Por Luciana Barreto.
Foto: Emília Silberstein/UnB Agência
A uma plateia absolutamente atenta e reverente, Roberto Schwarz – um dos maiores nomes da crítica literária nacional, responsável por revolucionar o olhar sobre a obra machadiana e ainda empreender conceitos balizadores na compreensão da literatura em perspectiva social e histórica – lançou um novo facho de luz a um livro que se apresentou como original e transformador para várias gerações, mantendo-se notável até hoje: Ao vencedor as batatas, publicado há exatos 35 anos.
A atualidade de suas reflexões críticas motivou o grupo de pesquisa Literatura e Modernidade Periférica a propor o colóquio Trinta e cinco anos de Ao vencedor as batatas, problemas de literatura, cultura e sujeito. Na abertura do evento, ocorrido nessa semana, a vice-reitora Sonia Báo elogiou a iniciativa, dizendo que “a presença do reconhecido teórico muito honra a Universidade de Brasília”. A chefe do Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Maria Isabel Edom Pires, saudou o palestrante mencionando uma carta recebida de um jovem estudante de 20 anos, o qual se apresenta como fiel leitor do livro, afirmando ter seu estudos inspirados pelo crítico.
De modo gentil e elegante, e com uma fala suave e compassada, na palestra mediada pelo professor Alexandre Pilate, de início Roberto Schwarz apontou a polarização crítica que matizava a época de seu ensaio, aproveitando para contextualizar o momento em que seu célebre livro foi composto, “antes ainda de 1964, ou seja, antes do golpe de direita que marcou o País”. De acordo com o crítico, no plano da crítica literária havia na época um grande desejo de modernização e atualização, “contra a crítica chamada impressionista – ou o ‘achismo’ dos críticos que achavam isso e aquilo. O crescimento da universidade e o começo das pós-graduações solicitavam alguma coisa mais rigorosa, metódica, verificável, parecida com ciência; o anseio de mudança era geral, mas os caminhos que iam sendo tomados se opunham.”
LITERATURA E RADICALIZAÇÃO POLÍTICA – A respeito de como se concebia a literatura, Schwarz mostrou que o grupo que acreditava na responsabilidade social da arte tendia para uma combinação, “um pouco primária”, entre o resumo das obras e a história da sociedade em seu período. Já aqueles, conforme apontou, que achavam que “sociedade é uma coisa, e arte outra, procuravam dar conta da qualidade literária das obras através de considerações de forma, sem referência a história social”.
“Como o período era de radicalização política e, portanto, de necessário engajamento dos intelectuais, os partidários da responsabilidade social da literatura tendiam a coincidir com a esquerda enquanto os que se interessavam por questões de forma, e não por questões sociais, tendiam para o campo conservador”, prosseguiu o teórico, acrescentando que “a esquerda via os formalistas como alienados, e os formalistas consideravam a esquerda obtusa em matéria estética, como conteudistas cegos para o significado da forma”. Passados mais de 40 anos, o crítico hoje avalia que “é possível que os dois lados tivessem razão”.
Na esteira desse raciocínio, Schwarz complementou, expondo que confrontados com os avanços da crítica internacional, voltada para o significado e a força organizadora da forma, os progressistas estavam atrasados. “Por outro lado, os formalistas buscavam incorporar inovações européias e, sobretudo, o New Criticism americano e seus estudos brilhantes sobre a complexidade interna própria à poesia”. Segundo ele, “nem por isso, escapavam de aparecer atrasados quando medidos pela efervescência social que tomava conta do ambiente cultural”.
SÍNTESE SUPERADORA – Após a rápida e panorâmica apresentação do esquema que organizava as grandes tendências críticas literárias da época, o teórico afirmou que essas forças polarizadas, “através das insuficiências das posições adversárias”, ajudaram a sugerir “a necessidade de uma síntese superadora”. De acordo com o ensaísta, “é nesse momento que entra uma pequena comunicação feita por Antonio Candido em 1961, anunciando um programa de trabalho original, do qual resultaram dois ensaios fundadores, Dialética da Malandragem e De cortiço a cortiço”, contando ainda que, para sua sorte, esteve presente naquela ocasião – episódio que lhe foi iluminador e decisivo.
FORMA E HISTORICIDADE – As soluções propostas por Candido, conforme mencionou, inovavam em duas frentes. Por um lado, escapava ao determinismo sociológico, a partir do qual as obras deveriam reproduzir as sociedades a que pertenciam. Por outro, ultrapassava também o idealismo inverossímil dos formalistas, que supunha que a arte não deve nada à realidade.
“Examinando mais de perto a literatura de nosso tempo, o crítico observava que o escritor moderno tem ampla liberdade na escolha dos materiais, sem a obrigação de retratar o seu mundo ambiente, mas que esses materiais, depois de passarem para dentro da obra, continuam portadores de seu significado histórico, o qual se desdobra no novo meio, agora organizando e formando a ficção por dentro”. Schwarz explica que Candido apresenta uma “noção de forma nova, saturada de historicidade, de um novo formalismo, ou de um estruturalismo histórico, enfim, uma nova maneira de entender as relações entre o externo e o interno em literatura”.
Feita a exposição explicativa de duas grandes contribuições teóricas de Candido – a análise formal não mais como exclusividade dos conservadores e passando a ser animada pelo espírito histórico; e a obra livre da obrigação de simplesmente retratar, constituindo-se como um campo com dinâmica própria, embora carregada de energia histórica –, Schwarz mostrou como o crítico “desautorizou a componente autoritária da esquerda, que pretendia subordinar a liberdade artística a seus esquemas pré-fixados”.
A respeito do seu célebre ensaio “As ideias fora do lugar”, que principia o livro, disse ainda que o texto é a discussão de um mecanismo ideológico específico, ligado a peculiaridades da estrutura social brasileira, mecanismo que não havia sido considerado pela
MACHADO DE ASSIS – Foi a partir dessa orientação de Candido que Schwarz compôs, em O Vencedor as Batatas, o capítulo intitulado “O paternalismo e a sua racionalização nos primeiro romances de Machado de Assis”, em que examina no gênero típico da era burguesa – e em suas estratégias de narração – as marcas da dependência nacional. “Se observarem os trabalhos machadianos de Astrogildo Pereira ou Nelson Werneck Sodré, dois influentes marxistas, verão o procedimento costumeiro: primeiramente um panorama do Segundo Reinado, e em seguida a inserção do homem Machado de Assis e de sua obra nesse quadro, do qual escritor e romances são representativos. A obra literária ilustra um panorama social pré-existente, que não é modificado por ela, a qual meramente lhe acrescenta o prestígio de um grande nome”.
Roberto Schwarz soube escapar dessas recorrentes e viciadas abordagens para empreender uma crítica original, transformadora e vinculada tanto aos dilemas da sociedade brasileira pós-escravidão quanto a um contexto de um capitalismo incipiente e clientelista. Seu ensaio “As ideias fora do lugar” não é do gênero dos panoramas – conforme explicou –, mas “ um mecanismo ideológico específico, ligado a peculiaridades da estrutura social brasileira, dado não considerado pela historiografia ou sociologia, instância central para o funcionamento da ironia machadiana”. Em outras palavras, a reflexão sobre a forma, depois das análises principiadas pelo teórico, passou a ter o primado na investigação crítico-histórica da literatura.
Fonte: UnB.