Moradia: “A lei é usada para deixar a população de baixa renda ilegal”

Aula-magna da urbanista Ermínia Maricato, da FAU-USP, analisa a questão urbana a partir da luta de classes  e do domínio do Estado pelo setor imobiliário

Por Camila Rodrigues da Silva para Desacato.info.

erminiaSem pessimismo, mas criticamente. Esse foi o tom da aula magna da arquiteta Ermínia Maricato, cujo título da apresentação era “Cidades no Brasil: sair da perplexidade e passar a ação”. A palestra, promovida pelo programa de Pós-Graduação em Urbanismo, História e Arquitetura da Cidade, aconteceu no auditório do Centro de Eventos da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) na noite desta segunda-feira (15/04).

Maricato é professora titular aposentada de Planejamento Urbano da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (FAU-USP) e uma das mais renomadas urbanistas brasileiras. Atuou ativamente na política urbana brasileira, primeiramente na Secretaria da Habitação e Desenvolvimento Urbano do Município de São Paulo, durante a gestão de Luisa Erundina (1989-1992) e, posteriormente, na proposta de criação do Ministério das Cidades, no qual permaneceu na gestão do ministro Olívio Dutra como ministra-adjunta (2003-2005).

“O operariado não evapora depois da jornada de trabalho”

A luta de classes na questão urbana e o domínio do Estado pelo setor imobiliário balizaram a sua argumentação sobre como, a despeito do aumento de renda, não houve melhora no acesso à cidade pelos mais pobres.

A professora também pontuou que o nosso problema urbano não é “de falta de lei ou de plano”, mas o patrimonialismo, ou seja, o Estado que trabalha a partir de privilégios e trocas de favores. “A esquerda, durante muito tempo, defendia o Estado. Mas quando o Estado não é tão público, a gente precisa mudá-lo”, recomenda.

Maricato também criticou a postura atual da maioria dos movimentos sociais. “A centralidade da terra na reforma urbana foi esquecida. Alguns movimentos lutam contra a remoção e outros foram engolidos pela institucionalização”.
Para ela, a democracia no Brasil só será real quando houver distribuição de terra urbana e rural. “Não se faz reforma urbana sem reforma agrária”.

Sobre despejos

“Do que eu conheço, o despejo é ilegal, por todos os acordos internacionais que o Brasil já assinou e por tudo o que se diz na Constituição. Pela lei, o direito à propriedade não é um direito absoluto e o direito à moradia o é. O direito à propriedade está submetido à função social da propriedade, enquanto o direito à moradia é absoluto. Mas o Judiciário trata (a questão da moradia) como se fosse uma questão do Código Civil de 1917, em que a propriedade privada era sim um direito absoluto.”

Veja os principais trechos da entrevista para  o DESACATO.

DESACATO – Em relação às ocupações e ao s movimentos de moradia, como a politica habitacional deveria lidar com a regularização fundiária sem deslegitimar a organização popular?

ERMÍNIA MARICATO – A regularização fundiária cabe sempre quando a população não está em área de risco de vida, não está em lugares que às vezes se torna inviável pela condição ambiental. A gente adotou como política fazer a regularização (em sua atuação na secretaria da habitação na prefeitura de São Paulo), mas é muito difícil fazê-la.

A lei no Brasil media as relações sociais e morar dentro da lei, com escritura, tudo legalizado, é impossível para população mais pobre. Eu posso dizer o seguinte: loteamento fechado no Brasil é ilegal. No entanto, há juízes e promotores morando em loteamento fechado, e ali não se considera ilegal.

Então, o que é legal e o que é ilegal também têm a ver com a condição de classe social. É muito difícil regularizar favelas, por exemplo, mesmo urbanizadas. É muito difícil regularizar comunidades tradicionais. E por que é muito difícil? Porque a lei é usada para deixar a população de baixa renda ilegal. Existe até um empenho nesse sentido.

DESACATO – Também nesse sentido, queria perguntar sobre o subsidio à moradia popular. Se ela não tem prevalecido como politica pública sobre a regularização fundiária e se isso não beneficia muito mais as construtoras do que a população?

ERMÍNIA MARICATO – Não entendi sua pergunta.

DESACATO – É mais fácil migrar essas pessoas para um Minha Casa Minha Vida do que regularizar os lugares onde elas já vivem. Por exemplo: os “Singapuras”, em São Paulo. É uma construção vertical que partiu de uma iniciativa externa, não de uma construção popular.

ERMÍNIA MARICATO – Eu acho que não deve haver preconceito com edifícios, porque a autoconstrução tem muito problema. É muito comum a construção popular ser insalubre e causar problemas respiratórios em crianças e idosos.
Não há conhecimento para fazer uma abertura correta de janela, e às vezes nem tem lugar para fazer isso. Numa favela muito adensada, os quartos que ficam no fundo das casas não têm janela, então, não têm ventilação, não têm aeração, não têm insolação. É um ambiente que propicia doença. Por isso, eu acho que se você tiver um edifício bem projetado onde as pessoas são abrigadas de forma mais saudável.

DESACATO – Queria saber em relação ao Plano Diretor Participativo, que é uma questão que está bem em alta aqui em Florianópolis. Existe um Plano Diretor Participativo que está sendo construído há oito anos (o processo participativo do Plano Diretor foi iniciado oficialmente com a realização da 2ª Conferência da Cidade de Florianópolis em 2005)…

ERMÍNIA MARICATO – Oito anos!?

DESACATO – Sim. E está sendo reivindicada a sua aprovação para o novo prefeito. Como o nosso portal tem um grande público daqui da cidade, gostaria de saber se você conhece algum Plano Diretor Participativo no Brasil que foi bem-sucedido.

ERMÍNIA MARICATO – Conheço! Um maranhense que se chama Frederico Burnett fez uma avaliação de cinco Planos Diretores, dentre eles o Plano de Diadema, que foi aprovado com o povo dentro da Câmara Municipal. Ele foi muito discutido com a população, que era organizada, muito aguerrida. E foi um Plano Diretor interessante mesmo.

Não dá para dizer que tudo deu certo. A urbanização das favelas, depois de 30 anos sem regularização, levou a um “encortiçamento”. É um adensamento muito alto, sem edifícios, mas as pessoas vão construindo lajes sobre lajes e chega até o quinto andar, sabe? Sem uma estrutura adequada, sem conforto térmico… Ou seja, tem problemas, mas eu acho que foi o plano mais democrático que existiu no Brasil.

DESACATO – Na plateia, você acabou de ouvir de uma assessora na Câmara Municipal de Florianópolis como a “cidade real” está sendo votada pelos vereadores. E o fato é que o zoneamento urbano e a ocupação do solo dominam a pauta–pelo menos aqui em Florianópolis.

ERMÍNIA MARICATO – E o Plano Diretor está sendo discutido há oito anos?

DESACATO – Exatamente. E a cidade real está sendo votada diariamente. Queria saber se isso é comum nas cidades ou se seria uma especificidade de Florianópolis?

ERMÍNIA MARICATO – Não. Eu acho que Florianópolis e as cidades que têm paisagens e recursos ambientais –que evidentemente são plasmados no preço do solo– podem estar sendo mais açodadas que outras capitais brasileiras.
Têm lugares em que as câmaras municipais não discutem tanto porque se passa por cima da lei com mais facilidade. E têm lugares que se discute porque precisa, ou seja, porque certos setores do capital não aceitam fazer seus negócios fora da lei. As grandes empreiteiras, as grandes empresas incorporadoras não fazem fora da lei. As grandes que eu digo são aquelas que têm capital aberto na bolsa, que têm bancos ligados a incorporadoras, que respondem a acionistas. É difícil elas fazerem as coisas fora da lei.

Foto: Lívia Monte.

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