Por Paloma Rodrigues.
O grupo Católicas pelo Direito de Decidir lança campanha anti-Jornada Mundial da Juventude e questiona conservadorismo do Vaticano.
No dia 23 de julho, o papa Francisco chega ao Brasil para a Jornada Mundial da Juventude, a ser realizada até o dia 28 no Rio de Janeiro. Para o grupo Católicas pelo Direito de Decidir, organização não governamental feminista, o evento é um reforço do conservadorismo cristão, que não representa a pluralidade da sociedade brasileira. Pensando nisso, o grupo está lançando a campanha “O Papa vem aí! O que muda na sua vida?”, uma série de vídeos sobre temas controversos dentro da Igreja, como o aborto, a homossexualidade e o Estado Laico.
“Vemos um investimento muito grande nas alas mais conservadoras da Igreja na juventude. Queremos ser um contraponto disso, um discurso de resistência que mostra que o católico pode pensar de outra maneira”, diz Valéria Melki, responsável pelo projeto e concepção da campanha. “Não queremos convencer as pessoas de que elas têm de pensar de uma outra maneira, mas mostrar que outras maneiras existem.” A campanha também foca no Manual de Bioética, a ser seguido pelos fiéis, que será lançado durante a Jornada pela Confederação Nacional dos Bispos do Brasil. O documento considera os anticoncepcionais abortivos e condena seu uso, além de se opor ao aborto e à eutanásia, deixando de abordar pontos como a prevenção às doenças sexualmente transmissíveis.
Dentro da tradição católica, Valéria explica que a divergência de pensamentos sempre esteve presente. “O fato de termos um papa como líder, que responde pelos fiéis do mundo inteiro, faz com que as pessoas acreditem que só há uma maneira de pensar dentro do catolicismo e isso não é verdade”.
Parte do grupo irá ao Rio de Janeiro, mas não participará do evento com o sumo pontífice. “Se a Igreja fosse efetivamente um espaço de diálogo, então nós poderíamos estar lá, apresentando também a maneira como nós pensamos, com base na própria teologia católica. [Entretanto] O espírito da Igreja atualmente não é de diálogo, mas de decisão hierárquica sem nenhuma possibilidade de discussão”, diz a presidente do grupo Maria José Nunes. As integrantes irão integrar uma edição das marchas da vadias a ser realizada concomitantemente à passagem do Papa, carregando as bandeiras em defesa dos direitos das mulheres. O grupo também critica o financiamento da vinda pelo governo brasileiro e do estado e prefeitura de Rio de Janeiro. “O papa vem ao brasil não como Chefe de Estado, mas como líder espiritual de uma comunidade religiosa. Portanto, constitucionalmente, o Estado não pode colocar recursos ali e, no entanto, coloca”. Recursos estes, defendem, pagos com impostos de católicos e não-católicos.
Ela explica que, segundo a verdadeira tradição católica, em uma situação que apresente duas possibilidades de escolha, a mais acertada não é aquela determinada pela hierarquia, mas a que se toma a partir da consciência bem informada. “Não há interesse em dizer isso, porque é uma relação de poder. Quando você está em uma posição de diferença legitimada, você tem um poder maior e é o que eles estão tentando manter”.
Ao contrário do que alguns supõem, a Igreja permite que seus fiéis discutam e se posicionem de maneiras divergentes a respeito de diferentes temas, desde que eles não configurem dogmas. “Se você questiona Jesus como o filho de Deus, você não é católico, porque isso é um dogma e portanto inquestionável, mas não há nenhum impedimento moral para que a gente não discuta o aborto.” A maneira como ele é tratado hoje faz parte de uma lei eclesiástica, ou seja, como como a Igreja direciona seus fieis, o que não significa que o tema não possa ser questionado por um católico.
“A Bíblia não é um guia de conduta, mas um guia de princípios e valores, escritos dentro de um contexto social e cultural”, destaca Valéria. A apropriação que a alta cúria faz deses escritos, para ela, é realizada em nome da manutenção de uma forma poder. “Alguns discursos são mantidos, como a da relação pela procriação, mas então não poderíamos usar dois tecidos diferentes de uma única só vez, não poderíamos ter o anulamento dos casamentos. Por que alguns discursos são mantidos e outros não?”.
Considerando isso, a presidenta do grupo, Maria José, diz ver com preocupação uma liderança tão conservadora falando para milhares de jovens de todo o mundo, como se falasse para uma massa uniforme. “A Igreja demonstra nisso sua estratégia de investimento nas futuras lideranças dos País, naquilo que é muito forte, com essa perspectiva fundamentalista e conservadora que o papa apresenta”, explica.
Vídeos. O primeiro vídeo lançado apresenta a temática da maternidade e traz novas visões sobre o parto humanizado e o aborto. O roteiro é de Elisa Gargiulo, que levanta a questão do sofrimento da mulher que opta por interromper uma gravidez: “Se elas fazem isso mesmo correndo o risco de morrer ou de ser presas é porque o desespero delas deve ser muito grande”.
A visão do grupo é a de que o direito da mulher precede o todos os outros pontos que envolvem o tema, como o direito de vida do embrião, defendido pela cúria de Roma. “A Igreja trata de forma igualitária duas situações totalmente distintas, porque uma coisa é um embrião ou um zigoto e outra coisa é uma mulher”, diz Maria José. “No momento em que uma mulher vê desenvolver-se no seu corpo um processo de criação de um novo ser humano que ela considera que não tem condições de levar avante naquele momento, por qualquer razão que seja, é seu direito interromper o processo. Isso se dá no seu corpo e, portanto, naquilo que é essa mulher.”
Em recente pesquisa publicada pela Universidade de Brasília e Instituto Anis, se concluiu que a maioria das mulheres que realiza aborto no Brasil é católica – 65% das entrevistadas -, uma parte do catolicismo que precisa de respaldo e apoio, segundo elas. “Nós confortamos essas mulheres a partir da sua mesma fé e é quando elas nos reconhecem”.
O segundo vídeo trata da questão LGBT e defende todas as formas de amor e de relação. “As pessoas estão sendo condenadas e estigmatizadas, mas elas participam de um amor consentido”, diz Valéria. Pela Lei Natural, defendida pelo Vaticano, os pecados que permitem a procriação são menos graves do que os que não permitem. “Pensando assim, menos grave o estupro do que uma lei relação homossexual, por exemplo.” Ela explica que a lei poderia não ter essas implicações na época em que foi escrita, mas hoje tem, e é por isso que a Igreja não pode deixar de caminhar ao lado das necessidades da sociedade. “Se somos cristãos e queremos um mundo melhor, temos que tentar de outras maneiras”.
Confira abaixo um dos vídeos divulgados pelo grupo:
* Publicado originalmente no site Carta Capital.