Semana passada aconteceu um fato inédito e digno de celebração pra qualquer pessoal que seja a favor da liberdade de escolha. O Conselho Federal de Medicina e 27 conselhos regionais, que representam 400 mil médicos no Brasil, se posicionaram sobre a questão do aborto pela primeira vez: dois terços são a favor da vontade da gestante. Apoiam a interrupção da gravidez até a décima-segunda semana de gestação. Ou melhor, como disse o presidente do CFM, “Defendemos o caminho da autonomia da mulher”.
Em outras palavras: não apoiam o aborto, mas a escolha da mulher em abortar. É exatamente este o ponto. Ninguém é a favor do aborto, um procedimento que deve ser feito em último recurso e que jamais substitui o controle da natalidade. Eu mesma nunca fiz um aborto, e se engravidasse, provavelmente não faria. Mas eu defendo o básico: que cada mulher tenha autonomia sobre seu corpo e, por isso, cabe a cada uma decidir.
Agora o CFM levará sua posição à comissão especial do Senado que analisa a reforma do Código Penal. Opa, Código Penal? Mas aborto não é uma questão de saúde pública? Não no nosso país, que tem uma das legislações mais atrasadas do mundo em relação ao tema. Aqui, aborto é assunto de polícia. E aí fica aquela pergunta: você é favorável à prisão de uma mulher que aborta? Muita gente é. Tem até quem defenda a pena de morte. Felizmente, um assunto tão sério não fica nas mãos de gente com mentalidade medieval. Não é a maioria que faz ou aprova as leis para minorias, por um motivo óbvio: na maior parte das vezes, os direitos das minorias não interessam à maioria.
Nosso Código Penal tem o mesmo texto desde 1940, e é desnessário dizer que muita coisa mudou de lá pra cá. Por isso ele vem sendo discutido por uma comissão no Senado. Há vários temas polêmicos (o aborto sendo o pincipal), e, portanto, acredita-se que o texto só será levado para aprovação no plenário no ano que vem.
Faz um ano, a comissão de juristas nomeada pelo Senado aprovou um anteprojeto que aumenta as possibilidades de que aborto não seja visto como crime (hoje o aborto é permitido em apenas três casos: se a gravidez for resultado de um estupro, se há risco de vida, se o feto é anencéfalo). Nesse texto está o direito à interrupção da gravidez até doze semanas, desde que um médico ou psicólogo ateste que a gestante não tem condições de arcar com a maternidade. Agora o CFM deu respaldo a esse texto, e sem a necessidade do laudo médico ou psicológico.
Este bloguinho que vos fala já criticou Conselhos de Medicina várias vezes, seja pela posição de conselhos contra o parto em casa, seja pela falta de punição para médicos que cometem assédio sexual. Mas esta decisão do Conselho Federal de Medicina sobre o aborto é maravilhosa, corajosa, e deve ser aplaudida.
Os argumentos contra a legalização do aborto são poucos e previsíveis, até porque todos já foram discutidos e rebatidos nos países em que o aborto é legalizado — nada menos que em 74% do mundo; somos nós que estamos atrasados em algumas décadas. Um argumento constante contra a legalização é que ela forçaria médicos a fazer algo que vai contra seus princípios. Claro que essa argumentação quer fazer crer que toda a classe médica é contra a legalização, o que não é verdade em nenhum lugar.
Em geral, médicos são pessoas racionais, que sabem que abortos acontecem clandestinamente (mais de um milhão por ano no Brasil). E esta não é uma invenção feminista do século XX. Gravidez não desejada sempre aconteceu, e mulheres sempre encontraram formas de interromper um processo que acontece no seu corpo. O problema é que esses procedimentos clandestinos muitas vezes matam. Vale ressaltar que matam não só o feto, mas também a mulher. Abortos clandestinos são a quarta maior causa de morte materna no Brasil (por exemplo, aborto supera câncer de mama em internações pelo SUS).
Mas já ouvi e li muita gente dizer “bem feito”. Essa gente quer que mulheres morram. Essa gente não tem a menor empatia por mulheres e nem por seus filhos. A empatia é toda por um feto, algo abstrato, sem nome, que eles chamam de criança. Assim que o bebê nasce, já não é mais preocupação deles. Agora se vira, dizem eles para a mãe. Quem mandou fazer filho?
Sei bem que mascus não representam um bom exemplo pra coisa alguma, mas às vezes, ao ver uma caricatura, percebemos as contradições de quem tem um discurso mais sutil.
Um mascu, como quase todo ser de extrema direita que se preza, é radicalmente contra o aborto — menos quando o filho é dele. Aí ele tem certeza que a “vadia” engravidou de propósito para tirá-lo de provedor, e pensa no que fazer para impedir essa gravidez.
Ou seja, como é típico, mascu é contra o aborto dos outros. É o velho desejo de controlar um corpo que não é seu.
Mas vamos acreditar que mascus são contra o aborto de modo geral. Não tem nada no mundo que eles odeiem mais que mãe solteira. Ué, mães solteiras deveriam ser idolatradas por qualquer pró-vida. Deveria erguer monumentos pras mães solteiras. Afinal elas, contra todas as dificuldades, decidiram levar a gravidez adiante e ter o filho, mesmo que isso represente que ela cuidará dele sozinha, sem ajuda. Mas não. Nossa sociedade abomina mães solteiras.
Mascus as chamam de M$ol, sugerindo que elas estão desesperadas atrás de um provedor. Sinto muito, mas custo acreditar que alguém que chama filho de mãe solteira de EAA (Esporrada Alheia Ambulante) está preocupado com um feto. Quer dizer, se mascu consegue se referir a uma criança, uma vida de verdade, como EAA, qual a empatia que pode ter por um feto, um projeto de vida? Ou por acaso este projeto de vida é mais importante que uma vida concreta, como a da mulher?
Não se engane: quem está na liderança contra a legalização do aborto no Brasil são grupos religiosos (católicos, evangélicos, espíritas) e neonazistas, como os integralistas, amplamente presentes na marcha que foi realizada em Fortaleza em novembro contra o aborto. De que lado você está? Quem é realmente pró-vida?
Em setembro, quando o Uruguai aprovou o aborto, um deputado da oposição (ele votou pela legalização, contra a decisão de seu partido) justificou assim seu voto: “Há dois tipos de sociedades que condenam o aborto: as que têm um poder religioso tão forte a ponto de submeter as liberdades ao dogma, como as muçulmanas, ou as democráticas porém hipócritas, como a nossa”.
Chega de hipocrisia. Foi o que o Conselho de Medicina fez. Mais cedo ou mais tarde, médicos acabam tratando de muitas mulheres que abortam. Muitas vão parar em hospitais — em 2001, houve 243 mil internações no SUS por curetagens pós-aborto. Várias vezes as mulheres são atendidas tarde demais, quando já não se pode fazer nada. E elas morrem. Só pode ser a favor deste quadro quem acredita que mulheres que abortam merecem a pena de morte.
É hipocrisia sim, não tem outra palavra. A sociedade que condena o aborto é a mesma que finge não ver que uma em cada quatro gestações acaba em aborto espontâneo. Os grupos religiosos fecham os olhos para o fato de que Deus é um grande abortista. Abortos espontâneos, naturais, acontecem no primeiro trimestre de gestação, que é justamente o período que queremos para a realização do aborto induzido. Então, antes de querer condenar a mulher que quis o aborto, ou o médicx que o realizou, pense no seu deus. Pense no seu deus antes de chamar alguém de abortista (como se uma mulher ter direito sobre o corpo dela fosse um crime).
Outra hipocrisia é condenar mulheres (sempre mulheres) que engravidam sem querer. Ora, 80% da reprodução hétero é sem querer. Pergunte pros seus pais se você foi planejado (não confundir não planejado com indesejado; é possível não planejar e vir a desejar depois). A maioria esmagadora de nós não foi planejada. E, no entanto, continuamos criticando pessoas que engravidam sem planejar, e achando que só quem aborta é menina adolescente. Não é. Só 2,5% das mulheres que abortam ficaram grávidas de uma relação eventual. A brasileira média que aborta tem 25 anos, é casada, católica, e já é mãe (pense em quem você está condenando à prisão ou à pena de morte). Mas a brasileira média que morre de aborto clandestino é pobre e negra. Aquela que não pode pagar por uma clínica com as mínimas condições de higiene.
E aí a jornalista do SBT vem falar que a decisão do Conselho de Medicina pode ser uma tentativa de criar um nicho de mercado! É muita hipocrisia. Nicho de mercado existe agora, que o aborto é ilegal. Quando o aborto for legalizado — e vou me permitir usar o quando, não o se –, as clínicas clandestinas vão fechar. A maior parte das mulheres que quiser abortar o fará pelo SUS.
O fim da hipocrisia tem que passar pelo governo. Em fevereiro do ano passado, peritos da ONU acusaram o governo Dilma de não fazer absolutamente nada para estancar a morte de milhares de brasileiras que realizam aborto clandestino.
Ou seja, a ONU disse que o executivo é responsável por milhares de mortes por ano (fetos não contam, porque as estatísticas têm essa mania de só considerar vida quem já nasceu). E pediu para que o Brasil superasse duas diferenças de opinião para salvar essas vítimas. A perita suíça perguntou: “O que é que vocês vão fazer com esse problema político enorme que têm?” E a resposta da ministra da Secretaria de Políticas para Mulheres foi a mesma que Dilma vem dando desde sua campanha: “Isso é assunto do legislativo”.
Mas não é, não. Não é só que o governo, por ter feito alianças com os setores mais retrógrados da sociedade (a presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias nas mãos do PSC que o diga), fica em cima do muro. Ele se posiciona contra a legalização sempre que tem que romper seu confortável silêncio. Ao sair a decisão do Conselho de Medicina, o ministro da Saúde Alexandre Padilha se manifestou: “O governo federal, desde o começo, disse que não tomaria nenhuma medida no sentido de mudar a lei atual do aborto no Brasil”.
Ou seja, o executivo fará tudo que é possível para frear a descriminalização do aborto. Pois é, só estamos falando da descriminalização; mesmo que o Senado apoie um novo Código Penal em que aborto não seja mais crime — o que já seria um grande avanço –, levaria muito mais tempo até que o aborto fosse legalizado. E por que o governo quer impedir a aprovação de um assunto que é apoiado pelo estatuto do partido do governo, o PT? Pra não desapontar os partidos de sua base aliada. Mas eu não votei no PSC! Se fosse pra ter votado em alguém que é contra a legalização do aborto, eu teria logo votado na Marina (ahn, ok, não teria)!
Portanto, governo, faça como o Conselho de Medicina e posicione-se. Converse com seus aliados sobre este grave problema de saúde pública que temos. Até porque quem é contra o aborto deveria ser a favor da sua legalização. Todos os estudos mostram que mais abortos acontecem em países onde o aborto não é legalizado. Então até quando, Brasil?
Fonte: Escreva Lola Escreva.