Entrevista de Maíra Kubik.
“A primeira propaganda ultraliberal é a sexista”, dispara a escritora francesa Virginie Despentes. “Começa no momento em que você nasce e lhe dizem se você está do lado dos dominantes ou dos dominados”.
Entre uma tragada e outra do cigarro, engolindo as palavras mais rápido que a fumaça, ela prossegue: “quando aceitamos isso, aceitamos também o liberalismo, a ordem do mercado, a autoridade religiosa. Esse é o primeiro lugar onde aprendemos a obedecer”.
Enquanto a entrevisto, em Barcelona, durante o lançamento da edição espanhola de um de seus romances – nenhum deles disponível no Brasil, há uma fila enorme de pessoas querendo falar com ela. Quase todas mulheres.
Despentes é uma feminista declarada. Quando mais jovem, trabalhou como prostituta e, aos 35 anos, segundo ela mesma, tornou-se lésbica. Autora premiada, ela ganhou, entre outros, o Prix de Flore (1998), o Prix Saint-Valentin (1999) e o Prix Renaudot (2010).
Em 2000, Baiser-moi (algo como Me foda, em uma tradução livre), seu primeiro livro, chegou às telas de cinema sob sua direção. Não durou muito. Foi banido da França e da Austrália por seu conteúdo ser considerado “pornográfico demais”, “muito explícito” e “violento”. Em outros países, sofreu cortes severos.
Nessa pequena conversa, uma das mais contundentes feministas da atualidade fala de política e relata o avanço do conservadorismo na França, traçando paralelos com o Brasil. Para a autora, a reação das bancadas religiosas mostra a importância do poder gay, lésbico e feminista. “Eles entram em pânico com a teoria do gênero, com o feminismo, com a homossexualidade.”
Blog: Na França, assim como no Brasil, há uma reação fortíssima aos direitos LGBT*. Vimos milhares de pessoas nas ruas de Paris contra o casamento gay. Como você enxerga esse cenário?
Virginie Despentes: É surpreendente. Na França, no começo ficamos surpreendidos com o tamanho, com a escala das manifestações contra os direitos de gays e lésbicas. Mas, quando você reflete sobre os direitos gays e sobre o feminismo, eu creio que podemos dizer que estão no centro do princípio da dominação política, econômica, estão junto com o liberalismo, autoritarismo, com o fascismo. E aí podemos compreender o que houve.
Blog: Na França, o que poderíamos chamar de pensamento conservador está crescendo. Marine Le Pen, de extrema-direita, ficou em terceiro lugar na última eleição à Presidência.
Virginie Despentes: A ministra da Cultura francesa disse que era contra a teoria do gênero, assim como a ministra da Educação. E elas são socialistas. A questão é que isso é verdadeiramente revolucionário. Querem que pensemos que as histórias feministas e dos direitos homossexuais são secundárias, não são importantes, que precisamos pensar primeiro na economia. Agora que estamos em crise isso se fortalece. E aumenta a homofobia dentro das instituições, junto com uma vontade do ultraliberalismo.
Para mim, o ultraliberalismo e o sexismo estão mais conectados do que imaginamos. A primeira propaganda ultraliberal é a sexista. Ela começa no momento em que você nasce e lhe dizem se você está do lado dos dominantes ou dos dominados. E as duas categorias são “naturais”, então não há nada a fazer. Você não pode sair da categoria de dominante ou de dominado. Quando aceitamos isso, aceitamos também o liberalismo, a ordem do mercado, a autoridade religiosa. Esse é o primeiro lugar onde aprendemos a obedecer.
E o fato da direita dar tanta importância à essa questão mostra que aí está a revolução. Mas a esquerda na Europa não coloca isso como prioridade.
Blog: No Brasil temos uma presidenta, mulher, e de um partido historicamente identificado com a esquerda…
Virginie Despentes: Eu acredito que a esquerda tem que perceber que a revolução começa pela questão de gênero e pelo fim da heterossexualidade vista como um sistema evidente, natural, obrigatório. Se nós queremos uma revolução política e econômica, temos que começar por aí. Eu penso que a violência da reação conservadora nos mostra a importância do poder gay, lésbico e feminista. Eles entram em pânico com a teoria do gênero, com o feminismo, com a homossexualidade. Isso é o coração do problema.
As religiões de todos os tipos, evangélica, islâmica, judaica, católica, se dão bem com o liberalismo. Não é uma questão menor a homossexualidade e o feminismo. É de fato o coração de tudo.
Foto: Divulgação Prix Renaudot 2010 © MAXPPP