Imagens de africanos começaram a circular pela Europa no período colonial. Exposição mostra como essas fotos ajudaram a moldar a visão que os europeus têm da África.
O calmo bairro de Burlafingen, na pequena cidade bávara de Neu-Ulm, não é o lugar onde se espera encontrar um dos mais ambiciosos espaços para a exposição de fotografia contemporânea e videoarte na Europa.
Mas em uma tranquila rua residencial, cercada por campos abertos, encontra-se a Coleção Walther, um conjunto de quatro prédios com um arquivo único de imagens, com foco na fotografia da Ásia e da África.
O complexo abriga, atualmente, a exposição Distância e desejo: encontros com o arquivo africano. A mostra é a mais recente de uma série de eventos que exploram a fotografia africana.
“A África é um dos lugares onde a fotografia é feita e reinventada dentro de um contexto muito diferente e onde a fotografia foi fundamental para a circulação de uma determinada imagem da África no Ocidente”, diz a sul-africana Tamar Garb, historiadora de arte e curadora da exposição em Neu-Ulm.
Criando a imagem da África
A invenção da fotografia coincidiu com a aceleração do colonialismo no século 19 e o surgimento de novas disciplinas acadêmicas, como a antropologia e a etnologia. A partir da década de 1860, a câmera fotográfica passou a ser usada como dispositivo para coletar informações, registrar sociedades e classificar os indivíduos dentro do contexto colonial.
Enquanto as fontes dessas convenções pictóricas podem ser encontradas em pinturas, desenhos e gravuras antigos, a exposição destaca como a fotografia tornou possível a reprodução de imagens em larga escala, o que possibilitou sua circulação ao redor do mundo, tornando-as, assim, fundamentais para a definição da perspectiva externa sobre a África.
“Surgiu todo um mercado para a criação de estilos fotográficos que então eram vendidos ao redor do mundo. As pessoas colecionavam essas fotos, as colocavam em álbuns e enviavam a parentes. Assim, a fotografia foi responsável pela proliferação dessas imagens dos africanos, por isso foi uma forte e importante referência na construção de uma visão moderna da África”, diz Garb.
Uma complexa história da identidade
A primeira parte da exposição é composta por obras do fotógrafo sul-africano Santu Mofokeng, um dos quatro artistas que representaram a Alemanha na Bienal de Veneza deste ano, e de Alfred Martin Duggan-Cronin, sul-africano nascido na Irlanda.
Apresentado como uma espécie de contraponto a essas obras, o projeto de Santu Mofokeng O álbum de fotografia negro: olhe para mim: 1890-1950 revela como africanos escolheram ser representados diante das câmeras em fotografias encomendadas.
Coletados por Mofokeng no começo dos anos 1990 e exibidos numa projeção de slides, esses antigos retratos de estúdio mostram negros urbanos da classe média e trabalhadora no final do século 19 e começo do século 20 e contam uma complexa história de identidade, aspirações e autopercepção.
Para Mofokeng, os retratos evidenciam as devastadoras consequências do apartheid para a sociedade sul-africana, o extermínio da classe média negra e o papel que a fotografia desempenhou na sustentação de teorias pseudocientíficas de hierarquia social.
“Olhando para O álbum de fotografia negro, você percebe os danos que o apartheid causou no país”, disse Mofokeng à DW. “De um lado você tem os colonizadores, e basicamente você está tentando ser como eles. As pessoas excluídas tentam achar alguma maneira de entrar pelas bordas.”
Fotografia encenada
Os africanos também tiravam fotografias nesses estúdios. As fotografias apresentadas por Mofokeng em O álbum de fotografia negro mostram os africanos vestidos com roupas ocidentais, assemelhando-se a tipos vitorianos de cartola e fraque.
“É muito interessante quando você olha para várias dessas fotografias históricas porque você vê o contraste entre as convenções europeias, como o estúdio vitoriano com fundo preto, e um homem posando com uma azagaia ou uma espada. São misturas engraçadas e altamente improváveis, produtos de uma fotografia encenada”, diz Garb.
Esses estúdios também foram usados para fazer os populares cartões postais “étnicos” que circulavam amplamente no Ocidente. Uma seleção deles é apresentada na segunda parte da exposição, chamadaPoética e política.
Novas perspectivas
A terceira e última parte da exposição, Reconfigurações contemporâneas, apresenta fotografias e vídeos de artistas africanos contemporâneos que fazem referência aos arquivos fotográficos coloniais em seu trabalho.
Obras de Samuel Fosso, Philip Kwame Apagya e Kudzanai Chiurai recriam retratos encenados em estúdio e encontrados em arquivos, fazendo uma crítica a estereótipos e identidades.
Na série Daqui eu vi o que aconteceu e chorei, Carrie Mae Weems utiliza fotografias antropométricas de afroamericanos de meados do século 19 e sobrepõe textos poéticos às imagens.
Nos últimos anos, fotografia africana e sobre a África vem ganhando considerável destaque no mundo da arte, algo que Garb acredita estar ligado à incrível diversidade e densidade histórica do continente.
“Com a globalização e o reconhecimento que a periferia é o novo centro, há uma espécie de tardio reconhecimento, em todo o mundo, de que tudo não necessariamente deriva de fontes e modelos europeus, mas que práticas poderosas, locais e específicas fundiram-se em diversos lugares. A África é apenas um deles”, conclui a curadora.
“Distância e desejo: encontros com o arquivo africano” está em cartaz na Coleção Walther em Neu-Ulm até 17 de maio de 2015.
Fonte: DW.