Trabalhadores em condições análogas às de escravos foram resgatados produzindo peças da Gangster Surf and Skate Wear, confecção paulistana que tem como público-alvo surfistas, skatistas e praticantes de outros esportes radicais. A libertação foi feita na última terça-feira (19), durante fiscalização em uma pequena oficina localizada no bairro São João, em Guarulhos (SP), onde trabalhavam dois bolivianos e um peruano. Os três foram resgatados. Toda a produção da oficina era destinada à Gangster, loja do bairro do Brás, região central da capital paulista.
Em nota enviada à Repórter Brasil, a empresa afirma sido surpreendida pelo episódio e lamentá-lo “profundamente”. Diz ainda ter adotado medidas para salvaguardar os direitos dos trabalhadores e iniciado “uma revisão dos procedimentos internos das contratações de fornecedores, visando alinhar a gestão às melhores práticas na formação e monitoramento das relações de trabalho da cadeia produtiva”.
Os três trabalhadores dormiam no próprio local, um sobrado de três dormitórios com precárias instalações elétricas e más condições de higiene e de segurança – o botijão de gás ficava a poucos metros de um dormitório improvisado no cômodo ao lado da cozinha. A operação, acompanhada pela Repórter Brasil, foi realizada sob a coordenação do Grupo Móvel de Combate ao Trabalho Escravo, vinculado ao Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). Participaram também representantes do Ministério Público do Trabalho (MPT), Polícia Federal e Receita Federal.
Os imigrantes não tinham registro em carteira. Como ganhavam por produção, cumpriam jornada exaustiva. Segundo eles, em média começavam a costurar por volta das 7h30 e paravam em torno das 20hs – havia intervalos de uma hora para o almoço e meia hora para o chá. Aos sábados, trabalhavam até o meio-dia. Em um dos quartos dormia o dono da oficina, que, com a esposa e os dois filhos, estava em viagem à Bolívia no dia do flagrante. Ainda de acordo com os trabalhadores, no local haviam mais sete funcionários (todos bolivianos), que após uma fiscalização anterior do MPT tinham decidido ir embora.
Condições precárias
A má impressão começa logo ao entrar no local. No pátio da frente, em um espaço aberto coberto por um telhado de zinco, inúmeros objetos estão amontoados: televisão, microondas, bicicleta ergométrica, esteira eletrônica, ventilador, geladeira, engradado de cerveja – todos em mau estado – em meio a várias peças de roupa, brinquedos e caixotes de madeira espalhados pelo chão. Para completar a cena, batatas e cebolas apodrecidas jogadas no piso. Em outro canto do pátio da frente, um mini “depósito”, com pilhas de moletons recém-costurados.
No andar de baixo, no cômodo contíguo à cozinha, uma cortina serve como divisória para improvisar um dormitório para uma pessoa. Sueko Uski, auditora fiscal da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de São Paulo (SRTE/SP), chama a atenção para a proximidade entre o botijão de gás e o local em que um dos trabalhadores dormiam. Além disso, uma precária fiação cruza o cômodo de um lado a outro. Ainda no piso inferior do sobrado fica o quarto do dono da oficina, onde dorme com sua esposa e filhos. No andar de cima, são dois quartos: um com duas camas de solteiro, outro com três. Ao lado, encontra-se um grande salão com 17 máquinas de costura e inúmeras pilhas de peças já costuradas ou a costurar. No teto, um emaranhado de fios e lâmpadas fluorescentes pendurados.
A Gangster pagava à oficina aproximadamente entre R$ 0,70 e R$ 3 por peça, dependendo do nível de dificuldade de sua produção. Cada costureiro ficava com apenas um terço do valor; outro terço era reservado para as despesas da casa, como limpeza e alimentação, enquanto o restante ficava com o oficinista. Por mês, cada imigrante ganhava em média R$ 800, isso por conta da realização de várias horas-extras. De acordo com cálculos do Grupo Móvel de Combate ao Trabalho Escravo, se fossem respeitadas as 44 horas semanais definidas pela legislação trabalhista, o ganho mensal seria de apenas R$ 560.
Na ausência do dono da confecção, a encarregada era sua cunhada, que também trabalhava como costureira. Esteve no Brasil pela primeira vez entre 2008 e 2010 e, no ano passado, retornou. Está no país apenas para juntar dinheiro e voltar para a Bolívia, onde cursa Enfermagem. Segundo ela, o proprietário da oficina está há cinco anos no Brasil e herdou de uma tia parte do maquinário.
O outro trabalhador boliviano afirmou estar há quatro meses no país, para onde decidiu vir de La Paz após ser convencido por uma prima que vive aqui. Segundo ele, há dois meses, na praça Kantuta – tradicional local de reunião de bolivianos na região central de São Paulo – foi chamado a trabalhar pelo próprio dono da confecção de Guarulhos. Já o costureiro peruano soube do local quando jogava futebol em um campo nas proximidades.
Na próxima semana, os proprietários da Gangster devem assinar um Termo de Ajuste de Conduta (TAC) em que se comprometem a elaborar um código de conduta a ser seguido por todos os fornecedores e a realizar o permanente monitoramento de sua cadeia produtiva. Além disso, por causa do flagrante devem pagar um aporte social de R$ 300 mil. As indenizações trabalhistas aos imigrantes libertados já foram pagas e o MTE já emitiu suas carteiras de trabalho e guias de seguro-desemprego.
Outras fiscalizações
No próprio dia 19, 28 costureiros bolivianos submetidos à escravidão foram resgatados em uma oficina na Zona Leste de São Paulo (SP) que produzia peças para a GEP, empresa formada pelas marcas Emme, Cori e Luigi Bertolli e que pertence ao grupo que representa a grife internacional GAP no Brasil.
Na mesma semana foi realizada a São Paulo Fashion Week, tradicional desfile de moda da capital paulita. Uma semana depois, na terça-feira (26), o deputado estadual Carlos Bezerra Jr. (PSDB) protocolou na Assembleia Legislativa de São Paulo pedido de convocação do representante legal da GEP para dar explicações sobre o caso à Comissão Estadual de Direitos Humanos. O requerimento deve ser votado no dia 2 de abril.
Ainda no dia 19, a fiscalização conjunta do MTE e do MPT flagrou 13 trabalhadores bolivianos em condições análogas às de escravo em mais três confecções, duas localizadas na Zona Leste de São Paulo e uma na Zona Norte. Em dois dos casos – que somavam, no total, oito costureiros –, a produção era encomendada pela Silobay, empresa intermediária da GEP. No momento da fiscalização em tais oficinas, porém, não havia mercadorias da marca. As negociações para que tal intermediária pague as indenizações aos imigrantes e assine um TAC ainda estão em curso. Situação semelhante a de uma empresa atacadista do Brás, que comprava a produção da terceira confecção, onde foram encontrados cinco costureiros.
Colaborou Guilherme Zocchio
Leia a seguir a nota de esclarecimento da Gangster:
“A Gangster, por meio de sua administração, informa que foi surpreendida e lamenta profundamente o ocorrido, tendo adotado de imediato todas as medidas exigidas pelas autoridades públicas envolvidas na operação, para salvaguardar todos os direitos dos três trabalhadores encontrados em situação irregular junto a uma facção que nos industrializa por encomenda, bem assim, seu ambiente de trabalho.
Por essa razão, concomitante e independentemente das tratativas com o MPT para eventual ajustamento de conduta ainda em fase de discussão, a empresa já iniciou uma revisão de seus procedimentos internos das contratações de fornecedores, visando alinhar a gestão às melhores práticas na formação e monitoramento das relações de trabalho da cadeia produtiva.”