Faz alguns anos, em decorrer da catástrofe ocorrida no vale do Itajaí, presenciei uma situação estranha e contraditória em relação à filantropia e o que se refere a sua divulgação, que se fez presente novamente nos últimos dias.
Naquele momento uma pessoa a quem eu até hoje teço minha admiração por sua história de vida, por sua personalidade e educação, pediu que eu fosse ajudar uma amiga com a elaboração de um projeto para recuperação de uma instituição pública, na cidade em que vivia, mas por parte de uma outra organização de pretensões sociais e mantida com fundos privados.
Fui até a casa dessa nova pessoa, num bairro distante do centro e ainda mais distante de onde eu morava, pessoa esta que se mostrou ser igualmente amável e muito prestativa, com reais preocupações com a sociedade e a comunidade em que vive. Permanecemos até a madrugada organizando um “esboço de projeto” com sérios problemas de escrita e argumentações elaboradas por uma entidade pública. E após terminarmos ainda nos restava viajar até o outro lado da cidade para obtermos uma assinatura de responsável pela instituição da qual se destinava o projeto, para em seguida via internet enviar cópia ao destinatário final que se encontrava em São Paulo. Por sorte tínhamos a disposição um motorista a pedido da primeira pessoa que havia me chamado.
Meses depois, quando o projeto já havia findado e mostrava resultados benéficos a sua gente, presenciei o que chamarei de “primeiro beliscão”. Um senhor com envolvimento político declarou; na frente de algumas pessoas, entre elas eu, que havia sido responsável pelo projeto da qual nos referimos, para meu espanto. Afinal não havia nenhuma menção sequer de pessoa física ou jurídica pertencente ao declarante no projeto e tampouco esteve presente na elaboração do mesmo. Mas a “estória” permaneceu no ar, gerou apenas um silêncio e um tremente desconforto, porque as pessoas das quais eu sabia realmente serem responsáveis e determinadas para que as coisas fossem efetivadas não estavam presentes nem foram “homenageadas” por ninguém da comunidade, por que optaram pelo “anonimato” de sua ação social.
Parece que o universo sempre dá um jeito para “resolvermos ou sanarmos” algo que ficou pendente. Há pouco mais de duas semanas numa situação adversa um grupo de amigos recebeu um pedido de ajuda para a compra de uma cadeira de rodas a uma pessoa necessitada, sem condições financeiras para comprar-la. Iniciou-se um processo de busca e chamados por parte de várias pessoas, até encontrarmos uma instituição sem fins lucrativos, também mantidos com dinheiro privado, que aceitou ajudarmos na investida.
Por essa ocasião conheci um empresário do setor automobilístico de Blumenau, que aceitou comprar a cadeira de rodas, ao término da conversa com o mesmo, permanecera eu e mais uma amiga com este senhor, que na nossa frente ligou para cinco outros amigos pedindo a cada um ¼ (25%) do preço da cadeira, todos eles aceitaram. Em cinco dias tínhamos a cadeira e fomos levá-la. Com todas as pompas o senhor fez um discurso lindo, mais em seu nome que da própria instituição da qual tem seu nome vinculado. Ao término das referências, perguntei indignado, por que ele não havia mencionado o nome dos amigos que haviam ajudado na compra e associado à mesma somente ao seu nome, e por que pediu uma quantia maior que a necessária a cinco amigos (afinal a ¼ bastariam apenas quatro deles) e ouvi a seca e operante resposta, o “segundo beliscão”:
“O rapaz tem a cadeira dele, você conseguiu o que queria eu também, estamos todos bem, então não se meta, será melhor para você, certo! Algum problema para você?”.
Um silencio constrangedor, certa tensão no ar foram os resultados do aprendizado real daquilo que se discute na obra “Kant e o pretenso direito de mentir”- UNICAMP/PUCRS. Entre os diálogos do alemão Immanuel Kant e o francês Benjamin Constant, em que o último dizia: “Ora, imagine se, um dia, um assassino o questionasse sobre a presença em sua casa de um amigo que lá tivesse buscado refúgio. É provável que você mentisse.” E, para o filósofo francês, com todo o direito, pois protegeria a vida de seu amigo. O argumento não convenceu Kant, para quem a mentira era inadmissível em qualquer circunstância. Segundo ele, a verdade está na base do direito, que assegura a liberdade de todos os indivíduos. Kant afirmava que a mentira sempre prejudica se não a uma pessoa ou um grupo de pessoas, certamente à humanidade como um todo.
Embora nobre a discussão entre os valores éticos, custa muito mais lidar na prática que na teoria, algumas regras impostas do jogo, hoje e sempre.
E o silêncio trata de se neutralizar, por que responder, não pode: “Algum problema para você?”.