Por Lívia Duarte*.
Durante encontro no Rio de Janeiro de movimentos sociais, sindicatos, ONGs, ambientalistas e fóruns de atingidos pela indústria do petróleo e gás de todo o Brasil, uma voz africana ajudou a refletir sobre nossa relação com estes recursos naturais e os impactos e conflitos socioambientais da expansão petrolífera. Sergio Calundungo, que trabalha para a Ajuda da Igreja Norueguesa (AIN) em Angola, expôs algumas das vicissitudes causadas pela indústria do petróleo em seu país.
Angola é o segundo maior produtor de petróleo da África Subsariana e é daí que sai 90% do seu orçamento. No entanto, mais de 70% da população vive da agricultura ainda hoje e o setor petrolífero emprega menos de 2% de mão de obra local. “Somos um país menos voltado para as pessoas e mais voltado para os recursos sociais” Esta realidade tem reflexos, por exemplo, em uma urbanização extremamento excludente: Luanda é a segunda cidade mais cara do mundo, a parte “formal” da cidade é montada para atender as demandas dos estrangeiros que trabalham ali por temporadas. “Tudo que se consome numa plataforma, da água à laranja, vem de fora”, exemplifica. Apesar da extração de petróleo, a industrialização é baixa, 80% dos combustíveis são importados.
Durante sua exposição, Calundungo enumerou o que chamou de “mitos do setor”. Alguns deles lembram fatos com os quais também estamos familiarizados no Brasil. E outros que podem surpreender-nos. O primeiro é de que a exploração do petróleo é incontornável. “Dizem aqui que a humanidade escolheu usar o petróleo como principal fonte de energia. Nós somos parte da humanidade e não escolhemos o petróleo, não queremos, não temos necessidade de tanto petróleo como outras sociedades”, apontou, questionando ainda a impossibilidade de controle da cadeia de valor desta riqueza diante de afirmações do tipo “a solução é estatizar”. Ele também criticou duramente a atuação brasileira em seu país: “durante algum tempo Angola se comportou como irmão caçula do Brasil, mas agora passou o periodo de embriaguez e como se diz, “a árvore percebeu que o cabo de machado que lhe vai abater também é de madeira”.
Sérgio denunciou a séria situação de concentração de riquezas, desreipeito aos direitos humanos, falta de transparência pública e grande repressão do governo contra cidadãos que questionam tudo isso. “Ouço aqui dos brasileiros que os afetados são a população diretamente atingida pela indústria, como os pescadores e as pessoas removidas para instalação de portos. Eu digo que em Agola – Gabão, Nigéria e outros – os afetados somos todos que nascemos onde as riquezas perpetuam os governos, a concentração de riquezas, onde não há correlação entre o crescimento econômico e a vida da maioria da população”, afirma.
Realizamos também uma rápida entrevista com o representante de AIN em Angola. Leia a seguir:
FASE: Você poderia explicar qual é o contexto do início da exploração do petróleo em Angola, para entendermos o lugar que essa indústria ocupa hoje no seu país?
Sérgio Calundungo: A exploração petrolífera em Angola data de finais dos anos 50 e início dos anos 60. Portanto, é de longa data. E, no atual contexto, ela ocupa muito mais espaço. Até antes da independência o petróleo era uma das muitas oportunidades de rendimento que o país tinha. Mas grande parte da receita de Angola vinha da agricultura, que emprega muito mais gente. Hoje, infelizmente, derivado de anos de guerra e do abandono total das comunidades, o petróleo passou a ser o principal componente de financiamento do orçamento geral do Estado. Ou seja, pode-se dizer que Angola é um Estado cuja economia assenta em um único recurso, que é o petróleo.
E sobre as empresas de petróleo em Angola: qual a relação delas com essa história da exploração?
Quando o país atinge a independência em 1975, nacionaliza todos os recursos. Inclusive o petróleo passou a ser, teoricamente, o petróleo dos angolanos. Infelizmente, nos últimos anos, percebemos que por trás do chavão diz “O petróleo é nosso” está que, na verdade, ele não é nosso enquanto cidadãos, é do Estado. E, em um país onde normalmente a vontade dos que lideram o Estado confunde-se com a vontade do Estado, a população começou a despertar deste grande sonho de um dia ser dona deste recurso, porque na realidade o recurso passa a ser controlado exclusivamente por uma elite muito pequena, que é a elite que detém o poder político no país.
Gostaria de falar a respeito das empresas estrangeiras como, por exemplo, a brasileira Petrobras, que tem alguma atuação em Angola, e também em outros países africanos. Como se dá a entrada delas no território angolano?
O petróleo é um recurso chave. Como eu disse, ele representa 90% da receita que o país arrecada. Mas toda a exploração, o mercado e toda a dinâmica voltada para esse setor se desenvolve de maneira muito nebulosa, com muito pouca informação. Eu penso que as empresas estrangeiras acabam, em parte, se beneficiando esta situação. Primeiro porque a Angola não cria um marco regulatório em termos de leis. Angola não tem instituições sólidas democráticas fortes, capazes de assegurar uma fiscalização isenta de toda esta atividade. Portanto, o fato de o mercado ser tão nebuloso faz com que as empresas tenham um negócio lucrativo porque, pura e simplesmente, fazem negociatas com quem tem o poder político. Dessa forma, nós pensamos que as empresas, inclusive as brasileiras, acabam tirando benefícios. Não se pode responsabilizar as empresas diretamente pela situação em que o país se encontra. Mas podemos dizer sim que elas tiram benefícios porque, em um marco legal bastante frágil, na ausência de liberdades fundamentais pra que os cidadãos possam questionar a sua atuação, na ausência de transparência por parte do governo, essas empresas acabam tendo esse setor como um setor altamente lucrativo para eles em detrimento da maioria da população.
Você já traçou um panorama das dificuldades, inclusive, da sociedade civil. Então que tipo de resistência a sociedade civil angolana tenta ter diante da indústria do petróleo?
São várias as áreas de reivindicação dos setores da sociedade civil. A primeira é a demanda por aceder à informação. As pessoas querem saber cada vez mais informações sobre o setor e a forma como ele se desenvolve no país. A segunda é o apelo para práticas mais transparentes do setor. Apelam para que as empresas comecem a publicar quanto pagam ao governo angolano por explorar petróleo no nosso território, para que elas passem da retórica de falar da responsabilidade social corporativa para uma prática efetiva. Isso significa direitos laborais, responsabilidades ante os impactos ambientais e apoio a causas sociais. Sair um pouco daquela visão da responsabilidade social como caridade. Para nós angolanos, responsabilidade social é quando a empresa decide e aposta na criação de um ambiente digno para aqueles que estão no entorno das suas atividades. Então são esses os tipos de reivindicações, o tipo de demanda que se faz não só ao governo angolano, mas também às empresas petrolíferas, entre as quais as empresas brasileiras presentes em Angola.
E se consegue fazer algum tipo de monitoramento sobre as violações diretas de direitos pelas empresas?
Infelizmente, isto é muito frágil. E é frágil por duas razões. A primeira é que, em um país como a Angola que vem de uma guerra atroz, em que os níveis de letramento são muito baixos assim como os níveis de educação, muitas das populações não são conscientes de que tenham direitos. E, portanto, não sendo conscientes disso, têm muita dificuldade de lutar contra os gigantes que representam a indústria petrolífera e de se articular e fazer exigências. Por outro lado, temos também aqui um peso muito forte em favor das empresas diante do Estado angolano: as instituições públicas não compreendem, ou não exercem seu papel, enquanto principais garantidores dos direitos desses cidadãos. Elas têm uma atitude de proteger os interesses das empresas e não os interesses dos cidadãos. Não desenvolveram suficientemente mecanismos nem espaços que permitam ao cidadão participar e levantar os seus questionamentos. Isso é uma questão. Provavelmente o caminho que a sociedade civil angolana precisa é de articulação com a sociedade civil de outros países, por exemplo.
E temos que também desafiar as organizações congêneres no Brasil e nos países de origem dessas empresas, perguntando-lhes “como vocês podem permitir que estas empresas tenham uma postura nos vossos territórios, no vosso país, e que tenham uma postura completamente diferente fora das vossas fronteiras?”. Eu acho que temos também que desafiar as organizações da sociedade civil desses países dizendo que a sua solidariedade não se conforma aos limites geográficos do nosso país. A empresa é brasileira, os brasileiros ganham recursos financeiros explorando petróleo em Angola, então eu acho que é importante desafiar a sociedade brasileira para que conheça melhor de que forma estes recursos vem parar no Brasil.
Durante nosso debate, apesar de trabalhar em uma instituição norueguesa, você questionou a imposição de um certo modelo eurocêntrico de organizar resistência, mencionando um fundo de apoio constituido pelo lucro do petróleo na Noruega para “desenvolver” outros países. Gostaria de pedir que volte ao assunto, inclusive porque suponho que junto ao eurocentrismo chega também, por exemplo, o “novo imperialismo” do Brasil a partir da atividade do Estado e das empresas em outros países.
Quando o Brasil começou a surgir como uma potência e a se afirmar no cenário mundial, nós pensávamos que seria uma alternativa a este modelo hegemônico eurocentrista. E, infelizmente, percebo que o Brasil também tem aspirações imperiais, assim como a China, a Rússia e a própria África do Sul. Eu penso que mesmo a nível da sociedade civil, nós temos que ser bastante críticos conosco mesmos. Muitas vezes, por detrás do pacote da solidariedade, há também uma idiossincrasia, uma maneira de ver. Por exemplo, há muitos povos na África que não acreditam que o petróleo é uma solução para o nosso desenvolvimento.
No caso concreto da Noruega, que tem um grande programa que se chama “Petróleo para o Desenvolvimento”, ninguém perguntou aos africanos se eles acreditam que o petróleo sirva para o desenvolvimento. Há comunidades cujas vivências e práticas as fazem acreditar que o petróleo não é uma boa saída para o desenvolvimento. Há muitos países, povos e comunidades que não consideram o petróleo uma benção, mas sim uma maldição. Não é pelo fato de a Noruega ter atingido bons níveis de desenvolvimento baseados numa correta exploração do petróleo que os outros países tenham que sair por aí fazendo o mesmo. Portanto, tem que haver um debate. E eu creio que no setor do petróleo – e um muitos setores da atuação das ONGs – quem vem cooperar chega com o ‘conhecimento ocidental’ e não só são ignorantes para aquilo que é a nossa realidade. Porque isso não chega a ser o problema. O problema é que eles ignoram que são ignorantes. Não são conscientes de que não sabem. E eu acho que o dia em que quem vem copérar e ajudar vier predisposto a aprender, provavelmente estaremos abrindo uma nova página na relação entre os povos.
*jornalista da FASE – Solidariedade e Educação
Fonte: EcoDebate