Mali: a França comemora cedo demais?

Tanque francês em Tumbuktu  Tanque francês em Tumbuktu
Tanque francês em Tumbuktu 

Expulsos das cidades, fundamentalistas vão refugiar-se no deserto. Quem evitará seu regresso? Que os levou às correntes intolerantes do Islã?

O presidente da França, François Hollande, anunciou que viajará a Bamako, a capital do Mali, neste sábado, para comemorar o que é, aparentemente, uma vitória militar quase-instantânea. Nesta semana, depois de duas semanas de intervenção e bombardeios, tropas francesas entraram na cidade de Tumbuktu, que segundo Boaventura Santos abrigou a primeira universidade do mundo, anterior a Bolonha. Foram saudadas pela população, que viveu meses de terror sob os fundamentalistas. Mas seu triunfo será duradouro? Dois textos recém-publicados ajudam a compreender os impasses que enfrentarão. Uma reportagem de Ligia Polgreen, no New York Times cita fontes militares norte-americanas que parecem céticas. Não houve resistência à entrada dos soldados franceses, dizem elas; os antigos ocupantes da cidade retiraram-se para o deserto. Mas estão bem armados. Seu retorno ao Mali é uma das consequências da derrubada de Muamar Gadafi na Líbia. Quem irá evitar que voltem, quando os franceses partirem?

Outra matéria, mais profunda, saiu no site alternativo francês Rue89. Entrevistado em Bamako, um amigo pessoal do líder dos fundamentalistas Iyad ag-Ghaly, que prefere não se identificar, traça o cenário histórico que gerou a sucessão dos fatos registrados nos últimos meses. Seu relato ajuda a compreender que a ascensão islâmica não é apenas produto da loucura de fanáticos, mas resultado de um conjunto de contradições. Ele conta, por exemplo, que:

A independência do Mali (em relação à França, em 1960) criou, como em tantos casos na África, um país artificial, formado por conveniências do colonizador. Os bambaras, predominantes no Sul, tornaram-se predominantes, em prejuízo dos tuaregs, nômades do Norte. Estes revoltaram-se pelo menos em pelo menos duas ocasiões anteriores — em 1963 e 1990.

Iyad ag-Ghaly, o chefe tuareg que tomou o poder no norte do país, em abril de 2012, foi também o grande líder da revolta de 1990 — após a qual firmou-se um grande pacto nacional. Não era, então, um muçulmano. Mas interessou-se pelo crescimento da religião na África, onde ela ocupou espaço deixado pelos nacionalistas. Julgando-o perigoso, as autoridades do Mali enviaram-no, na condição de diplomata, à Arábia Saudita. Lá, fez contato com os salafitas — talvez o ramo mais radicalmente fundamentalista do Islã.

Ghaly regressou ao Mali convencido de que, embora islâmico, seu país o era apenas parcialmente. Queixava-se de que “aqui não se cortam as mãos dos ladrões, como manda o Alcorão”, relata seu amigo.

Porém, sua ascensão como líder de uma revolta que assumiu o poder na maior parte do país, em abril de 2012, só foi possível graças à derrubada de Muamar Gadafi, na vizinha Líbia. Os tuaregs, que faziam parte do exército líbio, regressaram ao Mali em meio ao caos em que mergulhou o país onde viviam. Levaram consigo armamento pesado. Depararam-se com um dos países mais pobres do mundo, e um Estado cuja influência real é limitadíssima. Que irá detê-los, agora? Embora sem a profundidade de Rue 89, o texto do New York Times narra o que Tumbuktu viveu sob seu domínio. São parte da história a amputação das mãos de supostos ladrões e a queima de documentos históricos, relativos a uma África pré-Islã, que jamais poderão ser recuperados.

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Fonte: Rede Social Outras Palavras

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