Por Marie Dufaux.
Estamos perante um momento histórico! A coligação de partidos tunisinos da oposição de esquerda laica, a Frente Popular (que reagrupa onze formações políticas), organizou, a 23 e 24 de Março de 2013, uma reunião com representantes de partidos políticos progressistas da região do Mediterrâneo, com o objetivo de reivindicar, em conjunto, a anulação das dívidas odiosas e ilegítimas dos Estados do Sul e do Norte do Mediterrâneo. Foram dois meios dias de trabalho, que resultaram numa declaração final. Os trabalhos terminaram com a realização de uma grande conferência pública, que reuniu mil participantes e o conjunto das forças de esquerda, presentes no encontro, em torno de uma luta agora comum[1].
Eis o resumo da intervenção de Éric Toussaint, durante o encontro mediterrânico contra a dívida, as políticas de austeridade e de dominação estrangeira e a favor de um Mediterrâneo livre, democrático, social, solidário, feminista e ambientalista.
Éric Toussaint, presidente do CADTM Bélgica, sublinhou que a aliança política que está a nascer surge na sequência da luta iniciada por Thomas Sankara, presidente do Burkina Faso, assassinado em 15 de outubro de 1987 depois de ter apelado aos povos de África e do mundo para se unirem em torno do combate pelo não pagamento da dívida ilegítima. O movimento que está a nascer prolonga também a luta levada a cabo por todos os mártires da Primavera Árabe e por Chokry Belaïd, porta-voz da Frente Popular tunisina, assassinado em 6 de fevereiro de 2013. De recordar também Ahmed Ben Bella, primeiro presidente da Argélia independente, falecido em abril de 2012[2], que, no final da sua vida, fez da luta pela anulação da dívida ilegítima um dos seus combates prioritários.
As organizações políticas reunidas em Tunes, a convite da Frente Popular, têm pela frente um desafio. Muitas vezes, os partidos de esquerda limitam-se a fazer uma denúncia radical da dívida, a nível retórico, sem, de facto, fazerem da dívida uma das prioridades do seu trabalho quotidiano de aproximação aos cidadãos e cidadãs. Alguns deles, quando à beira do poder ou do governo, abandonam a promessa de acabar com a dívida ilegítima e cedem face ao seu pagamento.
Éric Toussaint definiu o conceito de dívida odiosa, contraída por um regime ditatorial como o regime de Ben Ali. Segundo o direito internacional, após a queda de um regime ditatorial, a parte odiosa da dívida é nula e não deve, em nenhum caso, ser reembolsada. É verdade que muitas vezes é necessário lutar para que o direito internacional seja de facto respeitado. Nesse sentido, apenas uma forte mobilização popular pode convencer o governo a recorrer a um ato de suspensão e repúdio da dívida odiosa. Por isso, é fundamental constituir uma relação de forças que permita confrontar os credores.
A nível do direito internacional, uma dívida odiosa corresponde hoje a três critérios[3]:
– A ausência de consentimento por parte da população do Estado endividado.
– Ausência de benefícios por parte da população do Estado endividado.
– Os credores sabem que os empréstimos que contraíram não servem os interesses da população, nem foram objecto de aprovação popular.
As dívidas de países como a Grécia, Portugal e Irlanda em relação à Troika (Banco Central Europeu, Comissão Europeia, FMI) devem ser denunciadas porque correspondem aos três critérios acima mencionados: 1. As populações dos países em causa não deram o seu consentimento e os governos eleitos sob o efeito dos programas de austeridade acabaram por ceder à vontade da Troika quando chegam ao poder 2. Essas dívidas não beneficiam as populações, ao contrário, estão relacionadas com violações de direitos económicos, sociais, civis e políticos (cortes nos gastos sociais e salários, despedimentos massivos, degradação do acesso à saúde e à educação, anulação das convenções colectivas, não cumprimento da vontade dos eleitores, submissão do poder legislativo ao poder executivo,…) 3. Os credores, incluindo Troika e banqueiros, sabem muito bem que os créditos que concederam não servem os interesses das populações, porque esses créditos são contraídos com o objetivo de pagar a dívida, aplicando, em troca, planos drásticos de austeridade. É a própria Troika que impõe essas violações de direitos humanos e dita as condições aos governos e parlamentos dos Estados endividados.
Por seu lado, desde 2011, os governos que sucederam à ditadura de Ben Ali e de Mubarak também contraíram dívidas que não servem, de maneira nenhuma, os interesses da população, mas os interesses dos credores. Esses governos endividam os seus países para pagarem as dívidas odiosas das ditaduras e para implementarem políticas que aumentam a vulnerabilidade desses países. Essas dívidas são, portanto, ilegítimas.
A Tunísia, tal como o Egito, negoceia agora um empréstimo junto do FMI[4]. Esse tipo de abordagem não facilita a situação. Mas se esses empréstimos forem concedidos, serão ilegítimos por, pelo menos, duas razões: servirão para pagar dívidas antigas odiosas e estarão ligados à implementação de políticas contrárias aos interesses das populações.
Há que ter em conta outros fatores para determinar o carácter ilegítimo da dívida.
Por um lado, as dívidas podem gerar políticas fiscais injustas. Em concreto, os Estados concedem benefícios fiscais às grandes empresas (nacionais ou estrangeiras) e às famílias mais ricas, o que implica diminuir as receitas fiscais e aumentar o défice. Isso leva, portanto, a um aumento da dívida pública, porque os Estados recorrem a empréstimos para financiar os seus orçamentos. As dívidas contraídas nessas condições estão feridas de ilegitimidade porque são socialmente injustas.
Por outro lado, as dívidas podem ser consequência de resgastes bancários. Desde 2007, os governos dos Estados dos países mais industrializados socorrem os bancos privados responsáveis pela crise, concedendo milhares de milhões de euros, sob a forma de injecções de capital ou garantias variadas[5]. As dívidas contraídas para financiar esses resgates são ilegítimas.
Os credores e os governos dizem que se deve pagar sempre as dívidas sem questionar a sua origem, mesmo que sejam ilegítimas, e utilizam a desculpa do equilíbrio orçamental para imporem políticas de austeridade anti-sociais. É nesse contexto que uma parte cada vez maior da população dos países mediterrânicos (e não só) rejeita o pagamento da dívida ilegítima. Nalguns desses países (Tunísia, Espanha, Portugal, Grécia, França, etc.), foram criadas auditorias cidadãs para determinar a parte ilegítima da dívida pública, que foi contraída pelos Estados. Pretende-se saber «como», «porquê», «por quem» a dívida foi contraída e se realmente serve os interesses da população. Esses comités de auditoria cidadã visam convencer o maior número possível de cidadãos da necessidade de anular a dívida ilegítima.
Desobedecer aos credores
É possível e necessário desobedecer às instituições financeiras internacionais e à Troika e recusar os ditames dos credores privados no sentido de encontrar margem de manobra para melhorar a situação dos países e das suas populações. A firmeza resulta! É o que demonstram vários exemplos concretos de países que ousaram desafiar os credores.
A Argentina e a suspensão do pagamento da dívida
Foi assim, a Argentina, após três anos de recessão económica (1999-2001), e no contexto de uma revolta popular que derrubou o presidente De La Rua, decidiu suspender, no final de dezembro de 2001, o pagamento de grande parte da sua dívida pública externa no valor de cerca de 90 mil milhões de dólares.
Uma parte dos montantes libertados foram reinvestidos nos sectores sociais, nomeadamente em subsídios pagos a desempregados, organizados no âmbito do movimento dos piqueteros. Há quem argumente que, na realidade, a recuperação económica da Argentina, de 2003-2004, deve-se, sobretudo, ao aumento do preço das exportações (soja, minerais, …). É falso porque se a Argentina não tivesse suspendido o pagamento da dívida, a partir do final de 2001, as receitas públicas geradas pelas exportações teriam sido engolidas pelo pagamento da dívida. O governo não teria meios para estimular a atividade económica. Além disso, graças à suspensão do pagamento de 90 mil milhões de dívidas comerciais, que durou até março de 2005, a Argentina conseguiu impor aos seus credores a redução de metade desse montante. O CADTM e muitos movimentos sociais e partidos de esquerda argentinos propuseram, na altura, ir mais longe, no sentido da anulação total da dívida ilegítima, não só em relação a credores privados, mas também em relação ao FMI e a outros credores. O governo argentino recusou seguir esse caminho.
É importante acrescentar que a Argentina se mantém em suspensão total de pagamento da dívida de 6,5 mil milhões de dólares ao Clube de Paris desde 2001. Pode-se, portanto, constatar que o país enfrenta o Clube de Paris há já doze anos. Apesar dos 44 processos perante o Banco Mundial, interpostos contra a Argentina, e apesar das ameaças recentes no sentido de ser expulsa do FMI, Buenos Aires mantém-se firme. Desde 2001, a Argentina não pede emprestado nos mercados financeiros e, mesmo assim, o país continua a funcionar!
É importante não interpretar mal a experiência argentina, deve-se evitar fazer dela um modelo, é necessário adotar um ponto de vista crítico. O governo argentino tem mantido o país num enquadramento capitalista; não foram levadas a cabo reformas estruturais; o crescimento económico argentino baseia-se, sobretudo, na exportação de produtos primários (soja transgénica e minerais). Trata-se de um modelo extrativista e exportador. No entanto, o que a Argentina fez demonstra que se pode perfeitamente desobedecer aos credores. Noutras condições, um verdadeiro governo de esquerda pode inspirar-se no precedente argentino para ir ainda mais longe.
Equador: auditoria e suspensão
Outro exemplo: o Equador. Sete meses após ter sido eleito, o presidente do Equador, Rafael Correa, decidiu, em julho de 2007, realizar uma auditoria à dívida do país e às condições em que esta foi contraída. Para esse efeito, foi constituída uma comissão de auditoria à dívida, composta por dezoito especialistas, incluindo o CADTM. Após 14 meses de trabalho, foi apresentado um relatório. Mostrava que muitos empréstimos tinham sido concedidos violando regras básicas. Em novembro de 2008, o novo poder, apoiando-se no relatório, decidiu suspender o pagamento da dívida constituída por títulos de dívida, uns com vencimento em 2012 e outros em 2030. No final, o governo desse pequeno país saiu vitorioso do confronto com os banqueiros norte-americanos detentores de títulos de dívida do Equador. Voltou a comprar por menos de mil milhões de dólares títulos que valiam 3,2 mil milhões de dólares. O tesouro público do Equador poupou cerca de 2,2 mil milhões de dólares de stock de dívida, aos quais devem ser acrescentados juros anuais no valor de 200 milhões de dólares relativos ao período entre 2008 e 2030. A medida possibilitou a libertação de novos recursos financeiros, que permitiram que o governo aumentasse os gastos sociais em saúde, educação, ajudas sociais e no desenvolvimento de infra-estruturas de comunicação. O executivo consagrou também na Constituição a proibição de transformar dívidas privadas em dívida pública e a proibição de contrair dívidas ilegítimas[6].
Deve-se acrescentar que o Equador não reconhece a jurisdição do tribunal do Banco Mundial. Recusou assinar um acordo de comércio livre com a União Europeia e com os Estados Unidos. O presidente equatoriano anunciou a sua intenção de lançar uma auditoria sobre os tratados bilaterais de investimento. Por último, as autoridades de Quito puseram fim à presença militar dos Estados Unidos em território equatoriano.
No caso do Equador, convém também evitar considerar a experiência em curso como sendo um modelo a seguir. É indispensável ter um olhar crítico. Resta a experiência equatoriana em termos de auditoria e de suspensão unilateral do pagamento da dívida, que demonstra ser perfeitamente possível desobedecer aos credores e aproveitar a situação para melhorar a despesa pública em áreas como a educação e a saúde pública.
A Islândia: a recusa de pagar a dívida reclamada pelo Reino Unido e pela Holanda.
Após o colapso do sistema bancário, em 2008, a Islândia recusou indemnizar os cidadãos da Holanda e do Reino Unido, que tinham colocado fundos, num total de 3,9 mil milhões de euros, em filiais de bancos islandeses privados, que entraram em colapso. As autoridades britânicas e holandesas compensaram os seus cidadãos e exigiram que a Islândia também os reembolsasse. Sob pressão popular (manifestações, ocupações de praças, referendos), as autoridades de Reykjavik recusaram. A situação fez com que a Islândia fosse inserida na lista de organizações terroristas, provocou o congelamento dos bens islandeses no Reino Unido e levou Londres e Haia a apresentarem uma queixa contra Reykjavik no Tribunal da Associação Europeia de Comércio Livre (EFTA)[7]. Por outro lado, a Islândia bloqueou, por completo, a saída de capitais do país. No final, a Islândia sobrevive muito melhor do que outros países europeus, que aceitaram as exigências dos credores. Mais uma vez, evitemos fazer da Islândia um modelo, mas tiremos lições da sua experiência.
Estes exemplos mostram que desobedecer aos credores não é uma catástrofe e não levou, em nenhum dos casos, ao colapso dos países.
Sublinhe-se também que estas experiências foram precedidas ou aconteceram num contexto de mobilizações populares, que pressionaram os governos. Daí a importância, como lembra Éric Toussaint, de chegar a toda a população através da divulgação deste tema, por vezes, complexo. O trabalho de auditoria é um trabalho de consciencialização. Trata-se de tornar visível a ilegitimidade da dívida junto da maioria da população.
Para concluir o ateliê, Éric Toussaint sublinhou que os exemplos citados não são modelos políticos a seguir, mas são experiências de onde é pertinente tirar importantes lições políticas! Tradução: Maria da Liberdade
Marie Dufaux – CADTM Bélgica
[1] Ver Pauline Imbach, «Tunes: Nasceu uma Frente Comum de organizações políticas contra a dívida», http://cadtm.org/Tunes-Nasceu-uma-Frente-Comum-de , publicado a 27 de março de 2013.
[2] Ver Eric Toussaint «En souvenir d’Ahmed Ben Bella, 1er président de l’Algérie indépendante, décédé le 11 avril 2012 à l’âge de 96 ans», http://cadtm.org/En-souvenir-d-Ahmed-Ben-Bella-1er , publicado a 12 de abril de 2012.
[3] Ver CADTM, http://cadtm.org/Droits-devant, e, em particular, Stéphanie Jacquemont, «Que retenir du rapport de l’expert de l’ONU sur la dette et les droits humains?», http://cadtm.org/Que-retenir-du-rapport-de-l-expert , publicado em 25 de janeiro de 2013.
[4] http://www.imf.org/external/french/np/sec/pr/2013/pr1335f.htm
[5] Ver Damien Millet, Daniel Munevar e Eric Toussaint, Os Números da Dívida 2012, quadro 28 / Custo dos resgates bancários na Europa, dívida emitida até 2011, em M€, http://cadtm.org/Os-numeros-da-divida-2012
[6] Ver Eric Toussaint, «La Constitution équatorienne: un modèle en matière d’endettement public», http://cadtm.org/La-constitution-equatorienne-un , publicado a 27 de dezembro de 2010.
[7] O Tribunal da Associação Europeia de Comércio Livre (EFTA), que não tem nada de associação altermundialista, deu razão à Islândia há dois meses. Ver CADTM, «O tribunal da EFTA (Associação Europeia de Livre Comércio) rejeita queixas do “Icesave” contra a Islândia e os seus habitantes», http://cadtm.org/O-tribunal-da-EFTA-Associacao , publicado em 30 de janeiro de 2013.
Fonte: ALAINET