ICIA é uma sigla que poderia sintetizar a atual ofensiva dos setores mais conservadores da sociedade sul-americana. Condensaria as bandeiras de “luta” da classe alta, historicamente privilegiada, contra os avanços progressistas e democratizantes promovidos principalmente pelos governos de Cristina Kirchner, Evo Morales, Rafael Correa e Hugo Chávez (agora Nicolás Maduro).
As bandeirinhas da ICIA (“inflação”, “corrupção”, “insegurança” e “autoritarismo”) formam o quadrado reacionário, oligárquico e até mesmo fascista que orienta os discursos e as ações de uma parcela das oposições da região. Chama a atenção que o grau de “sensibilidade” destas quatro variáveis tem uma forte relação com dois agentes principais: 1) os grandes conglomerados industriais, financeiros e comerciais, controlados exatamente pela classe alta e pelo capital estrangeiro, e 2) os meios de comunicação hegemônicos, que também estão sob o controle das elites locais e das transnacionais do setor.
Note-se que cada um destes dois agentes influi de maneira decisiva para a maior ou menor “gravidade” dos quatro problemas. Os primeiros, os grupos econômicos, na medida em que controlam grandes faixas de mercado, desempenham um papel crucial na determinação do preço final dos produtos. Além disso, por meio do açambarcamento e da especulação, podem gerar o desaparecimento, a escassez e o consequente aumento de preços. Essa foi a “receita para o caos”, que ajudou a derrubar o governo de Salvador Allende, no Chile, em 1973. A falta de produtos nas prateleiras dos supermercados e o encarecimento de bens básicos, tais como leite, açúcar, arroz e farinha, promoveram a insatisfação social e reduziram a popularidade do governo. É o que está se tramando, em diferentes graus, em países como Venezuela, Bolívia, Equador e Argentina.
Por outro lado, e de forma complementar, esses mesmos elementos desestabilizadores resistem aos controles públicos que tentam atuar contra suas posturas criminosas. Os grandes conglomerados acusam governos intervencionistas de “autoritários”, de seguidores de Adolf Hitler e Benito Mussolini. Arremetem contra a ação do Estado sobre as altas taxas de lucro, as taxas de juros, as taxas de câmbio, o acesso a dólares e a melhora das condições de vida dos trabalhadores. Seu argumento central é o suposto “livre mercado”, que na verdade é uma tela de proteção para a livre atuação de grupos econômicos poderosos.
O planejamento do governo é considerado uma “intervenção exagerada”, um retorno ao “populismo irresponsável” ou mesmo uma “ditadura castro-chavista-comunista”. São deprimentes a ignorância, o desconhecimento e a cultura do ódio presente nessas passeatas e panelaços de setores da oposição. Tudo faz lembrar às múmias chilenas que celebraram a chegada de Augusto Pinochet ao poder. Usam conceitos de forma primária, fazendo incompreensíveis saladas com termos desenterrados da Guerra Fria contra a “ameaça vermelha” e os “guerrilheiros marxistas”. O refrão é a ICIA.
Aqueles que trabalham um pouco melhor com os conceitos sugerem que a volta ao nacional-desenvolvimentismo dos anos trinta, quarenta e cinquenta do século passado é um erro grave. Ao invés disso, propõem ir ainda mais longe. Buscam o velho liberalismo que tão bem apresentou, há 250 anos, o mestre Adam Smith. Sabe-se que a abordagem de um mundo liberal, que um dia pode ter sido parte dos sonhos de homens honestos, desde David Ricardo tornou-se uma proposta malandra, uma teoria hipócrita para beneficiar apenas os maiores e mais fortes. O alemão Friedrich List percebeu e denunciou isso há 170 anos.
Ao mesmo tempo, os poderosos monopólios de desinformação e alienação em massa, controlados por duas ou três famílias em nossos países, também se tornaram caixas de ressonância da “corrupção” e da “insegurança”, supostamente surgidas com os novos governos. A campanha reacionária inclui a proposta de redução da maioridade penal como se fosse a grande solução para os problemas da criminalidade. Assim, “inflação-corrupção-insegurança-autoritarismo”, as quatro rodas da carroça opositora se convertem em “denúncias”, “provas” e “verdades”. Em ação orquestrada, se impõem a ICIA. Por isso, são os próprios meios de comunicação os autoritários e os que conspiram contra a liberdade de expressão. Autodenominam-se os defensores das liberdades individuais, os guardiões da justiça e dos direitos civis. Esses mesmos meios de comunicação são aqueles que nasceram, foram criados e se calaram durante as ditaduras militares. Os mesmos que festejaram a orgia neoliberal, promotora da corrupção, da privatização, da miséria e da insegurança.
Respondendo aos seus inconfessáveis interesses econômicos, denunciam a existência de uma “inflação galopante”, a “maior corrupção da história”, o “autoritarismo crescente” e a “insuportável insegurança”. É uma fórmula para o caos do século XXI, neta do casamento entre os monopólios bancários e industriais e os monopólios de mídia. É o que se vê, com diferentes nuances, principalmente na Argentina, na Venezuela, na Bolívia e no Equador. No Paraguai, há menos de um ano, houve um golpe de Estado respaldado pela grande mídia. No Brasil, vislumbrou-se de forma muito clara a campanha da imprensa golpista contra o ex-presidente Lula e lideranças do seu partido. As hesitações e crescentes concessões do governo de Dilma Rousseff para os grandes grupos econômicos nacionais e internacionais mantêm uma paz aparente, quebrada apenas pelos panfletos porta-vozes de Washington que circulam em nossas bancas.
Finalmente, é importante perguntar o quanto um governo pode controlar a inflação, a insegurança e a corrupção em economias tão concentradas e com níveis tão elevados de controle estrangeiro. Com especulação se gera inflação e, seguindo as receitas ortodoxas, se jogam as taxas de juros para cima, como forma de enriquecer o sistema financeiro. Com ações terroristas e conspirações, com playboys queimando pneus e motoqueiros armados, se aumenta a violência a níveis “intoleráveis”. Com shows de “denúncias” e bombardeios de TV, rádios, revistas e jornais se apresenta um clima de “corrupção generalizada” como “nunca antes”. E toda a ação interventora do Estado para enfrentar as reais causas da inflação (os monopólios privados), a corrupção e a insegurança (heranças do neoliberalismo) é taxada de autoritarismo.
Portanto, devemos nos perguntar até que ponto os níveis de medição das quatro variáveis respondem à influência dos meios de comunicação. E em que medida a percepção das pessoas sobre esses problemas pode estar sendo dirigida pelos monopólios de mídia. A resposta, a nosso ver, leva a uma conclusão: não há nenhuma maneira de avançar com os processos progressistas, populares e democratizantes, sem a implosão e o extermínio destes dois tipos de monopólios privados. Pois, embora a combinação desses quatro fatores, que chamamos ICIA, seja etérea, gasosa e teatral, sua insistente utilização tem imposto constrangimentos e gerado freios consideráveis aos processos de mudança propostos pelos novos governos.
A destruição destes monopólios privados -econômicos e dos meios de comunicação- é essencial e gera pavor nas elites e no capital estrangeiro. Por essa razão os seus defensores são tão críticos a qualquer tentativa de ampliar o controle do poder público, do Estado, sobre essas duas estruturas. Quanto mais cedo os governos progressistas tenham a consciência da gravidade dessa situação, e quanto antes adotem medidas democratizantes, maior a sua chance de êxito. Por outro lado, continuar financiando esses monopólios com enormes e crescentes quantidades de dinheiro público, além de crime, pode ser considerado um estúpido tiro no pé.
* Luciano Severo é professor do curso de Economia, Integração e Desenvolvimento da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila), Foz do Iguaçu, Brasil.
Fonte: http://altamiroborges.blogspot.com/2013/05/icia-na-america-latina.html?spref=tw