Por Viegas Fernandes da Costa.*
Sim, os números conseguem ser mais ficcionais que a própria ficção. Sempre acreditei nisso. E mais, diferentemente da ficção, que procura criar uma verdade que se sabe subjetiva, os números têm a pretensão de se afirmarem enquanto verdade objetiva, verdade verdadeira, reprodução asséptica da realidade. Engano monstruoso! Os números criam fantasias perigosas. Um exemplo disso está apresentado no novo Atlas de Desenvolvimento Humano, que coloca Santa Catarina como o estado brasileiro com os melhores índices de desenvolvimento humano país, levando muitos a crer que vivemos, efetivamente, em um bom lugar, em um lugar “civilizado”. Não é verdade. Quem mora em Santa Catarina sabe que isto não é verdade.
Quem visita nossas escolas sem estruturas adequadas para o desenvolvimento das trocas simbólicas e apreensão crítica dos saberes historicamente inventados, quem já fixou seus olhos nos olhos desestimulados dos nossos professores que a cada ano lutam para receber o piso do magistério sistematicamente questionado por nosso governador, quem já presenciou a barbárie perpetrada contra seres humanos em nossas cadeias, presídios e penitenciárias, quem já procurou atendimento hospitalar de emergência ou de complexidade em algum dos nossos hospitais, quem já necessitou de acolhimento público a alguém querido acometido de sofrimento psíquico, quem já se debruçou sobre nossas estatísticas de suicídios, quem já dirigiu por nossas estradas e presenciou a selvageria genocida dos nossos motoristas, quem já se deu ao trabalho de contar e visitar nossas parcas e pobres bibliotecas, quem já se deparou com o estado de abandono e precariedade da maior parte dos nossos museus e do nosso patrimônio histórico, quem já adentrou tifas e servidões espalhados por nossos interiores, ou subiu nossos morros, ou embrenhou-se no mais profundo dos nossos vales, e conheceu a miséria material representada na fragilidade das residências que de lar só possuem o nome, quem já sentiu o cheiro provocado pela falta de saneamento básico, ou adoeceu dos miasmas, dos ratos e de toda espécie de pragas que proliferam no lixo destratado, enfim, quem conhece Santa Catarina para além dos números e gráficos sabe que Santa Catarina está longe, muito longe, de ser um lugar “civilizado”.
Há, certamente, quem queira comparar Santa Catarina a outros estados brasileiros, e assim conclua que efetivamente estamos melhores. Mas não é este o caso. Comparações sempre são perigosas e parciais. Tente dizer a um de nossos moradores de rua que seu semelhante, no Piauí, encontra-se em situação pior. Não se encontra. Também não é o caso de afirmarmos que há outros estados em situação melhor. A questão principal é reconhecermos que Santa Catarina está distante, muito distante, de oferecer condições de vida dignas à maioria dos seus habitantes. Este é o caso. Vivemos a barbárie maquiada nas séries estatísticas. Estufamos o peito e em nosso ufanismo bobo dizemos a quem quiser ouvir que somos o melhor lugar do Brasil para se viver. Balela irresponsável que apenas demonstra o grau de nossa ignorância.
* O autor é Historiador, Escritor e Professor do Instituto Federal de Santa Catarina.
Concordo, é verdadeiramente falaciosa essa pretensão de que SC teria um patamar alto de desenvolvimento. A impressão é que se toma por ‘qualidade de vida’ o contato com as belezas naturais e não as relações de trabalho, a organização social e os serviços públicos. A população daqui precisa deixar de ser omissa e subserviente e participar mais diretamente dos rumos do estado.