A porta giratória entre as grandes corporações e o governo norte-americano reflete a eficiente sinergia entre o Estado e o mercado, no capitalismo mais poderoso do planeta.
Cargos estratégicos na administração pública são regularmente ocupados por altos executivos e presidentes de gigantescos complexos industriais ou instituições financeiras dos EUA.
Atividades teoricamente específicas da esfera estatal são terceirizadas com absoluta desenvoltura para engordar negócios privados. Desde a guerra, até operações de segurança e espionagem transformam-se em canais de sucção de fundos públicos para a contabilidade privada.
É nessa dissipação de fronteiras e de recursos que se viabiliza a balela do Estado mínimo, maximizado em lucros privados.
Nesse intercurso de dinheiro, poder e influencia emerge o nome da Booz-Allen, velha parceira do Departamento de Estado na área de espionagem e consultoria.
Desde os anos 40, no entorno da Segunda Guerra, o grupo trabalha em estreita colaboração com o complexo militar norte-americano.
A ponto de ser reconhecida como uma espécie de gabinete paralelo da comunidade de inteligência dos EUA.
A condição de braço do Estado e dos interesses norte-americanos, portanto, é um traço constitutivo na história da Booz-Allen, do qual o governo Fernando Henrique não poderia alegar desconhecimento, quando enganchou estrategicamente o interesse público brasileiro à empresa.
A Booz-Allen nasceu em 1914, em Chicago, tornando-se rapidamente uma das gigantes do setor de consultoria.
Como muitas das grandes corporações dos EUA, engatou seus lucros ao suculento orçamento do Estado, a partir da Guerra.
O livro “Spies for Hire: The Secret World of Intelligence Outsourcing” (“Espiões de aluguel: o mundo secreto da terceirização do serviço de inteligência”, New York: Simon and Schuster, 2009), de Tim Shorrock, Dick Hill, dedica um capítulo inteiro à Booz-Allen. Dá detalhes de como a empresa engendrou seu trabalho de consultoria nas teias da comunidade de informação dos EUA.
O livro relata que, em 1998, uma funcionária de carreira do serviço secreto, ao assumir uma diretoria da CIA, já considerava a Booz-Allen uma verdadeira extensão da comunidade de inteligência norte-americana.
Segundo Dempsey, em uma declaração pública registrada e divulgada por revistas especializadas em assuntos de defesa, era mais fácil encontrar ex-secretários e diretores do sistema nacional de inteligência americana na Booz-Allen do que em reuniões do governo.
Em 2005, comprovando o fundamento de suas afirmações, ela se tornaria vice-presidente da Booz-Allen, que já contabilizava 18.000 profissionais (é assim que a turma supostamente defensora do Estado mínimo esconde o real tamanho de seu Estado gigante) e US$3,7 bilhões anuais de faturamento. Em 2012 esse faturamento havia saltado para US$ 5,76 bilhões (mais de R$ 12 bilhões). O número de funcionários passava de 25 mil pessoas (agentes?) espalhados pelos quatro cantos do planeta.
Metade-metade
Ainda segundo o livro de Shorrock e Hill, pelo menos 50% dos negócios da Booz-Allen são financiados pelo governo dos EUA.
Os outros 50% são contratos de consultoria com grandes empresas do setor privado, nas áreas de energia ao setor químico, passando por bens de consumo.
Uma de suas especialidades é auxiliar a influenciar governos e órgãos públicos de outros países a seguir políticas que representem oportunidades de negócio para grandes corporações e fundos de investimento norte-americanos.
Um dos eixos mais lucrativos, como ela própria explicita em seus relatórios, tem sido o dos programas de privatizações.
Foi esse o principal alicerce de penetração da versátil corporação no Brasil durante o governo FHC.
As relações entre a Booz-Allen e o Departamento de Defesa, que já eram estreitas de longa data, tornaram-se ainda mais explícitas e se aprofundaram na presidência de George W. Bush.
A partir de então, a empresa se envolveu nas atividades mais sensíveis da inteligência dos EUA e do Pentágono.
Mais que isso, encabeçou os projetos mais importantes do Departamento de Defesa após os ataques de 11 de setembro.
Esse foi o gatilho para a montagem do megaesquema de espionagem denunciado por Edward Snowden.
Bush e seu vice-presidente, o todo-poderoso Dick Cheney, passaram um recado claro ao Departamento de Defesa: as corporações privadas, coordenadas pelas consultorias da Booz-Allen, estavam avalizadas na condição de gerentes do sistema de inteligência norte-americana.
Os profissionais da Booz-Allen, notoriamente conhecidos como mais do que simples consultores, foram chancelados internamente como atores-chave do alto escalão da comunidade de inteligência.
O que já era um gabinete paralelo tornou-se unha e carne da comunidade de informação.
Nosso homem na Casa Branca
Figura central desse relacionamento íntimo foi Mike McConnell. Depois de se aposentar na Marinha dos Estados Unidos, McConnell tornou-se vice-diretor da Booz-Allen na área que a empresa chama de “cyber business”: http://www.boozallen.com/about/leadership/executive-leadership/McConnell
Em 2007, tornou-se nada mais, nada menos do que o vice-diretor do Departamento Nacional de Inteligência (DNI), administrando um time de 100 mil profissionais (agentes secretos, arapongas, informantes, analistas de informação) e 47 bilhões de dólares (pelo menos a parte contabilizada).
Na apresentação de seu currículo, a Booz-Allen se vangloriava de tê-lo como um líder no governo, responsável pela interlocução do gabinete presidencial na Casa Branca com o Congresso, líderes internacionais e a “comunidade de negócios” dos EUA. Em 2009, na presidência Obama, ele retornou à Booz-Allen.
Unindo o útil ao agradável
No portfólio da Booz-Allen, estão algumas das áreas em que a empresa atuou e que, a partir de agora, dadas as acusações de espionagem ampla, geral e irrestrita, estão sob suspeita. Veja:
http://www.booz.com/br/home/who-we-are/42544269
As “reformas governamentais” dos anos 1990 aparecem em destaque.
A empresa ainda orientou a reforma do sistema eleitoral do México e a privatização de empresas em diferentes áreas de atuação e países: bancos, no Brasil e no México; energia (além do Brasil, Argentina, Peru e Bolívia), ferrovias (na Argentina), petroquímica (Brasil), portos (México e Venezuela), siderurgia (Argentina e Brasil) e telecomunicações (Brasil, México e Uruguai).
Esses setores, como a maioria se lembra, não foram considerados mais como polos estratégicos para o desenvolvimento e o Estado nacional – termo em desuso no ciclo tucano, tratado com derrisão pelos seus teóricos e operadores.
Algo semelhante ocorreria nas demais presidências neoliberais que infestaram os governos latino-americanos.
Estratégicos, porém, eles se tornariam para os interesses norte-americanos, conforme as recomendações de seu braço de informação e dublê de consultoria.
Para os EUA, foi uma ação orquestrada de inteligência. Para a América Latina, foi um exemplo da imensa estupidez da sapiência neoliberal que deixou cicatrizes profundas e, como se vê agora, abriu flancos estratégicos no aparato público das nações.
Fonte: http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=22351