sentiu violento mal de mar: a paixão o fulminara. Então ouviram-se tiros, correria e roucas vozes estrangeiras chamando seu nome. Os Ossandón, mãos em atitude de prece, já lhe apontavam a porta em pedaços, para por fim àquele pesadelo, mas Edwards Brown suplicou que o escondessem. E durante três dias sentiu-se como as fedorentas sardinhas, dobrado sobre si mesmo dentro de um barril de vinho. Interminável suplício, mas na medida, para que seus comparsas suspendessem a busca e, repelidos por contra-ataque da guarda espanhola, recuassem para o Blackhouse – um entre tantos barcos flibusteiros que costumavam saquear vilas e cidades da costa do Chile, sempre “by appointment of Her Majesty, the queen”.
A deserção do pirata George inaugura a história do clã Edwards no Novo Mundo, ironizado por um de seus descendentes, o romancista dublê de diplomata, Jorge Edwards – ex-embaixador de Salvador Allende em Cuba, hoje embaixador de Sebastián Piñera em Paris – em narrativas como “El inútil de la família”, protagonizada por Joaquín Edwards Bello, tio-avô do escritor, cronista do El Mercurio na primeira metade do séc. XX e autor do romance “El inútil” (1910), um acerto de contas feroz com a oligarquia chilena tardo-novecentista, que o obrigou a exilar-se no Brasil.
Do cobre ao Banco Edwards
Preso, mas libertado em 1805, Edwards muda-se para La Serena, oferece a cabeça à pia batismal católica, e em 1807 casa-se com a bela Isabel, com quem terá oito filhos. Barbeiro a bordo da nau pirata, em terra o inglês improvisa ofícios que vão da cirurgia à usura, emprestando dinheiro a pequenos mineiros do Atacama, ao cabo de uma década gerando não desprezível fortuna.
Naqueles anos, os criollos chilenos levantavam-se em armas pela independência e, instigado por saturada bílis anti-espanhola, Edwards adere à causa, doando dinheiro para o armamento dos insurgentes. Declarada a Independência, seu líder Bernardo O´Higgins lhe concede a cidadania chilena por merecimento e, em 1822, Don Jorge Edwards é eleito deputado pela província de Huasco. Morreu endividado em 1848, como malfadado investidor nas minhas de cobre do Atacama.
Outro foi o faro de seu filho, José Agustín de Dios Edwards Ossandón, que fez fortuna como fornecedor dos grandes mineiros e comerciante de prata e cobre. Herdara do pai o instinto velhaco dos usureiros, aprovisionando seus clientes em troca de minerais ou hipotecas de seus equipamentos. Em 1850, associou-se ao norte-americano William Wheelwright, com que construiu a ferrovia das minas ao porto de Caldera. Dez anos mais tarde, foi um dos financiadores da ferrovia entre Santiago e Valparaíso, já então o principal porto do país, no Chile Central. É em Valparaíso que se escreve a segunda e importante página do clã: de grande mineiro e construtor, Edwards Osandón salta para o mercado de capitais, fundando a Compañía Chilena de Seguros e, em 1867, o Banco de A. Edwards.
Os Edwards descobrem a imprensa
Agustín Edwards Ross, filho de Edwards Osandón e neto do pirata George, foi quem sentou as bases do que hoje representa o Grupo El Mercurio. Herdeiro de notável fortuna de seu pai, iniciou sua carreira como político (quatro mandatos de deputado, um de senador por Vaparaíso, dois de ministro), em seguida, como editor do La Época, escalando celebridades como Rubén Darío, Anatole France e Guy de Maupassant entre seus colaboradores.
Em 1877, o jornal El Mercurio de Valparaíso enfrentava grave crise de insolvência e Edwards Ross resolveru comprá-lo.
Mitômanos que soem superar a argentinos e brasileiros em ousadia e caradurismo – por exemplo, roubando ao Libertador argentino José de San Martín a autoria da independência chilena, que ardilosamente contrabandearam para O´Higgins – os chilenos também afirmam que El Mercurio de Valparaíso, fundado em 1827 pelos tipógrafos Thomas G. Wells, Ignacio Silva Medina e Pedro Félix Vicuña, foi “el primer diario de habla española” – pioneirismo desta vez roubado a El Peruano, já editado em Lima, em 1825 e fundado por ninguém menos que Simón Bolívar.
Morto Edwards Ross, é seu primogênito, Agustín Edwards MacClure (deputado, ministro de relações exteriores aos 25 anos, e presidente da Sociedade das Nações, em 1922-1923), quem na virada para o séc. XX retira do jornal seu caráter provinciano, lançando o El Mercurio de Santiago.
É significativo que, como laureado em 1940, com o Prêmio Maria Moors Cabot, instituído pela Universidade de Columbia, Nova York, Edwards MacClure começa a articular o estreitamento das relações do Chile com os EUA; predileção étnico-cultural de resto continuamente atestada pelos sobrenomes sobejamente anglosaxãos das esposas dos Edwards. Falecido Edwards MacClure, em 1941, sucede-o seu filho único e quarto delfim da genealogia: Agustín Edwards Budge. Na década de 1950, ele contrata a assessoria da missão norte-americana Klein-Sacks, usando as páginas de El Mercurio como espécie de “ministério da economia nas sombras” do combalido governo Carlos Ibáñez. Edwards Budge morreu em 1957, deixando como viúva Isabel Eastman Beéche e quatro filhos, dos quais foi Agustín Edwards Eastman que assumiu o El Mercurio em 1958, que dirige com mãos de ferro até hoje.
Os “Mercurio Boys” contra o Estado
Nascido em Paris, em 1927, Edwards Eastman (EE) não concluiu o curso de Direito da Universidad de Chile, graduando-se em 1949 pela Academia Woodrow Wilson de Estudos Públicos e Internacionais da Universidad de Princeton.
De volta ao Chile, revela-se noviço devotado ao país das “possiblidades ilimitadas”. Em 1955, como pesquisou a jornalista Claudia Urquieta Chavarría, do portal El Mostrador, a Escola de Economía da PUC chilena assinava convênio com a Universidade de Chicago, que desovaria notável penca de economistas. Muito antes da tomada do poder pela ditadura Pinochet e seus “Chigago Boys” – que desenharam a mais cruenta agenda neoliberal da América Latina, mediante a virtual privatização e draconiana redução do tamanho do Estado e a repressão implacável do movimento sindical – estavam os “Mercurio Boys”, como infere em 1995 o historiador Ángel Soto em seu livro El Mercurio y la Difusión del Pensamiento Político Económico Liberal: 1955-1970.
A queda de braço pela apropriação do Estado começa a articular-se durante o governo do democrata-cristão, Eduardo Frei Montalva (1964-1970), e seu reformismo católico, inspirado na doutrina social da Igreja. Inicialmente aliado de Frei, EE funda o Centro de Estudios Socio-Económicos (CESEC), que elabora o programa econômico do candidato ultra-conservador, Jorge Alessandri, adversário de Salvador Allende na campanha presidencial de 1970.
Um dos autores do projeto da direita é o “Mercurio Boy” Sergio de Castro, editorialista do caderno de Economia do jornal, após o golpe de 1973 convocado por Pinochet para ocupar a pasta de Fazenda e Economia da ditadura. Outros “boys” eram Pablo Baraona (futuro presidente do Banco Central de Pinochet), Manuel Cruzat (que com seu primo Fernando Larraín controlava mais de 100 empresas, e com elas 5% do PIB durante o governo Allende, por isso estigmatizados como “los pirañas”), e Hernán Cubillos Sallato, assessor da presidência de El Mercurio e posterior ministro de Relacões Exteriores de Pinochet. Seu pai, Hernán Cubillos Leiva, também comandante da Marinha na reserva, servia como embaixador de Pinochet no Brasil, e teve ativa participação na perseguição de exilados brasileiros no Chile, em ação coordenada com a ditadura de Garrastazu Médici.
O think tank de EE concluiu rapidamente que ao “socialismo democrata-cristão” estatizante e às abordagens nacionalistas e desenvolvimentistas da CEPAL havia que contrapor o primado da “empresa privada e a livre economia de mercado”, como enfatiza Soto.
A articulação militar
O golpe militar de 11 de setembro de 1973 não foi iniciado por Augusto Pinochet Ugarte, que só aderiu à conspiração quatro dias antes do bombardeio do palácio La Moneda. O motim foi detonado pela Marinha, em Valparaíso, e era liderado pelo Alm. José Toribio Merino Castro.
Toribio Merino e EE acumulavam amizade e pacto ideológico desde 1967, ano da criação da “Cofradía Náutica del Pacífico Austral”, clube de VIPs supostamente devotados à vela e ao iatismo, que serviu de fachada para atividades conspirativas contra Frei e Allende. Toribio Merino oficiava como presidente da confraria, utilizada pelo dono de El Mercurio como espaço de convergência entre empresariado e a Armada. Dois executivos do jornal, Hernán Cubillos e Roberto Kelly, encarnavam à perfeição a simbiose, pois eram oficiais da reserva da Marinha.
Vinte anos mais tarde, em entrevista à edição de 1/9/1996 da revista Qué Pasa, Hernán Cubillos explicava que “a Cofradía nasceu da inquietação de Kelly, Agustín Edwards e minha, de estabelecer um ponto de contato dos civis, aos que interessavam as coisas do mar [sic!], com marinheiros profissionais… Nesse clube foi se criando uma relação que nos permitiu passar informações às Forças Armadas e, em sentido inverso, ouvir suas próprias inquietações”. Mas então Cubillos liberta seus eufemismos e admite que René Silva Espejo, um dos diretores de El Mercurio, “jugó un papel importante en la coordinación del Golpe”.
Contudo, a articulação do golpe contra Allende demorou três anos e não mediu esforços para tirar do caminho, assassinar legalistas como o Comandante do Exército, Gal. René Schneider, leal a Allende.
O “Arquivo El Mercurio”
Desde 1974, o Chile conhece a verdade sobre o papel de El Mercurio no golpe contra o governo Allende e como propagandista da ditadura Pinochet, endossando seus crimes de lesa-humanidade. A verdade se deve ao corajoso relatório de 1974 do senador Frank Church, intitulado “Covert Intervention in Chile : 1970-1973” http://academic.brooklyn.cuny.edu/history/johnson/churchreport.htm, que já detalhava a escandalosa corrupcão proposta pelo editor chileno ao governo Richard Nixon em troca da desestabilização do governo Salvador Allende através das páginas de seus jornais. Em 2003, a extensão da conspiração veio a lume com a desclassificação dos memorandos da CIA sobre a articulação do golpe, exaustivamente estudados pelo pesquisador Peter Kornbluh, diretor das seções Chile e Cuba da ONG National Security Archive, em Washington.
Em seu livro, “The Pinochet File: A Declassified Dossier on Atrocity and Accountability. A National Security Archive Book” (The New Press), Kornbluh dedica denso capítulo às maquinações de EE em “’The El Mercurio File’. Entre 1970 y 1973, a operação envolveu a transferência de U$S 1.965.000 (aprox. US$ 8,5 milhões de dólares ao câmbio atual) da CIA em dinheiro vivo ou a contas offshore de EE.
A Ata Pinochet
O editor chileno sabia das noites mal dormidas de Nixon e seu secretário de segurança, Henry Kissinger. Em uma célebre entrevista de 1970, Nixon comparava a América Latina – com Fidel Castro no poder em Cuba e Salvador Allende no Chile – com a imagem de um “sanduíche esmagado por dois polos marxistas”. Desde o governo Kennedy, todas as tentativas de invadir Cuba e matar Fidel haviam fracassado, mas Allende não seria tolerado. Incentivado por Kissinger, Nixon sacrificava dezenas de milhares de jovens americanos na invencível guerra do Vietnã, tentava abraçar a China para acossar a URSS, e Allende era uma pedra no sapato nas múltiplas frentes da guerra fria global; conjuntura delicada que algumas vezes pareceu obnubilar a percepção do presidente chileno.
Track I: o suborno fracassado
Como David Rockefeller anotou em suas próprias Memórias (Planeta, 2004), EE o advertira em março de 1970 que “os Estados Unidos devem prevenir a eleição de Allende”. Seis meses mais tarde, EE decide participar ativamente da intervenção norte-americana, planejada em dois estágios: o Track (trilha) I, e seu Plano B, o Track II.
O Track I, definido como “golpe pelas vias constitucionais”, visava simplesmente subornar os deputados do Congresso chileno, e garantir a vitória de Jorge Alessandri. Contudo, em 4 de setembro de 1970, com 36,3% dos votos e sem maioria no Congresso, Salvador Allende é eleito Presidente em vitória apertada – o Track I tinha fracassado.
Logo após a eleição de Allende, EE deixou o país rumo aos EUA, vinculando-se como presidente à Foods International e vice-presidente da Pepsico Inc. A partir dos EUA tentaria impedir que Allende assumisse a presidência, em novembro de 1970, fazendo lobby na Casa Branca. Mas o chileno tinha pressa por outro motivo: o Grupo Mercurio estava insolvente e sofria forte pressão dos bancos credores.
Como sua substituta, EE deixou em Santiago sua irmã, a bela Sonia Edwards, simpatizante de Allende, cuja filha gerada com um militante de esquerda, anos mais tarde, o truculento e implacável EE mandou sequestrar na própria clínica em Londres, onde Sonia se refugiara da “vergonha em família”. Sonia só descobriu o paradeiro da filha muitos anos depois.
Em suas memórias, “Anos da Casa Blanca” (1979), Henry Kissinger anotaria que foi visitado por EE y Donald Kendall, presidente de Pepsi Co., amigo dos mais íntimos de Nixon, cuja campanha financiara generosamente.
A visita ocorreu em 14 de setembro. Kendall visitou Nixon para relatar as conversas que mantivera com EE. Kissinger e John Mitchell, promotor geral, tomaram o café da manhã com EE e Kendall na manhã seguinte em um hotel de Washington. Richard Helms, então diretor da CIA, também compareceu, e a ele deve-se a publicação de todos os memorandos secretos da CIA, pois o homem anotou tudo.
Durante 30 anos, a conversa naquela mesa de café, o que o chileno contou à CIA, foram “top secrets”. Helms despediu-se e elaborou o memorando “Discussão sobre a Situação Política Chilena”, no qual o nome de EE é muito mencionado várias vezes, depois taxado em negrito, antes que o documento fosse desclassificado.
O assassinato do Gal. Schneider
No memorando de Helms, EE recordou a manobra montada por seu jornal e o governo dos EUA: caso Alessandri ganhasse, renunciaria poucos dias, talvez até poucas horas depois, abrindo caminho para novas eleições, que, então sim, seriam ganhas com ampla vantagem pelo menor dos males: Frei Montalva, presidente em retirada, mas legalmente habilitado, porque não significava uma reeleição, vetada pela Constituição de 1925.
Mas essa manobra, caso revelada, não seria tolerada pelo então Comandante em Chefe do Exército, Gal. René Schneider, oficial constitucionalista e respeitoso do veredito das urnas.
No emblemático dia 15 de setembro de 1970, Richard Nixon emitiu a ordem para impedir a posse de Salvador Allende, “fazendo uivar a Economia” [do Chile]. Com seus garranchos, Helms anotou a encomenda do chefe, que ganhou as páginas da História: “Quem sabe, uma em dez oportunidades, mas há que salvar o Chile! Não importam os riscos involucrados… U$S 10.000.000 disponíveis, e mais, se necesario. Trabalho a tempo integral – com nossos melhores homens…”.
Uma das alternativas anotadas, seria uma ação militar para tirar do caminho militares legalistas, e o nome sugerido para tal operação foi o de Roberto Viaux, general na reserva, que em outubro de 1969 liderara uma tentativa de golpe contra Frei Montalva.
Em 15/10/1070, Kissinger advertiu Nixon que Viaux não dispunha de poder de fogo para um golpe: “Parece um ato de desespero. Cancelei. Nada seria pior que um golpe abortivo”. Kissinger preferiu apostar em outro oficial golpista, o Gal. Camilo Valenzuela, “grupo bem conhecido da CIA, capaz de levar a cabo um golpe com êxito”. Kissinger queria mesmo o Gal. Schneider e, em 22/10/1970, Valenzuela recebeu da CIA 3 submetralhadoras, munições e 10 granadas de gás lacrimogênio.
Valenzuela, nada exitoso, falhou duas vezes, e então Viaux e a agrupação fascista Pátria y Libertad entraram em cena. No dia 25 de outubro, tentaram sequestrar Schneider, mas o imprevisto aconteceu: o general reagiu, empunhando sua arma, e morreu cravejado de balas no interior de seu automóvel.
O líder do comando, a bordo de dois carros, um dos quais fechou o automóvel de Schneider, era Enrique Arancibia Clavel, filho de oficial da Marinha e ex-cadete naval de 26 anos, conhecido nos meios terroristas como “El Dinamitero”, que detonara várias bombas em locais públicos, uma delas no aeroporto internacional Pudahuel.
Antes de fugirem, os assassinos de Schneider panfletaram o local do atentato em nome de uma “Brigada Obrero-Campesina”, de sonância bolchevista, mas o futuro agente da DINA, na Argentina, confessou textualmente à Justiça Chilena em 1977, que fora um atentado sob bandeira falsa, “para hacer creer que los autores eran de un grupo de ultra izquierda y crear un clima adverso”.
Um ano mais, tarde, em 11/6/1971, refestelados no escritório oval da presidência, Nixon e Kissinger mantinham-se aferrados à conspiração para derrubar Allende, que completava seu primeiro ano de governo. Em dado momento, Nixon interpela Kissinger com a notícia de novo assassinato político no Chile, desta vez de Edmundo Pérez Zujovic, adversário de Allende, morto por um grupo esquerdista em junho daquele ano, em represália a um massacre de favelados, ocorrido em Puerto Montt, em 1959, que inspirara o cantor Victor Jara a compor a canção Preguntas por Puerto Montt: “Usted debe responder, señor Pérez Zujovic, por qué al pueblo indefenso contestaron com fusil”. Citada por Scott Horton, no Harper´s Magazine de 6/7/2010 (“The Case Against Kissinger Deepens, Continued”), uma gravação dos comentários cinicos de Kissinger confirma seu envolvimento no assassinato de Schneider:
Kissinger: They’re blaming the CIA [estão responsabilizando a CIA]
Nixon: Why the hell would we assassinate him? [por que, diabos, o assassinaríamos?]
Kissinger: Well, (a) we couldn’t. We’re— [Bem…, não conseguimos. Somos…]
Nixon: Yeah. [Pois é]
Kissinger: CIA’s too incompetent to do it. You remember— [A CIA é imcompetente demais para fazê-lo. O Sr. lembra-]
Nixon: Sure, but that’s the best thing. [Unclear]. [Com certeza, mas o melhor é isto mesmo (inaudível)]
Kissinger: —when they did try to assassinate somebody, it took three attempts— [quando tentaram assassinar alguém, fizeram três tentativas]
Nixon: Yeah. [Pois é.]
Kissinger: —and he lived for three weeks afterwards. [E o cara sobreviveu por três semanas.
O “alguém” era ninguém menos que o Gal. René Schneider.
Em 2001, os filhos e a viúva do Gal.Schneider ingressaram com acão criminal na Corte Federal em Washington, na que acusam como autores do assassinato de seu pai a Henry Kissinger, Richard Helms e Paul Wimert, então adido militar na embaixada dos EUA em Santiago, que entregou pessoalmente as armas aos terroristas de extrema direita. A defesa de Kissinger argumentou que sua responsabilidade era política e não legal, e a Corte Suprema aceitou a interpretação em sua sentença de abril de 2006. Porém, Wimert disse em entrevista ao documerntário “The trials of Henry Kissinger” (BBC, 2002), “he lied!” – Kissinger mentiu.
O crime continua impune. Contudo, em 28 de abril de 2011, o mesmo Arancibia Clavel, comandante do atentado, e agora amante de um cabeleireiro argentino, foi assassinado com várias facadas em Buenos Aires. Dele falar-se-á no final do presente texto.
Os dólares da CIA para El Mercurio
El Mercurio atravessava mais uma de suas crises financeiras, que habitualmente nada tinham a ver com a situação econômica do país e, sim, com a más gestão de EE. Dentro da empresa, o sindicato esquerdista exercia forte pressão e os bancos credores apertavam o dono do jornal, e eram favas contadas que Allende cortaria suas despesas de publicidade. Então EE inventou um ardil: alardeou pressões inexistentes para o “fechamento dos meios de comunicação de oposição”, desencadeando uma feroz campanha de Nixon contra Allende, pela “salvação da liberdade de imprensa no Chile”.
Antes mesmo da posse do presidente recém-eleito, o embaixador dos EUA em Santiago, Edward Korry, pressionou credores de EE: “Falei novamente aqui com o gerente do First NCB”, informou Korry em mensagem de 25/9/1973, codificada como “Top Secret/Eyes Only.” “Por que estão colocando El Mercurio contra a parede?”, questiona Korry: “Eu disse a ele [o gerente] que gostaria de poupar a Casa Blanca dessa situação estranha, cujo efeito seria amordaçar a única voz livre do Chile” – e Korry virou o jogo, o City foi colocado contra a parede.
Poucos dias depois da ratificação de Allende como Presidente pelo Congreso chileno, em 6/11/1970, Nixon, indignado, reunia-se com seu Conselho de Segurança Nacional. Seu recado foi curto e grosso: “Derrubem-no!”. Ato continuo Henry Kissinger detalhou no tabuleiro cinco cenários desenhados pela CIA para desestabilizar Allende. O “número 4” recomendava: “Assistência a certos periódicos usando os meios de comunicação do Chile capazes de criticar o governo de Allende”.
Contudo, o “dinheiro vivo” demorou um ano para entrar nas contas de EE: em 8/9/1971, a CIA solicitou liberação de 1,0 milhão de dólares ao Comitê dos 40 (coordenação secreta de altos funcionários liderada por Kissinger para vigiar ’operações encobertas”), alegando que com a soma El Mercurio poderia sobreviver de um a dois anos, mas que sem aquele aporte, o jornal sucumbiria antes do final do mês.
Kissinger propôs então duas “opções básicas”. Primeiro, entregar 700 mil dólares a EE em caráter de urgência, “para garantir o suprimento de papel”, alegando que a empresa La Papelera, do Gruppe Matte e Jorge Alessandri estaria sendo ameaçado por Allende e “obstruções operárias” – mentira grosseira. Segundo, simular um fechamento voluntário de El Mercurio e alardear ao máximo a “ameaça à liberdae de imprensa” por um regime marxista. Mais perspicaz, a CIA se opôs à segunda opção, pois sabia que Allende provaria que o fechamento de El Mercurio era devido à inépcia administrativa de EE.
Efetivamente, o jornal deixou de ser impresso por alguns dias, alegando inexistente falta de papel e, finalmente, em 14/9/1971, Nixon liberou a primeira remessa de US$ 700 mil. Kissinger confirmou a Helms que Nixon estava disposto a dar mais, o que motivou Helms a autorizar a Divisão Hemisfério Occidental da CIA a “exceder 700.000 dólares, até acima de U$S 1.000.000”. Matando dois coelhos com uma só cajadada, a CIA financiava EE e ainda tinha bala na agulha para afirmar, mentirosamente, que Allende boicotava o suprimento de papel-jornal. Meses depois, EE recebeu mais US$ 300 mil, autorizados por Kissinger, operação de financiamento de El Mercurio completada em abril de 1972, quando a CIA intermediou um “adicional” de US$ 965 mil, mais uma vez falsamente justificado com “fluxo de papel ameaçado por Allende”. Finalmente, outro memorando da CIA de 15/5/1972, sobre uma operação acertada entre o agente Jonathan Hanke e o executivo da ITT (International Telephone & Telegraph), Hal Hendrix, registra a entrega de mais US$ 100 mil nas mãos de EE.
Em 1970, a ITT adquirira 70% do capital da Compañia de Teléfonos de Chile (CTC), tornando-se virtual dona exclusiva da telefonia no país. Em 28 de setembro de 1973, a sede da ITT em Nova York sofreu um atentado à bomba pelo grupo clandestino Weather Underground, ativistas contra a guerra do Vietnã, em resposta ao seu envolvimento no golpe militar de Pinochet et allii.
Assim estavam assentadas as bases financeiras para o desencadeamento da guerra suja midiática que os jornais do Grupo El Mercurio promoveram sem tréguas durante os três anos da Unidade Popular de Salvador Allende.
De uma pesquisa realizada pela jonalista chilena, Mónica González, diretora do CIPER-Centro de Información e Investigación Periodística – inicialmente bancado no Chile pela fundação Open Society de George Soros – depreende-se que maio de 1973, o “Mercurio Boy” e conspirador da “Cofradía”, Roberto Kelly, convocou 10 economistas responsáveis pela elaboração do “El Ladrillo” [O Tijolo], o Programa Econômico Neoliberal para Allessandri, que em cinco laudas resumiram os conceitos básicos do projeto que deveria inspírar um regime militar golpísta, e entregaram seu esboço ao Alm. Toribio Merino e seus homens da Armada.
Estava articulado o braço armado do golpe, e agora também seu braço doutrinário. Não por acaso, coube a Toribio Merino a coordenação do primeiro ministério da Economia da ditadura Pinochet. Com as bênçãos de Agustín Edwards.
Dívidas: depois da CIA, Edwards salvo por Pinochet e pela Concertación
O clã Edwards encabeçava até há poucos anos o ranking das maiores antigas fortunas no Chile – além das mídias, com investimentos nos setores florestal, madeireiro e financeiro – hoje amplamente superadas por grupos arquibilionários, como as famílias Matte, Paulmann, Sayeh e Piñera, herdeiras do legado neoliberal pinochetista.
Após sua permanência no Chile em 2000, como bolsista da fundação Knight, o jornalista norte-americano Ken Dermota (colaborador de Business Week, The Christian Science Monitor, Le Monde, Boston Globe e Toronto Globe), precocemente falecido em 2009, escreveu o livro “Chile Inédito: el periodismo bajo democracia” (Ediciones B Grupo Zeta, Santiago Chile, 2002), que configura a mais rigorosa pesquisa sobre a estrutura de propriedade e o mercado dos meios de comunicação de massa no Chile, dedicando extenso capítulo à situação econômica do Grupo El Mercurio.
Publicações de esquerda, como Clarín, Puro Chile, El Siglo e Ultima Hora, cuja tiragem somada durante o Governo Allende era superior a das publicações do Grupo El Mercurio, foram imediatamente banidas pela ditadura Pinochet, seus diretores e jornalistas presos, torturados, assassinados ou expulsos do país. A partir do dia 11 de setembro de 1973, restava apenas a voz única de El Mercurio e La Tercera, que se beneficiaram principalmente do redirecionamento da verba publicitária.
No entanto, no início dos anos 1980, EE enfrentava nova crise financeira, vendendo ativos e concentrando-se no Banco de A. Edwards e na manutenção da editora de jornais. Quando o câmbio arruinou o Peso, saltando de 39 para 160 por dólar, a dívida do grupo disparou de 13 para 100 milhões de dólares. Em 1983, as perdas do grupo alcançavam 22,5 milhões de dólares, no que foi acompanhado pela penúria do Grupo La Tercera. Em 1987, os ativos de EE estavam reduzidos a 50% de seu valor, e o grupo impossibilitado de pagar suas dívidas.
Interessado em manter controle politico sobre a imprensa, Pinochet deu sua mão aos editores que o ajudaram a tomar o poder: o Banco del Estado emprestou 1,0 milhão de dólares ao Grupo Copesa (La Tercera), capitalizou com 2,3 milhões de dólares uma empresa acionista do grupo, e encampou a dívida externa de 201,0 milhões de dólares do Banco de A. Edwards; operação alavancada por Alvaro Bardón, então presidente do Banco del Estado, hoje privatizado.
Hábil, Bordón escamoteou a operação, derretendo-a no tempo, iniciando a salvatagem dos jornais, faltando apenas três meses para Pinochet transferir o poder a Patricio Aylwin, candidato da vitoriosa Concertación, de centro-esquerda, em março de 1990. Maquiando balanços, eliminando documentação comprometedora e transferindo créditos incobráveis ao Banco del Estado, a operação teve outros lances fraudulentos: o Grupo Copesa, do empresário de supermercados, Alvaro Sayeh, comprou grande parte da dívida do La Tercera com “desconto” de 50%, e o Banco de Chile suspendeu a hipoteca sobre a sede do El Mercurio, no valor de 4,0 milhões de dólares, em troca de 180 marcas registradas por EE, entre elas, marcas usurpadas de competidores, como o jornal Clarín, expropriado por Pinochet ao amigo espanhol de Allende, Víctor Pey Casado, que, nonagenário, luta até hoje pela devolução de seu combativo jornal.
Estima-se que o custo imediato para os cofres públicos da operação de “perdão” da dívida de Edwards, capitaneada pelo Banco del Estado, foi da ordem de 26,0 milhões de dólares. Como se fosse pouco, o banco comprou espaço publicitário para 10 (dez!) anos, pagando adiantado a El Mercurio, o que lhe valeu um desconto de 1,8 milhões de dólares na dívida e o credenciou para conseguir novo empréstimo de 6,8 milhões de dólares do Citibank de Santiago.
Articulação do golpe: primeiro processo contra Edwards
Em 2003, o jornalista Manuel Cabieses – ilustre editor da revista Punto Final, fundada em 1965, fechada por Pinochet e relançada no Chile em 1989 – arrastou EE ao tribunal de ética do Colegio de Periodistas, que regulamenta a profissão no Chile, para expulsá-lo da entidade por “grave violação de ética” de seus jornais durante a longa noite da ditadura. Cabieses justificou sua denúncia com a obrigação dos profissionais de comunicação de agirem “a serviço da verdade, dos princípios democráticos e dos direitos humanos”.
Surpreendentemente, o tribunal da entidade considerou que as opções ideológicas do proprietário de um meio de comunicação “são do forum da liberdade de consciêrncia, que um tribunal não pode julgar”, negando-se a expulsar o dono del El Mercurio de suas fileiras. Cabieses e muitos de seus colegas reagiram indignados, protestando contra a sentença “escandalosa” da entidade, reiterando que o que estava em discussão não eram as opções ideológicas, mas os atos de EE, fartamente documentados por Peter Kornbluh, e solenemente ignorados pela entidade. Em 2008, o Colegio de Periodistas pediu “perdão” às vítimas, entre elas, vários jornalistas, e ficou por isso.
Dez anos depois, uma comissão do Conselho Nacional da mesma entidade de classe volta à carga contra EE, solicitando ao magistrado Mario Carroza a ratificação das mesmas provas já apresentadas por Cabieses em 2003. Motivo: a abertura do processo de investigação dos civis implicados no golpe militar de 11 de setembro de 1973. Em meados de janeiro de 2013, Carroza acolheu a ação criminal (Processo Nr. 1886) impetrada em 14 de dezembro de 2012 por Lorena Pizarro, presidenta da Agrupación de Familiares de Detenidos Desaparecidos, e Alicia Lira, presidenta da Agrupación de Familiares de Ejecutados Políticos, representadas pelo advogado Eduardo Contreras. Os interrogatórios de acusados e testemunhas iniciaram justamente durante os atos cívicos dedicados à memória dos 40 anos do golpe de 1973.
A ação é inédita na história do Judiciário do Chile e tem como fonte de inspiração a juiza uruguaya, Mariana Mota – ícone em seu país na luta pela defesa dos DDHH e apuração dos crimes cometidos pela ditadura uruguaia –, autora em 2012 do primeiro veredicto conhecido no mundo, que define golpe de estado como crime de lesa humanidade. A magistrada condenou a 30 anos de prisão o ex-ditador José María Bordaberry (presidente de 1972 a 1973, após o golpe de estado, ditador de 1973 a 1976), pelos delitos de “atentado contra a Constituição em reiteração real”, além de nove crimes de desaparecimento forçado e dois assassinatos políticos.
Na ação criminal, as família dos fuzilados e desaparecidos do Chile invocam os artigos 121 e 122 do Código Penal, que qualifica crimes de amotinamento, sublevação e violenta alteração da ordem pública. Como provas anexadas aos autos está o Informe de 1975 da Comissão Church do senado norte-americano, e documentos do “Pinochet File” de Peter Kornbluh (vide memorandos censurados – “sanitized”).
A primeira medida determinada à PDI-Polícia Federal Chilena por Carroza foi “ubicar y entrevistar” Agustín Edwards Eastman, ilustre personagem citado nos memorandos de Helms e Kissinger. O jovem e corajoso magistrado pretende ir longe: oficiou a cada um dos comandos das três armas das FFAA chilenas, além dos Carabineros e da PDI, intimando-os a entregarem listas completas dos nomes destas instituições implicados na trama golpista de 1973.
A própria Justiça, da qual alguns representantes pediram “perdão” durante os atos de denúncia dos 40 anos do golpe, será investigada: Carroza cobrou da Corte Suprema a entrega da lista completa de todos os ministros que oficiavam nos tribunais à época do golpe, específicamente dos juízes que acusavam Salvador Allende de “quebra da constitucionalidade”, com isso tentando conferir legalidade ao golpe militar. Mas Carroza enfrentou muitos entraves: com a ação impetrada em dezembro de 2014, durante nove meses o juiz, que também investiga a morte de Pablo Neruda, sofreu obstruções, tais como a decisão da alta magistratura de submeter a legitimidade da ação ao voto em plenário, e não assinando a petição.
Mais uma vez a embaixada dos EUA em Santiago também foi intimada a entregar à Justila Chilena os nomes de todos os funcionários americanos “que se desempeñabam en esa sede diplomática al momento del golpe militar”. E novamente Carroza implica no caso a Henry Kissinger, duplamente autuado em ações paralelas e antigas, por seu papel no assassinato do Gal. Schneider e na articulação da Operação Condor.
Caso se comprove a implicação dos acusados – além de Edwards, mais de cem civis e militares – as penas poderão somar de 5 a 20 anos de prisão em regime de segurança máxima, por crimes que vão da associação ilícita e traição por homicídio, lesões graves, incêndio, danos à propriedade do Estado, e no caso dos militares, por espionagem e traição. A conjura deixou um saldo de 3.500 mortos e dezenas de milhares de torturados
“Operação Colombo”: segundo processo contra Edwards envolve Brasil
Em 24 de junho de 1975, as bancas de jornais em Curitiba luziam o jornal “Novo O Dia”, e alguns leitores de provecta idade imaginaram tratarse de um relançamento do saudoso O Dia, publicado na capital paranaense de . Notícia comum durante a ditadura Médici, sua manchete denunciava mais uma ação “terrorista”. Esta, porém, era atípica, algo sem propósito: relatava um acerto de contas nas próprias fileiras de um grupo de “extremistas” chilenos, com 120 baixas na Argentina. No mesmo dia, a mesma notícia era estampada na Argentina pela revista “Lea”, com uma ampla listagem da identidade dos chilenos. Em Buenos Aires, a agência UPI pescou e reverberou a “fuzilaria”. No dia seguinte, 25 de junho, a notícia era alardeada pelo jornal La Segunda, do Grupo El Mercurio, com o seguinte título:”Exterminados como ratazanas” (vide “imagem”), e o próprio jornalão El Mercurio escrevia: “Identificados 60 miristas ejecutados por sus propios camaradas”.
Novo O Dia, pseudo-jornal da DINA chilena, publicado em Curitiba, em 23 de junho 1975
Em seu despacho, o secretário de imprensa de Pinochet, Federico Willoughby, recebia uma fotocópia da matéria, com a missão de comentá-la para a imprensa, mas sustou-a, desconfiado. Pediu à assessoria ligar para a embaixada do Chile no Brasil e horas depois teve a confirmação: o tal jornal “Novo O Dia” não existia, era fake, a revista “Lea” também! Ali começaram os problemas para Willoughby, quem rapidamente intuiu a origem da “notícia”.
Daqui a alguns anos, talvez os historiadores coincidam em descrever o Chile da “era Pinochet”, com reverberações em sua atual democracia amputada, como o território latino-americano do mais denso, espúrio e repulsivo emaranhado de conspirações e atentados contra opositores e vizinhos, alguns dos quais descaradamente praticados longe de suas fronteiras, como o assassinato do embaixador Orlando Letelier, em Washington, e do Gal. Alberto Bachelet em Buenos Aires. Contudo, na “Operação Colombo”, pouco conhecida no exterior, o Terrorismo de Estado de Pinochet se superou em criatividade criminosa, ao combinar uma campanha de extermínio de presos políticos com uma pérfida montagem midiática.
Uma das primeiras vítimas do terrorismo da extrema-direita chilena foi o Detetive da PDI, Luis Emilio Colombo Morales, morto aos 36 anos em circunstâncias misteriosas, logo vendidas por seus superiores como “suicídio”. Dois meses antes da eleição de Allende, Colombo integrava a Brigada de Inteligência Política, denominada Brigada Móvil. As investigações oficiais sobre sua morte foram rapidamente encerradas sem provas de um assassinato, tese defendida por seu filho Milton Colombo.
Em seu livro “Mis Investigaciones sobre la Mafia” (2003), Milton relata sua luta diante do Quinto Juizado de Santiago para reabrir as investigações sobre a morte de seu pai, que descreve como portador de informações sigilosas sobre grupos conectados com a CIA em para o planejamento de atentados e sequestros de militantes de esquerda. Milton suspeita que a morte de seu pai foi “queima de arquivo”, e acusa a polícia de ocultamento de informação. Teimoso, denunciou o caso à Corte Interamericana de DDHH da OEA.
Com sua morte, Colombo entrou para a história da investigação de crimes políticos no Chile como a metáfora de disfarce, ocultação e de operaçãos sob falsa bandeira, recursos aplicados à perfeição no “Caso dos 119”, como também é conhecido o massacre de 1975.
Em resumo: entre 1974 e meados de 1975, a DINA, polícia secreta de Pinochet, torturara até a morte 119 presos políticos e decidira apagar todo e qualquer vestígio para eventuais investigações futuras. Nesta decisão somaram-se o ódio visceral às vítimas com a desorientação de seus familiares, para que jamais encontrassem seus entes queridos – ódio de bestas humanas que mutilaram os presos com choques elétricos, arrancando suas unhas com alicates, estuprando as mulheres, enfiando objetos como facas, garrafas e até ratazanas em suas vaginas (como atestou o torturador Osvaldo Romo, aliás “comandante Raúl”, diante das câmeras de TV), depois do que eram empacotados em lonas, com pedaços de trilhos de aço presos aos pés e, finalmente, atirados ao mar por helicópteros – tudo conforme mandava o figurino do Centro de Instrução de Guerra na Selva, de Manaus, escola de tortura para onde Manuel Contreras, diretor da DINA, enviava seus sicários, acobertado por convênio com a ditadura Médici, que ajudara a derrubar Allende e agora armava e assessorava a ditadura Pinochet.
Coincidentemente, foi por causa das provas encontradas na “Operação Colombo” que em 2005 o eminente juiz Juan Guzmán Tapia cassou a imunidade de Pinochet, porque Manuel Contreras despachava diariamente com o ditador e executava suas ordens; foi o que Contreras reiterou em seu julgamento, que o condenou à prisão perpétua, e dez agentes de seus subordinados a penas que vão de 6 a 300 anos.
O arquivo do terrorista gay
As provas contra a DINA e Pinochet foram confiscadas pela Polícia Argentina em 1978 no apartamento de Enrique Arancibia Clavel, líder do atentado terrorista contra o Gal. Schneider. Em 1970, Clavel cruzara os Andes clandestinamente e se instalara em Buenos Aires, acoberto por elementos da extrema direita argentina. Em 1973, Pinochet anistiara os assassinos do Gal. Schneider, e Clavel retornara ao Chile, apresetando-se como voluntário à recém-criada DINA, que o reenviara a Buenos Aires, em dupla missão: espionar refugiados chilenos na Argentina, como também o governo argentino.
Em 3 de janeiro de 1974, o Presidente Juan Perón enviava uma carta ao Gal. Carlos Prats, refugiado na Argentina, advertindo-o que tomasse cuidado: “Vuelvo a recomendarle la mayor prudencia. Le escribo todo esto para que tome con seriedad esos incidentes alarmantes [Perón referia-se ao golpe no Chile e a reressão generalizada]. Usted es indispensable a los suyos, pero mucho más a su patria en desgracia… ¡No lo olvide! ¡Cuídese!”.
Perón sabia do que estava falando, Prats não: em 30 de setembro de 1974, Prats e sua esposa foram trucidados por uma bomba detonada pelo chileno-americano Michael Townley sob o assoalho de seu carro. Junto com seu chefe operacional, o Cel. Raúl Iturriaga Neumann, Clavel fora o coordenador do atentado.
Em 1975, a DINA dava início à sua operação “retirada de televisores”, como codificou cinicamente a ocultação de cadáveres de presos políticos, retirados de suas covas e “desaparecidos” no oceano Pacífico e em crateras de vulcões. Elemento de ligação na Argentina, em 16 de maio de 1975, Clavel escreve à central da DINA em Santiago: “Caso Colombo: Vicente me informó que Interpol Argentina envió todos los antecedentes como se habían solicitado el viernes 9 de mayo por vía aérea. Con esa información y previo consentimiento de COPIHUE SANTIAGO el operativo publicidad comenzará utilizando los servicios de Carlos Manuel Acuña, director de la Agencia periodística Prensa Argentina y también periodista del diario La Nación de Buenos Aires. Se tiene contactado un servicio de recortes de diarios para este caso”.
O “operativo publicidad” era a armação engendrada com o tal “Novo O Dia”, em Curitiba, e a revista “Lea”, em Buenos Aires. Quem plantou a notícia em Curitiba foi Gerardo Evangelista Roa Araneda, até 1964 lotado como adido de imprensa na embaixada do Chile, e durante o governo de Eduardo Frei como funcionário da Lan Chile no Rio, onde foi despedido em 1970 pelos correligionários de Allende. Reconhecido no Chile como integrante do Patria y Libertad, após o golpe de Pinochet foi recontratado, retornou ao Brasil como agente da DINA.
Mas Araneda não teria conseguido publicar sozinho o “Novo O Dia” em Curitiba – quem o ajudou?
Trama paralela que se escrevia na Argentina, em cumplicidade com elementos da “Triple A” porteña, criada pelo ministro López Rega após a morte de Perón, foram fotografados cadáveres mutilados e irreconhecíveis, de vítimas argentinas, sobre cujo corpo a DINA colocou carteiras de identidade de alguns presos políticos assassinados nas masmorras da DINA no Chile – estava montado o teatro de ilusões!
Arancibia Calvel era um psicopata de sorte: três vezes preso, três vezes foi solto na Argentina: preso pela primeira vez em 1978, por espionagem a favor do Chile, quando ameaçava eclodir a guerra do Beagle, foi indultado em 1981. A segunda prisão, em 1996, valeu-lhe a pena de prisão perpétua, como co-autor do atentado contra o Gal. Prats, logo reduzida e transformada em liberdade condicional, em 2008. Quatro anos antes, em 2004, foi condenado a doze anos de prisão pelo sequestro das refugiadas chilenas na Argentina, Sonia Díaz Ureta e Laura Elgueta Díaz, ocorrido em 1977 como operação do Plano Condor. O governo de Michelle Bachelet reclamava sua extradição, processo de negociação que se arrastou durante três anos, quando o juiz Esteban Righi determinou que Clavel devería retornar à prisão na Argentina. Morto com 17 facadas, Clavel foi declarado vítima de “crime passional” – será que Kissinger morrerá com uma mordida de um puma andino em sua jugular, durante um passeio em sua finca em Bariloche?
Autorizada pela Justiça Argentina, a reveladora confirmação foi encontrada no arquivo de Clavel em 1986 por Mónica González. Como autor da “notícia” publicada em Curitiba e Buenos Aires, e reverberada pelos jornais do Grupo El Mercurio, foi acusado com provas o jornalista Álvaro Puga, agente da DINA e ilustre colunista do vespertino La Segunda, de Agustín Edwards, também conhecido pelo pseudônimo Alexis.
O autor do processo contra Edwards, Juan Carlos Chávez Pilquil, filho de Ismael Dario Chavez.
Fonte: Jornal GGN