A autonomia do Bacen é um tema recorrente na mídia brasileira, criando uma pauta que o governo eleito se esforça para contornar. Sempre que o preço do dinheiro oscila, que “o mercado” deseja reaver valores de ativos financeiros perdidos, como um bumerangue, o tema reaparece.
Por Gloria Maria Moraes da Costa.*
Como um bumerangue, a discussão sobre a independência do Banco Central do Brasil (Bacen) é “arquivada” e logo retorna para a agenda político-econômica, ganhando destaque na mídia. Parece que no Brasil o debate caiu em desuso, ou quando existe é uma variação em torno do mesmo tema, ou posição política, como se o pensamento econômico fosse único. Basta haver um aumento da inflação, oscilação no câmbio, desaceleração da economia e o tema retorna apontando que qualquer outra posição que não aquelas afins ao pensamento liberal, dentre as quais destaca-se a independência do banco central, denotam, além de um erro crasso, a não compreensão por parte dos economistas que não abraçam esta bandeira das importantes funções dessa instituição.
Se a matéria é escrita, se procura ouvir a opinião de mais de um economista. Se a matéria é gravada em vídeo, convida-se debatedores que parecem discordar entre si. Entretanto, o que todos tem em comum é o fato de repetirem o mesmo mantra: um banco central tem que ser independente, e o Bacen está perdido no tempo. O que causa perplexidade, é que grande parte da população que ainda acompanha o noticiário político-econômico não entende, diga-se que com razão, porque o Bacen tem que ser independente. Compreende menos ainda porque ele é considerado dependente, mas acaba com uma leve noção de que ele vem servindo aos interesses do governo, mas acaba sem entender a que interesses deve ele servir.
No cerne da discussão que não é enfrentada, como se fosse um tabu no Brasil, os defensores da independência do Bacen criticam a condução da política monetária. Mas o que é a política monetária? Sem dúvida, é um instrumento importante para o controle da inflação e isto parece ser consenso no País. Porque todos estamos comprometidos com o controle inflacionário, os economistas do governo inclusive. Não há brasileiro que deseje a volta da inflação ao patamar de 2.477,15%, como a apurada no ano de 1993 pelo IPCA (nota 1). E nem a de 2002, quando este indicador atingiu 12,53% a.a., ultrapassando em muito a meta acordada com o Fundo Monetário Internacional (FMI).
A estabilidade de preços é um dos objetivos da política macroeconômica, sem dúvida, e o Bacen é uma instituição que pode desempenhar papel essencial para que se alcance este fim quando há inflação de demanda. Entretanto, existem outros objetivos, no caso brasileiro tão ou mais importantes que a manutenção da inflação dentro da meta. É bom que se esclareça que a política de metas é um tipo de política específica que o Brasil passou a adotar após a desvalorização do Real, em 1999, quando o projeto liberal foi aprofundado (nota 2). Os condutores da política econômica brasileira definiram o regime de câmbio flutuante e o de metas inflacionárias como linhas mestras de suas políticas macroeconômicas de curto prazo. Expandir o nível de emprego, promover o crescimento econômico, ampliar o padrão de desenvolvimento e redistribuir a renda e a riqueza, almejando uma sociedade mais equânime, objetivos relevantes para um país com o passivo social do Brasil ficaram condicionados durante anos aos sucessivos acordos com o FMI. Prioridade foi dada às políticas de curto prazo.
Todos nós, os brasileiros, queremos um País melhor. Com estabilidade política e econômica, sem tanta corrupção por parte de nossos políticos e empresários. Temos todos desenhado o Brasil que poderia ou deveria ser, com condições melhores para o desenvolvimento dos setores produtivos e maior oferta de serviços públicos de qualidade para seus cidadãos. Queremos um IDH (nota 3) de primeiro mundo, preferencialmente igual ao da Noruega, e crescimento condizente com o dos países asiáticos, tal como o da China. Mas, faça-se a ressalva: desde que nos seja garantido o padrão de consumo dos EUA. Todos os países desenvolvidos, sem exceção, tiveram processos longos de desenvolvimento e em algum momento de suas trajetórias seus bancos centrais foram instados a fazer bem mais do que controlar a inflação e a oferta de moeda. Foram colocados a serviço do projeto nacional que esteve em curso, emitindo títulos da dívida pública, favorecendo setores e segmentos que foram considerados essenciais ao desenvolvimento. Seus bancos centrais nunca foram independentes de seus governos e interviram na regulamentação do sistema financeiro, no mercado de crédito e de seus agentes, e praticaram políticas monetárias que expandiram ou retraíram a oferta de moeda, criando entre governos e sistema bancário financeiro uma relação de cumplicidade. Certo é que os bancos centrais e a política monetária nunca foram apartados dos projetos de governo.
É bom que se diga que o poder de um banco central de frear a variação de preços, prevenindo a inflação, é limitado. Numa dada sociedade, depende do custo do dinheiro e também da capacidade de funding do setor bancário, do lucro, da arbitragem, da produtividade, dos fluxos de capitais e das reservas cambiais. Logo, seu poder de regular a oferta de moeda é restrito e não pode ser condicionado ao aumento da taxa de juro básica da economia, no caso brasileiro, a Selic. Um banco central, ao cumprir o papel de banco do governo, sendo um agente de financiamento, tem limites para impor uma taxa de juros. Por ser a instituição que regulamenta o sistema financeiro nacional, o banco central é também um agente fiscalizador. Ao ser o emprestador de última instância, sendo o banco dos bancos, o banco central atua sobre o estoque nominal de moeda, promovendo sua expansão ou contração. Por fim, como também tem por função proteger e garantir o valor de troca da moeda nacional em relação à moeda estrangeira, é um banco de câmbio. Frente a variáveis tão relevantes para todo o sistema produtivo de um país, então porque a independência do Bacen aparece no noticiário como imperativa?
A doutrina de independência dos bancos centrais – sim, porque é bom que se diga que é uma doutrina – surgiu nos países desenvolvidos e com mercados financeiros complexos, tendo por base a teoria monetarista, cujo ponto de partida e de chegada é o equilíbrio, e não a teoria do desenvolvimento, cujo pressuposto é a instabilidade. No Brasil, a questão da independência do Bacen vem funcionando como uma “verdade de mercado”, e seus defensores não explicitam que, por trás dos argumentos que sustentam, além do controle da inflação, se encontram outros postulados. Ter um banco central independente significa que esta instituição terá autonomia para decidir a estabilidade de preços desejada para o País, mesmo que isto promova o encarecimento dos investimentos; mesmo que melhores níveis de emprego sejam postergados; ainda que o governo aumente sua despesa com o pagamento de juros sobre os títulos da dívida pública, deixando de realizar despesas nas áreas sociais. É desejável que haja entendimento entre os condutores da política fiscal e da política monetária e que ajustem o nível dos gastos públicos e o juros, mas é bom que se entenda que há um projeto de governo em andamento, mesmo que mereça críticas.
Não por acaso, a autonomia do Bacen é um tema recorrente na mídia brasileira, criando uma pauta que o governo eleito se esforça para contornar. Sempre que o preço do dinheiro oscila, que “o mercado” deseja reaver valores de ativos financeiros perdidos, como um bumerangue, o tema reaparece. É bom lembrar que discutir os limites da atuação do Bacen é, antes de tudo, entender que autonomia é esta desejada e cantada no Brasil em verso e prosa. Elegemos o governo atual para que o Bacen determine o estoque nominal de moeda e os preços básicos, como o juros e o câmbio, favorecendo os detentores de ativos financeiros, ou escolhemos pelo voto direto a via do desenvolvimento?
Notas
1) Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), calculado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), com base em metodologia que abrange as famílias com rendimentos mensais compreendidos entre 1 (hum) e 40 (quarenta) salários-mínimos, qualquer que seja a fonte de rendimentos, e residentes nas áreas urbanas de 12 regiões do País, o que equivale a, aproximadamente, 90% das famílias brasileiras. Considera a variação dos custos dos gastos no período do primeiro ao último dia de cada mês de referência e no período compreendido entre o dia cinco e doze do mês seguinte, Sua série histórica tem início em janeiro de 1980, com a coleta de dados iniciada ao final de 1979.
2) A teoria dos regimes tem sua origem na 1970, no campo das relações internacionais e da economia política entre novas correntes realistas e liberais. Para os neorrealistas, o poder ganha centralidade, enquanto que para os neoliberais a centralidade recai sobre as instituições e os diversos interesses dos agentes cujo objetivo é maximizar seus ganhos. Os critérios para a determinação de um regime são os princípios e crenças, as normas, as regras e os procedimentos. O regime de metas brasileiro segue o padrão internacional: metas definidas para dois anos à frente, com intervalo de tolerância de 2 pontos, sem cláusulas de escape.
3) O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) é um indicador desenvolvido em 1990 e é utilizado desde 1993 pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), composto por dados relativos à expectativa de vida ao nascer, à educação e ao PIB (PPC) per capita.
*Gloria Maria Moraes da Costa, economista, é professora da Universidade Mackenzie-Rio e coordenadora interina do Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americanos (Cebela).
Fonte: Carta Maior