Brasil, um país de todos?

estado laico

Por Sally Satler.*

Tenho visto circular no facebook diversos compartilhamentos de pessoas que, usando de má-fé, vêm discursando e repassando textos de conteúdo flagrantemente falso, a fim de buscar apoio popular para a rejeição da proposta de casamento civil igualitário no Brasil. Essa resistência deve-se também à falta de discernimento e conhecimento: os homossexuais não estão exigindo que as igrejas realizem casamentos religiosos; mas que o Brasil regulamente o casamento civil, oficializado nos cartórios.

Infelizmente, muitos sequer conseguem estabelecer diferenças práticas entre religião e garantia de direitos civis. Apenas para citar um exemplo: algumas religiões pregam que o casamento é um sacramento indissolúvel “até que a morte os separe”, mas o Estado assegurou por lei, também a esses mesmos fiéis, o direito de divórcio e partilha de bens. Portanto, não há lógica em impedir o casamento civil, divórcio e partilha de bens de casais homossexuais, pois o objetivo fundamental é assegurar os direitos civis resultantes dessa relação: herança, pensão por morte do cônjuge, partilha de bens, entre outros, justamente porque um Estado laico deve garantir os direitos civis a todos os seus cidadãos, sem distinção.

O casamento civil traz uma série de consequências jurídicas e direitos que hoje não são reconhecidos aos casais homossexuais sem que os mesmos passem por longas batalhas judiciais ou administrativas. Alguns exemplos:

– Mesmo trabalhando e contribuindo para a previdência (INSS) como qualquer cidadão, o homossexual só tem direito a pensão por morte do companheiro se provar cabalmente a relação, mediante documentos e testemunhas, tornando o acesso a esse benefício mais difícil do que uma simples cópia de certidão de casamento.

– Mesmo trabalhando e pagando seus impostos como qualquer cidadão, o homossexual que ficou viúvo poderá ter muitas dificuldades em receber herança do companheiro falecido: se não conseguir provar judicialmente a relação (que pode levar anos!), tudo o que está no nome do parceiro falecido fica com a família deste. E se provar a relação ou se o casal assinou o termo de união estável – o cônjuge sobrevivente só fica com 1/3 dos bens do falecido, enquanto que um casamento civil assegura que o cônjuge fique com 50% dos bens do falecido.

Vocês acham justo um casal ao longo da vida trabalhar, construir um patrimônio e quando um deles falecer a família vir tomar os bens que não ajudou a construir? A partilha de bens numa separação também pode vir a ser um problema: se o casal adquire um veículo – que só pode ficar no nome de uma pessoa, é necessário provar judicialmente que a outra pessoa contribuiu para adquirir aquele bem (no caso de casamento civil sob o regime de comunhão parcial de bens, a lei e o Estado reconhecem diretamente como bem do casal, devendo ser dividido o valor do bem).

gay

Em muitos países e estados o casamento civil igualitário já foi aprovado – Holanda (2001), Bélgica (2003), Massachussets/EUA (2004), Espanha (2005), Canadá (2005), África do Sul (2006), Connecticut/EUA (2008), Noruega (2009), Suécia (2009), Iowa/EUA (2009), Vermont/EUA (2009), Portugal (2010), Cidade do México/DF (2010), Islândia (2010), Argentina (2010), Nova Iorque/EUA (2011), Washington/EUA (2012), Maryland/EUA (2012), Dinamarca (2012), Maine/EUA (2012) e agora na França (2013).

Na Inglaterra – um país monárquico e não laico – a rainha Elisabeth II, no alto dos seus 86 anos, se pronunciou em defesa dos direitos dos gays – e o governo britânico já enviou ao Parlamento um projeto de lei para a legalização do casamento, que já foi aprovado e agora está aguardando a análise e votação na ‘Câmara dos Lordes’. A secretária de cultura daquele país, responsável por questões sobre igualdade, afirmou que a lei vai autorizar a realização de casamentos entre pessoas do mesmo sexo no civil, assim como no religioso, se as religiões optarem por isso: “se um casal deseja mostrar seu amor e comprometimento mútuo, o Estado não deve ficar no seu caminho. Para mim, a extensão do casamento para casais do mesmo sexo vai fortalecer, e não enfraquecer, esta vital instituição”. A lei inglesa também vai assegurar que organizações religiosas ou sacerdotes que se recusarem a casar pessoas do mesmo sexo não poderão ser processados por discriminação.

Assim como a Igreja não pode interferir nos assuntos de Estado e na garantia de direitos a todos, não pode também o Estado interferir nos assuntos da Igreja. É uma questão, sobretudo, de maturidade.

Vergonhosamente, no Brasil – um país que se diz do futuro! – os casais homossexuais ainda ficam sujeitados à aprovação de seus direitos pelo Judiciário – agora retrocedendo ainda mais, por conta da posse de um pastor evangélico fundamentalista na presidência da comissão de direitos humanos da Câmara. Infelizmente, só em alguns estados brasileiros houve a regulamentação do casamento civil homossexual. Em alguns outros, há a mera permissão, sem regulamentação.

Não se pode conceber que um Estado laico e democrático de direito trate a todos os cidadãos igualmente em obrigações e os diferencie em direitos. Não se pode conceber que partidos políticos tratem esse assunto como plataforma política. Mais inadmissível ainda, é ver alguns partidos de esquerda corroborando com o novo tipo de ‘voto cabresto’, negociando e pedindo apoio político de alguns líderes religiosos para conseguir o voto de centenas de milhares de eleitores-ovelhas, como já me disse a historiadora Carla Fernanda da Silva.

Nenhum Estado deveria decidir quem pode ou não pode se casar: qualquer tipo de proibição nesse sentido é uma violência.

* A autora é advogada e procuradora municipal.

Fonte: Esse texto foi publicado originalmente no Portal Blumenews, de Blumenau (www.blumenews.com.br), onde a autora é colunista.

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