Monsanto e copyright: algo não bate certo

Monsanto1Uma das questões mais interessantes no debate sobre os OGM (os organismos geneticamente modificados) é a questão do copyright, o direito de autor.

Não se fala aqui das possíveis consequências dos OGM sobre a saúde, o meio ambiente ou mais ainda: apenas e só do aspecto jurídico. Que não é nada secundário.

Então: o copyright diz respeito à chamada propriedade intelectual. Isso é: eu invento algo, reclamo o direito de autor acerca deste algo e, uma vez reconhecido, este algo não pode ser utilizado por outros sem o meu consentimento. Desta forma, sou o único que pode utilizar o algo para fins comerciais e ganhar com isso.

Poucos sabem que o copyright é um dos sistemas favoritos para não pagar taxas & impostos, pois em alguns Países (como a Holanda), os produtos cobertos por copyright não estão sujeitos a tributação.

Um exemplo banal: o Leitor decide produzir sapatos.
O Leitor mora no Brasil e os sapatos são produzidos no Brasil. No mesmo País são vendidos também, com grande sucesso. Como ganhar mais, evitando a tributação?
Simples: é só abrir uma subsidiária, com sede na Holanda, que detém os direitos de autor sobre todos os sapatos que o Leitor produz. Obviamente, esta subsidiária começará logo a facturar muito, impedindo ao Leitor de fazer o mesmo no Brasil. Mas o Leitor é feliz porque:

  • a subsidiária holandesa não paga taxas ou impostos sobre a propriedade intelectual (os sapatos produzidos)
  • a subsidiária holandesa pertence sempre ao Leitor.

Ate aqui nada de estranho. Neste exemplo, o copyright é usado de forma perversa (para não pagar impostos), mas existe a necessidade objectiva de “compensar” quem fazer uma invenção ou uma inovação útil. O mundo está cheio de boas invenções, muitas vezes frutos de décadas de estudo e trabalho: tudo isso tem um custo e tem que ser reconhecido.
Podem ser grandes ou pequenas invenções: por vezes é suficiente um ínfimo pormenor para melhorar algo, mas o que é premiado não é o tamanho, são o engenho e a criatividade que merecem ser reconhecidas.

Em qualquer caso, passado um tempo, os direitos de propriedade cessam de existir e a invenção torna-se de domínio público. O que é justo também: se uma invenção for válida, não é correcto que pertença para sempre a uma só pessoa ou empresa.

Aqui seria possível discutir acerca da duração destes direitos (ou do facto de existir, no mundo dos softwares, os produtos open source, sem direitos de propriedade), mas por enquanto voltamos ao assunto principal: os OGM.

Bill Gates, Monsanto, sementes, dementes


Recentemente, o simpático Bill Gates (Microsoft) decidiu intervir com uma apreciação no âmbito dum processo legal entre um agricultor e a simpática Monsanto. E decidiu intervir não tanto como accionista da Monsanto, quanto para defender “o princípio”, a “nobre causa”. Porque, como explica o mesmo Gates:

Na ausência de protecção dos direitos de autor (no caso do processo Monsanto), isso poderia abrir brechas perigosas em outras áreas contíguas ou semelhantes, como a do software.

Em suma, diz Gates, se a justiça não defende, quem é que vai fazer investimentos, pesquisas, desenvolvimentos? É precisa a garantia de que o nosso trabalho possa gerar lucros.

Correcto. Falamos aqui não de universidades ou instituições públicas, mas de empresas privadas. Que, como todas as empresas privadas, querem obter ganhos das actividades.

Todavia, é o caso de espreitar o que sentenciou a Suprema Corte do Canadá no caso em debate, a Monsanto contra Percy Schmeiser.

  • independentemente da forma como as plantações dum agricultor foram contaminados (acidentalmente ou propositadamente) com os sementes modificadas geneticamente e patenteadas, as plantas resultantes pertencem à Monsanto (isso é, ao titular dos direitos) e não ao proprietário da terra.
  • não importa qual a percentagem de plantas “contaminadas”, pois não existe um limite (10%, 30%, 50%…) abaixo do qual a regra acima não deve ser aplicada: aplica-se e ponto final.
Resumindo: eu tenho uma horta e uma lufada de vento faz cair no meu terreno uma semente da Monsanto (talvez utilizada pelo vizinho)? A colheita do próximo Verão já não pertence a mim mas a Monsanto. Mas era apenas uma semente? Olhem: azar.
Pergunta: como é que um juiz (ou um Supremo Tribunal, como neste caso) podem subscrever aberrações como estas? Existe uma explicação.
O ladrão e o cofre
A Monsanto tinha reparado que alguns agricultores compravam uma determinada quantidade de sementes, que depois não eram utilizadas todas: uma parte era guardada e utilizada no ano seguinte. Isso significa que Monsanto recebia os direitos apenas em ocasião da primeira colheita, não daquela do ano seguinte (quando o agricultor utilizava as sementes guardadas no ano anterior).
Uma catástrofe.
Perante uma tal situação melindrosa, o Supremo Tribunal não teve dúvida: é tudo da Monsanto, mesmo que a contaminação tenha acontecido por mero acaso e independentemente das quantidades envolvidas. Um decisão demencial, que todavia satisfaz a Monsanto. E é isso que conta.Mas aqui deparamos com um pequeno problema: faz sentido falar de copyright no caso de pesquisa e desenvolvimento de organismos geneticamente modificados, mutações genéticas tão delicadas e poderosas capazes de alterar as leis da Natureza? É justo que uma empresa privada possa alterar as leis naturais com consequências ainda desconhecidas e obter lucros disso?

O princípio da propriedade intelectual não está em causa quando houver transparência: mas neste caso? Se a pesquisa acerca dos OGM for realizada por aqueles que obtêm enormes benefícios financeiros, quem garante a transparência na investigação e no desenvolvimento? Quem pode garantir a integridade absoluta, e não, por exemplo, o desejo de mascarar ou subestimar os possíveis efeitos colaterais?
A situação actual é a mesma que permitir que um ladrão invente um novo tipo de cofre: há um evidente conflito de interesses, e não é resolvível.
Ipse dixit.

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