Cidadania e Estado Laico: reflexões em torno do momento atual brasileiro

estado laico_thumbPor Ivone Gerbara.

Carrego em mim um mal estar quando grupos em nome de sua fé religiosa e da necessidade de um estado laico reivindicam leis a favor ou contra as mulheres e outros grupos. Ou ainda, quando grupos religiosos em nome de sua fé querem interferir nas leis do Estado. Embora as posturas possam ser socialmente e politicamente diferentes esses grupos estão usando as mesmas moedas de troca e as mesmas palavras justificando discursos muitas vezes opostos.

Quando católicas falam em nome de sua fé católica para exigir que o Estado aprove ou não leis em favor das mulheres, estas estão de certa forma afirmando o contrário de um estado laico. Quando igrejas evangélicas se arvoram a manifestar-se publicamente contra qualquer lei do Estado em nome de sua fé religiosa estão igualmente negando a existência de um estado laico. Será que nossa cidadania não é suficiente? Será que necessitamos sempre do apoio ou do uso de argumentos religiosos interpretados conforme nossos interesses? O problema é bastante complexo e não temos respostas cristalinas para ele.

A meu ver, um estado laico não deveria se guiar através de pressões religiosas, mas através da vontade popular manifestada a partir das diferentes instâncias de representação, das manifestações populares de diferentes formas e inclusive dos plebiscitos e meios de comunicação social.

Por exemplo, quando mulheres católicas ou protestantes pedem às suas igrejas uma mudança de teologia e de legislação em relação a certos assuntos que tocam a vida dos fiéis as coisas são diferentes. Ficamos no âmbito da comunidade de fé e de uma mesma tradição ético-religiosa apesar da multiplicidade de interpretações e conflitos. Mas, mesmo dentro desse âmbito fica sempre presente a liberdade de consciência que deveria gerir as decisões a ser tomadas. Entretanto, é preciso dizer com clareza, que no cotidiano as decisões que tomo nem sempre são em consonância com a fé religiosa que professo ou da igreja à qual pertenço. Muitas vezes tomo decisões contra a minha consciência e contra aquilo que julgo ser minha convicção, pois preciso naquele instante “salvar” a minha vida. Aqui ‘minha vida’ parece valer mais do que posturas individuais de fé outrora assumidas, muito embora nem sempre seja possível ter clareza sobre esse delicado assunto. Tudo depende das pessoas e das situações. Tudo depende do momento, do sofrimento suportável ou não, da instabilidade psicológica, das pressões de todo tipo, dos medos que assolam minha existência naquele instante. As situações, as circunstâncias podem modificar o comportamento que eu imaginava ser uma aquisição tranqüila, quase uma tradição ética em mim. Por isso, os princípios são linhas norteadoras, mas não funcionam necessariamente na prática onde o “salvar a vida” se impõe como preocupação primeira. Aqui, creio que é minha vida como realidade mais próxima de mim mesma, como eu mesma, que faz as regras imediatas do jogo. É difícil julgar quando se está fora do embate das tensões mortíferas, fora do campo de batalha, fora dos cárceres, fora das pressões do tempo e das instituições. As pessoas excepcionais que conseguem manter firmes suas convicções não podem ser tomadas como exemplos absolutos a serem seguidos, visto que também há muitas coisas que desconhecemos nas razões que as levaram a tomar essa decisão. A vida dessas pessoas serve como ideal e como referência teórica e ética. Tem a sua importância reconhecida, mas uma importância que não é decisiva em muitos momentos da vida. Portanto, aqui de certa forma se impõe a afirmação cara aos Evangelhos do “não julgueis” ou “não atireis a primeira pedra”. Cada vida é uma vida muito embora vivamos em sociedade e necessitemos uns dos outros para dar continuidade ao sopro vital que nos é comum.

Vários problemas estão em pauta na conjuntura político-religiosa atual. Enumero apenas três. O primeiro deles tem a ver com uma espécie de controle e legislação da vida privada pelo Estado, expressão do desejo de alguns grupos religiosos. O segundo tem a ver com a nova compreensão das relações entre público e privado presente em nossa sociedade. E o terceiro tem a ver com a intromissão de crenças religiosas nas políticas de um Estado laico e pluralista.

A vida privada é a vida de cada individuo nas suas múltiplas relações consigo e com os outros. É bem mais do que a vida doméstica, pois engloba algo da interioridade de cada pessoa, da intimidade que temos conosco mesmas. Nessas complexas relações há aquilo que chamamos de foro interno em que, em última análise, a vontade do individuo passa a ser soberana mesmo que essa vontade atente contra a sua vida ou a vida de outrem. Vontade, decisão, liberdade não podem mais ser considerados conceitos isentos de negatividade, isentos da contradição e da mistura inerentes à própria vida. Muitas vezes as leis, as imposições sociais, as crenças religiosas atuam apenas no nível da exterioridade e só têm certa eficácia enquanto uma situação ameaçadora de minha vida não se apresente. Quando o acontecimento imprevisto/previsto sucede é ele que passa a direcionar nosso comportamento de maneira que nosso bem estar individual e integridade sejam minimamente salvaguardados. Nesse particular os processos educativos desde a primeira infância e os processos sociais de respeito à vida da coletividade e de cada individuo são fundamentais embora não possam sempre impedir os imprevistos e as armadilhas da vida. É na linha da vida íntima que o individuo é soberano, ou seja, sua soberania é pragmática no sentido de ser movida pelo acontecimento do momento ou pela urgência que tem que enfrentar. O respeito a si e aos outros deve sem dúvida continuar como um ideal social, muito embora saibamos que na prática uma sociedade em que todos respeitem a todos seja impossível, ao menos nesse momento de nossa história comum. Continuamos com nossa dose diária de crueldade, injustiça e mentira mesmo falando de amor e de justiça. Nesse sentido querer legislar sobre a vida íntima, dar normas claras à subjetividade parece um empreendimento hoje fadado ao fracasso. As inúmeras tentativas de algumas igrejas de “cura gay”, de proibição do casamento homossexual, de proibição do aborto ou de não uso de preservativos aparecem como uma tutela poderosa que acaba desrespeitando as pessoas. As instituições que acreditam fazer o bem e se erigem em vista do bem acabam por esse mesmo caminho prejudicando a vida individual e social de muitas pessoas. Seus ensinamentos podem provocar em muitas pessoas sentimento de culpa, porém não ajudam a avançar na linha do crescimento pessoal.

As relações entre público e privado merecem ser refletidas segundo as novas situações da história atual. Nelas há uma relação íntima entre público e privado na sua relação atual com o Estado. O Estado é a mediação que permite a administração coletiva das necessidades vitais comuns, que promove a partilha de serviços, que garante os direitos e a segurança das cidadãs e cidadãos. No Estado moderno as preocupações privadas migram para o espaço público e muitas vezes corremos o risco de estabelecer legislações sem discussão e sem participação das cidadãs/aos, sobretudo dos/das mais interessadas. A grande massa de acomodados ou de ignorantes acaba sendo manobrada pelas espertezas dos que têm mais poder sobre os outros. A questão hoje é que muitas vezes as leis impõem um comportamento padronizado aos cidadãos a partir de situações totalmente distantes da realidade vivida, de forma que sua exeqüibilidade se torna problemática e quase impossível. Isso é igualmente verdadeiro no âmbito das prescrições religiosas em relação à vida sexual e outros comportamentos. Nessa linha precisamos ter presente o caráter ao mesmo tempo privado e público de uma prática religiosa. A expressão pública ou o público de uma fé religiosa é diferente do público político embora muitas vezes se toquem e se cruzem. Por isso, uma reflexão mais acurada sobre as relações entre o que chamamos privado e público se faz necessária.

As crenças religiosas nos espaços políticos públicos são um fenômeno crescente em nossa época e em nosso meio. Elas invadem os espaços públicos mesmo num Estado que constitucionalmente se afirma como laico. Deputados, senadores, vereadores, juízes eleitos ou escolhidos para servir o bem comum não conseguem estar isentos de suas crenças religiosas. Suas crenças passam a ser bandeiras políticas de forma que estamos continuamente sendo vítimas de um Estado religioso constitucionalmente afirmado e reconhecido como laico. Este paradoxo pode ser observado nas muitas manifestações religiosas que temos assistido nos últimos anos para interferir em políticas públicas, sobretudo as que tocam a sexualidade humana. Vale notar, nesse particular, o uso indevido de textos religiosos para fundamentar posturas políticas através de uma retórica impressionista usada para convencer o público. Creio que isto é um delito que atenta contra a Constituição Nacional e merece ser enfrentado pelo conjunto de cidadãs e cidadãos das mais diferentes formas.

A questão é de saber como se pode colocar entre parêntesis sua crença religiosa em favor do bem comum. Ou, como crescer em consciência em relação à diversidade de situações num mundo tão complexo quanto o nosso? Como se educar para uma sociedade pluralista onde minha crença religiosa e política não é verdade para toda a sociedade? Além disso, trata-se de educar-se para discernir entre a necessidade de leis e minha escolha pessoal. Não é porque existe a legalização do aborto ou casamento homossexual que tenho que vivê-los e nem acreditar que as pessoas serão menos morais ou menos responsáveis se uma lei se efetivar. Em outros termos, não é porque o casamento homossexual ou heterossexual existe que vou me casar e nem porque o aborto é permitido por lei que vou abortar. As muitas polêmicas de nosso tempo não chegarão a lugar nenhum se não assumirmos a realidade do pluralismo de nossa nação e de nosso mundo. Pluralismo significa diversidade e diversidade significa que algumas leis devem ter validade para todos os cidadãos/ãs e outras podem ser escolhas de cada um e cada uma diante de sua própria consciência e da contingência em que está vivendo. Significa igualmente não bloquear o caminho e as escolhas de outras pessoas que vivem e pensam diferentemente de mim.

Nesse contexto as muitas soluções devem ser relativizadas, isto é, entendidas a partir da diversidade e particularidade das situações. Por exemplo, algumas soluções afirmam a necessidade de leis proibitivas em torno da sexualidade e apostam numa legislação rígida que tenha efeito punitivo das /os infratores. Outras optam por uma legislação permissiva que chame a atenção da responsabilidade individual e coletiva frente aos problemas da sexualidade. Outras ainda propõem medidas educativas com diferentes propostas. E nesse universo de observações há igualmente uma grande maioria da população que está fora do debate e da busca de soluções. Estão numa postura de desinformação política e social aguardando que um problema individual irrompa e venha motivar a sua procura imediata de soluções.

Nessa conjuntura somos chamadas/os ao discernimento e a uma reflexão que busque ver os muitos matizes de uma mesma situação. Não há mais lugar para posições absolutas, para princípios imutáveis fundados numa imagem de Deus que é facilmente manipulada pelos diferentes grupos. O desinteresse pelo pensamento é algo que nos choca. Reduz-se o pensamento crítico aos interesses individuais ou partidários sem que se reflita na humanidade plural que constitui a nação brasileira e todas as outras nações do mundo. Estamos necessitadas de uma compreensão não sectária de nossos problemas e da busca de soluções viáveis. Essa compreensão deve ser ampla para ser compatível com as diferentes visões do que se considera vida justa e bem viver. Mas, onde vamos encontrá-la? Creio que o único caminho é o diálogo incessantemente recomeçado pelos diferentes grupos, um diálogo onde desde o início, embora com nossas convicções, estejamos dispostos a ouvir os outros. Ouvir é a grande questão, pois na realidade desaprendemos a ouvir numa sociedade onde predomina o barulho das máquinas, dos muitos sons, dos muitos gritos humanos que de tão fortes não conseguem ser distinguidos pelos ouvidos de uns e de outros. Baixar a nossa voz, talvez até silenciar para ouvir a melodia da música alheia, para aprender outros sons que também constituem as notas da musicalidade humana e da sinfonia do universo. Baixar a voz para aprender a pensar, para escutar a nossa voz interior. E só então, dar alguns passos em conjunto sabendo que estamos todas/os a caminho, com possibilidades inevitáveis de tropeçar e de perder o rumo, mas estamos juntas/os na extraordinária aventura humana.

Fonte: Alainet

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