A ex-senadora Marina Silva, ao lançar o partido pelo qual pretende disputar a presidência da República, repetiu letra por letra a mesma declaração feita por Gilberto Kassab ao anunciar o seu próprio ajuntamento partidário. A mesma localização espacial indefinida em relação aos governos: “nem situação, nem oposição”. A mesma ideologia da “desideologização”: “o novo partido não será de esquerda, nem de direita, estamos à frente”.
Diante do declarado, torna-se inevitável a dolorosa constatação: começou mal. E em péssima companhia. O movimento ostentava fumos de novidade e reunia condições para ser diferente do que o discurso de lançamento prenuncia. Foi um balde de água fria, principalmente para aqueles que, em face da degradação do nosso atual sistema partidário, nutriam grandes expectativas no surgimento de algo novo. No reverso do esperado, impossível discordar do humorista José Simão, sempre certeiro em suas súmulas: “o partido da Marina é o PSD que não come carne!”.
É bom lembrar que “esquerda” e “direita” são conceitos usados há mais de dois séculos para designar o contraste entre interesses, valores, ideologias e movimentos em que se divide o universo, sempre conflituoso, do pensamento e das ações políticas. O insuspeito Norberto Bobbio, estudioso sério e oriundo da boa cepa do liberalismo político (“Esquerda e Direita – Razões e significados de uma distinção política”, Ed. UNESP, São Paulo, 1995), define a questão da igualdade e da desigualdade social e natural como sendo a base da permanência secular e o ponto mais radical e recorrente da antítese esquerda/direita. Um vespeiro que costuma ferroar quem nele mete o bedelho.
Segundo Bobbio, “em nome da igualdade natural, o igualitário condena a desigualdade social; em nome da desigualdade natural, o inigualitário condena a igualdade social”. A direita considera a desigualdade entre os homens como fato natural, não eliminável (ou só eliminável com o sufocamento da liberdade) e útil, na medida em que nela radica a incessante luta do indivíduo que resulta no melhoramento da sociedade. A ideia de que a prática continuada de “vícios privados” (concorrência, competitividade, egoísmo) termina por resultar em “virtudes públicas” (crescimento, progresso) é cara aos ideólogos da direita.
É ainda Bobbio quem atualiza a história da contenda. Reconhece que, “em geral, qualquer extensão da esfera pública, por razões igualitárias, na medida em que precisa ser imposta, restringe a liberdade de escolha na esfera privada, que é intrinsecamente não igualitária, pois a liberdade privada dos ricos é muito mais ampla do que a liberdade privada dos pobres”. Esse tipo de “perda de liberdade privada”, claro, atinge mais o rico do que o pobre. A dificuldade do pobre em escolher o meio de transporte, o tipo de escola, o conforto no morar, o bem vestir etc. decorre não de uma imposição pública, mas de uma situação econômica interna à esfera privada.
A questão da desigualdade é a matriz das mil e uma faces adquiridas pela polarização esquerda-direita ao longo do tempo. Uma sequência infinita e inesgotável: identificação com os de baixo, ou com os de cima; com os países da periferia ou os do centro do capitalismo; com os insatisfeitos ou com os conformistas; com a naturalização da pobreza ou com a luta incessante pela justiça; com a universalização dos direitos ou “política focada”; interesse público ou mercado; solidariedade ou competição…
Sempre houve, ao longo dos séculos, gente empenhada em decretar, sem sucesso duradouro, a falência ou desatualização desta tradicional dicotomia. Logo, Gilberto Kassab e Marina Silva não são pioneiros solitários. Pelo contrário. Navegam na crista da onda. A ideia de que a polarização esquerda-direita é uma antiguidade do século passado, quando ainda havia história, está na moda e desfila fulgurante nas passarelas do fundamentalismo de mercado.
Como o existencialismo nos tempos da “chiquita bacana”, a moda agora é outra: o “pós-tudo” e o “neo-nada”. Um tempo de valorização exacerbada da imanência, da “presentificaçao”, da “agoridade”, da propaganda massiva, do espetáculo. Por outro lado, nunca como agora a extrema racionalidade e a eficiência técnica, indiscutíveis no interior das grandes corporações privadas, geraram tantos monstros na vida social. O mercado manda na política e a cultura explode em milhares de fragmentos desconexos.
O condomínio do poder alimenta partidos de contornos indefinidos, costurados para injetar sustentabilidade a um determinado padrão de política. A pequena política, que administra coisas, não questiona o sentido geral da ordem dominante e trabalha a aceitação resignada do existente como natural e imutável. É o casamento da fina flor do “pós-moderno” com a nossa velhíssima tradição autoritária, que só comporta mudanças controladas de cima, dentro da ordem e cozinhadas no fogo brando da “geleia geral brasileira”.
É a panela comum na qual se dissolvem duas figuras tão díspares e vindas de mundos contrapostos, Marina e Kassab, que usaram as mesmas palavras para definir o perfil de seus projetos partidários. Mau sinal. Segue sólida a hegemonia da pequena política e, tudo indica, teremos mais um partido “prêt-à-porter”.
Léo Lince é sociólogo.
Fonte: Correio da Cidadania