Kerry: primeira baixa na guerra dos EUA

kerryPor M K Bhadrakumar.*

Não é fácil atacar militarmente país muito distante. Pior, se feito em câmara lenta. E a parte mais difícil das acrobacias diplomáticas dos EUA, na propaganda para promover os ataques contra a Síria, cabem ao Secretário de Estado, John Kerry. Mas o estresse está cobrando seu preço e já parece indubitável que, afinal, Kerry será o primeiro dano colateral de algum ataque militar dos EUA contra a Síria.

Por mais, ou menos, que o ataque consiga (ou não) debilitar as forças armadas da Síria e reduzir suas capacidades militares, as capacidade de Kerry para continuar como Secretário de Estado do presidente Obama já foram seriamente “degradadas”. Ainda restam três anos inteiros de presidência a Obama, e três anos, em política, é muito tempo.

De fato, a credibilidade de Kerry como mais graduado diplomata dos EUA está sob grave escrutínio. A parte triste é que Kerry talvez nem mereça isso, numa carreira brilhante na vida pública, porque não é novato do mundo da diplomacia internacional. Mas a tragédia de Kerry foi ter sido encarregado de defender o indefensável.

Três gafes gravíssimas, no curto espaço de uma semana, é terrível para o currículo de alto diplomata, em quaisquer circunstâncias. Começou semana passada, no depoimento à Comissão de Relações Exteriores do Senado, quando, sem mais nem menos, Kerry disse que a resolução do Congresso na Autorização para Uso de Força Militar contra a Síria não deveria proibir expressamente o uso de soldados – “coturnos em solo”.

A lógica de Kerry não era ruim. Afinal, podem surgir necessidades novas em qualquer guerra, e a doutrina militar dos EUA prescreve o emprego de força máxima para aniquilar qualquer inimigo. Ruim foi o modo de dizer, que praticamente convocou para dentro daquele salão todos os fantasmas da Mesopotâmia e do Hindu Kush.

Ante a reação dos senadores, Kerry provavelmente percebeu – o Secretário de Defesa, Chuck Hagel, sentado ao seu lado, passou-lhe um papel no qual rabiscara “?” – a própria gafe.

Depois se seguiram duas subgafes para encobrir a gafe original. Kerry acrescentou que descartava a possibilidade de pôr “coturnos” na Síria em missões de combate ou envolvidos na guerra civil. Ora! E por que seriam necessários os tais “coturnos em solo” em país independente e soberano, se não para reagir a alguma forma de agressão?

Kerry percebeu que tinha de explicar a subgafe. Então… saiu-se com uma espantosa confissão, de que estaria apenas “pensando em voz alta”, quando dissera que a opção “coturnos em solo” não deveria ser expressamente rejeitada no texto final da autorização do Congresso.

Kerry acrescentou então, rapidamente, que, afinal, era só uma questão de palavras, e que confiava no talento verbal dos nobres congressistas para fazerem crer que se opõem totalmente ao envio de soldados norte-americanos à Síria, mas de tal modo que deixassem espaço suficiente para que Obama pudesse mudar tudo, no caso de a “ação limitada” de Obama converter-se em guerra total para mudança de regime.

A segunda gafe de Kerry teve a ver com o problema da al-Qaeda na Síria. Kerry manifestou confiança de que a oposição “moderada” seria a força principal na Síria, e que os grupos da al-Qaeda não passariam de coadjuvantes. Estimou que os combatentes islamistas fanáticos não passariam de 15% do exército “rebelde”.

Claro que não convenceu os senadores que leem jornais e veem televisão, mas os senadores foram polidos. Nada polido, porém, foi o presidente Vladimir Putin: disse imediatamente que Kerry estava “mentindo”, porque o problema da al-Qaeda na Síria havia sido séria e longamente discutido entre Moscou e Washington, e Kerry sabia muito bem disso.

Kerry, claro, optou por fazer-se de desentendido. Mas tudo isso se juntou e virou um picnic quando, na 2ª-feira, ele pôs abaixo qualquer estratégia que Obama tivesse para a guerra na Síria, com espantosíssima declaração pública, ao responder a pergunta capciosa de uma jornalista da CBS, Margaret Brennan, sobre se haveria meio pelo qual ainda seria possível evitar um ataque dos EUA à Síria. Eis o que Kerry respondeu:

 Claro que há. Se ele [Assad] entregar todas as suas armas químicas à comunidade internacional, semana que vem. Entregue. Entregue tudo, sem demora, e permita plena e total transparência. Mas ele não fará isso, não pode ser feito, obviamente. 

Em horas, já era o inferno. A alta voltagem do drama foi belamente capturada pelo conhecido romancista nigeriano-norte-americano Teju Cole (autor de Open City), que tuitou:

Kerry: Não atacaremos, se vocês fizerem essa coisa impossível./Syria: Oh… OK, faremos./Rússia: Eles farão./ONU: Farão./Kerry: Mas que merda!

Desde então pipocaram todos os tipos de teorias conspiracionais – inclusive de um plano secreto Rússia-EUA para ajudar Obama a escapar com elegância de ter de atacar a Síria. Mas a simples e honesta verdade é que Kerry cometeu mais uma gafe, e, dessa vez, a coisa ganhou vida própria.

O Ministro de Relações Exteriores da Rússia, Sergey Lavrov (o qual, vale lembrar, joga hockey no gelo) saltou num segundo, sobre Kerry, e tomou-lhe o puck:

 Nós [a Rússia] não sabemos se a Síria concordará, mas se pôr as armas químicas sob controle internacional ajuda a evitar ataques militares, nós já começamos a trabalhar sobre essa possibilidade.

Estamos entrando em contato com as autoridades sírias para definir termos de um acordo, para não só entregar os arsenais químicos a controle internacional mas, também, para que sejam subsequentemente destruídos, e para que a Síria se una à Organização para Proibição de Armas Químicas.
Já entregamos proposta nesse sentido ao Ministro de Relações Exteriores da Síria, Walid al-Muallem, que felizmente está em Moscou, e esperamos resposta rápida e positiva.

Muallem, claro, nem se deu ao trabalho de consultar Damasco:

Ouvi atentamente o que disse o ministro Lavrov. Declaro que a Síria, movida pela preocupação com preservar a vida dos sírios e a segurança do país, aceita a iniciativa russa.

E nem se pode dizer que Rússia e Síria estivessem tirando vantagem da diferença de horário entre Washington e Londres (de onde Kerry falou): David Cameron também foi “enrolado” na gafe de Kerry. O Primeiro-Ministro britânico também disse que o excelente plano russo, de pôr as armas químicas sírias sob controle internacional, era “imensamente bem-vindo”.

Nem bem o pessoal em Washington soube da oferta de Kerry, do plano russo e da resposta da Síria, começou a operação “abafa”. A porta-voz do Departamento de Estado, Marie Harf disse que o chefe dela falara “hipoteticamente” e “só retoricamente” e jogou água fria no plano russo, que seria “altamente improvável”. Esclareceu também que “o secretário [Kerry] não fez proposta alguma”.

O porta-voz da Casa Branca, Jay Carney estava, pode-se dizer, em visível desespero, na coletiva diária com jornalistas; prometeu dar “uma boa olhada” na proposta, ao mesmo tempo em que já dizia que tudo aquilo só fora possível por causa da ameaça real de um ataque militar à Síria feita por Obama; e que, assim sendo, ele, Carney, aconselhava o Congresso a prosseguir na votação da autorização para a guerra, como se nada tivesse acontecido [pouco depois, o presidente do Senado suspendeu a votação (NTs)].

Não há dúvidas de que a Casa Branca já sabia que Kerry, inadvertidamente, rompera a aura do esperado discurso de Obama na 3ª-feira à noite, e fechara qualquer possibilidade de o Congresso aprovar coisa alguma.

Nada pode ser pior que o antecessor de alguém num cargo ter de re-assumir o comando, para remendar erros do “atual”. Pois foi o que a ex-secretária de Estado Hillary Clinton teve de fazer, ao sair de uma reunião com Obama:

Se o regime sírio entregar imediatamente seus estoques ao controle internacional como sugeriram o secretário Kerry e os russos, será passo importante. Mas que não seja mais um pretexto para adiamento ou obstrução.

A lógica simplória de Clinton é a seguinte: a Síria pode ir em frente e entregar seus estoques em uma semana, se quiser, o que, de qualquer modo é logisticamente impossível de executar; mas mesmo assim os EUA insistirão no plano de guerra, porque é o que nossos parceiros sauditas desejam.

Essa, pelo menos, não mentiu: a questão das armas químicas não passa de álibi para a intervenção militar norte-americana, nunca foi a razão principal. Bastaria que Kerry conseguisse entender essa simples verdade.

As coisas viraram total confusão em Washington. Em curso normal, se tomariam providências para que, nesses dias tormentosos, o Secretário-Geral da ONU já estivesse instruído sobre o que dizer. Também não deu certo. Nesse caso, Ban Ki-moon já se manifestara e falara o mais firmemente possível contra ataque militar dos EUA à Síria, na recente reunião do G-20 em São Petersburgo.

E, depois do anúncio feito por Lavrov ontem, Ban disse que estava “considerando a possibilidade de convocar o Conselho de Segurança da ONU e exigir a imediata transferência das armas químicas e estoques químicos precursores para locais, no território sírio, onde possam ser armazenados em segurança e destruídos”, se ficasse provado que se usaram armas químicas.

Para Obama é xeque e xeque-mate. Mas Obama é ágil com as palavras. E o discurso que fará hoje à noite ao país, no qual se espera que apresente o melhor argumento que tenha a favor de ataque militar contra a Síria, promete ser um clássico.

[*] MK Bhadrakumar foi diplomata de carreira do Serviço Exterior da Índia. Prestou serviços na União Soviética, Coreia do Sul, Sri Lanka, Alemanha, Afeganistão, Paquistão, Uzbequistão e Turquia. É especialista em questões do Irã, Afeganistão e Paquistão e escreve sobre temas de energia e segurança para várias publicações, dentre as quais The HinduAsia Times Online e Indian Punchline. É o filho mais velho de MK Kumaran (1915–1994), famoso escritor, jornalista, tradutor e militante de Kerala

Asia Times Online, Kerry becomes first war casualty

Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu.

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