Insegurança – Entrevista ao Deputado Estadual-SC, Amauri Soares

Por Raul Fitipaldi, para Desacato.info.

Os fatos de violência que assolam o Estado de Santa Catarina, sul do Brasil, e o comportamento das autoridades do Governo local, atraíram os olhares bem além das fronteiras desta unidade da Federação. O Sargento Amauri Soares, fundador da Aprasc e Deputado Estadual na Assembleia Legislativa Catarinense, responde as perguntas formuladas pelo Portal Desacato.

 

Desacato- Deputado, a transferência de detentos de Santa Catarina a outros presídios federais é um paliativo, uma fugida adiante, na ausência de um projeto concreto de contenção da violência dentro do nosso Estado?

Deputado Estadual Amauri Soares – Sim, transferir presos para outros estados é um paliativo, o que também poderia ser chamado de fuga adiante, conforme a pergunta. Poderíamos chamar também de medida de desespero de um estado que agora está acossado pelas mazelas sociais que criou ao longo das décadas e dos séculos. Ao mesmo tempo, é preciso que se diga, é também uma necessidade. Mostra a fragilidade do sistema de segurança pública de Santa Catarina. No entanto, é também a forma de mostrar algum poder maior do estado, uma forma de amedrontá-los (aos chamados “marginais”), de criar transtornos em suas vidas, para que deixem de considerar fácil e sem efeitos colaterais as medidas de violência que estão gerando. Diante da situação, me parece que pode ser sim uma medida com algum resultado prático quanto aos objetivos do estado que deve ser fazer parar os ataques. Por outro lado, é muito correto afirmar que isso ocorre pela “ausência de um projeto concreto de contenção da violência” que tenha sido criado e mantido pelo estado anteriormente.

 Claro que tudo isso é já consequência da política de estado mínimo que vem sendo instituída no Brasil inteiro há mais de 20 anos. Não se investiu em prevenção, que seria um serviço público e universal minimamente razoável em educação, saúde, assistência social, assistência técnica a pequenos produtores rurais, a pequenas iniciativas comerciais e mesmo industriais. O Estado, em seu sentido latu, tem mergulhado cada vez mais em ser um estado das classes dominantes, especialmente dos monopólios privados, nos setores comercial, industrial, no agronegócio e no sistema financeiro. Estes setores monopolistas estão a cada dia mais imbricados, formando o fenômeno do imperialismo, que Lênin já analisava no final do século XIX, há bem mais de cem anos.

D – Quando lemos as medidas tomadas em combinação entre a Federação e o Estado, não observamos nenhuma proposta sobre o sistema penitenciário. Ele está falido nacional e estadualmente?

 A.S. – Não obstante toda a fraseologia de um punhado de defensores da sociedade atual, o sistema prisional tem sido, no Brasil, e creio que em todo o mundo capitalista, um amontoado de presos. É parte da segregação social que antes do capitalismo fazia-se de outra forma, inclusive pelo convencimento. Uma sociedade baseada e estruturada com o objetivo do lucro privado, na qual o dinheiro ganha status de deus maior, não tem como segurar a ânsia por alcançá-lo a não ser com grades de ferro e com concreto armado para aqueles que buscam alcançá-lo pelas formas consideradas ilegítimas, ou seja, roubando, falsificando ou vendendo produtos considerados ilícitos.

Todo o discurso de ressocialização, da reinserção na sociedade, de reeducação dos apenados não passa de bálsamo para permitir que durmam tranquilos todos os defensores deste tipo de sociedade. Ou seja, pensam a forma de organização social da sociedade atual é a melhor possível, mas, como tem “alguns probleminhas”, precisam encontrar os remédios para eles, também dentro da mesma lógica.

Presídios e penitenciárias não passam de um amontoado de seres humanos segregados da sociedade, que têm para mantê-los “em ordem” outro punhado de pobres, que recebem salários insuficientes e capacitação inferior ao mínimo necessário. A sociedade oficial, não só os governos e todos os aparatos de estado, mas também a parcela mais ou menos abastada da sociedade, incluindo o que se chama vulgarmente de classe média, sempre buscou esconder os presídios e penitenciárias atrás de algum morro, um lugar ermo, distante dos centros urbanos.

 Agora constroem presídios e penitenciárias em São Pedro de Alcântara, Imaruí, assim como na década de 1930 construíram na Trindade, que era um lugar ermo, atrás de um morro com relação ao centro da cidade. Querem esconder. Faz mais de 20 anos que falam em tirar a Penitenciária da Trindade, desativá-la, e ainda não o fizeram por incapacidade do estado nessa área. O objetivo seria colocar aquele hoje valorizado terreno no rol dos interesses da especulação imobiliária, e, também, esconder a mazela que aparece ali para quase todos os visitantes da capital turística catarinense. Aquele complexo penitenciário ofende o sentimento de orgulho do que tenho chamado de sociedade oficial. Não tem como ir por terra para as badaladas praias do Norte e do Leste da Ilha sem dar de cara com aquele monstrengo de pedras. Um monte de janelinhas guardando seres humanos. Querem esconder, e somam-se diversos setores a isso, inclusive os setores mais intelectualizados da chamada classe média. Todo o pretensamente suntuoso charme desta Ilha vai por água abaixo quando nosso visitante pergunta o que é aquilo, perto de duas universidades, do Centro Integrado de Cultura, da charmosa Trindade e da arrogante Beira Mar.

 A.S. – A falência do sistema penitenciário não é uma novidade. Agora aparece mais porque os problemas sociais se agravaram, como já dizíamos há mais de vinte anos que ocorreria. Tem um pouco de boa vontade e muito de hipocrisia no discurso dos governos, sem falar daquilo que é cinismo puro e simples. Mas é bom não esquecer: uma parcela importante da sociedade concorda com isso, e até mesmo defende políticas mais duras, mais refratárias como forma de silenciar e, se possível, esconder que existem as mazelas.

D- O senhor tem conhecimento de quanto gasta o Estado em Prevenção de Delitos, em infraestrutura tal como veículos, delegacias e estabelecimentos militares; em folha de pagamento de agentes policiais, militares e civis e na infraestrutura prisional (incluindo nisto a reeducação social do detento/a)? 

 A.S. – Sobre os gastos com segurança, num comparativo relativo ao ano de 2011, entre educação, saúde, segurança e assistência social, temos, segundo dados do próprio Tribunal de Contas do Estado (TCE): educação – R$ 2,49 bilhões; segurança – R$ 1,69 bilhão; saúde – R$ 1,34 bilhão; assistência social – R$ 74,6 milhões. Já com propaganda, no mesmo ano, o governo de Santa Catarina gastou R$ 79 milhões, mais do que gastou com assistência social.

Claro que estes dados não dizem muita coisa, até porque, mais do que gastar, é preciso ver a forma como gastou. Mas podemos afirmar, sem medo de errar, que os diversos governos, em todos os níveis, têm gasto cada vez menos com os serviços essenciais, e cada vez mais com os aparatos de cúpula do Estado, em todos os poderes e órgãos públicos. Além disso, a política de subordinação aos monopólios faz com que o Estado deixe de arrecadar dos mais poderosos, empobrecendo os serviços para a maioria pobre da sociedade. O Brasil tem sido cada vez mais uma República das empreiteiras, dos bancos e do agronegócio.

Prevenção em segurança pública não está nesta área, e sim na educação, na saúde, na assistência social, na assistência técnica, no enfrentamento aos interesses dos monopólios. Investir em segurança pública, quase sempre já não é prevenção, e sim repressão, ou, no mínimo, contenção. O que chamam de prevenção em segurança pública é já contenção, ou seja, o problema social existe, pode explodir a qualquer momento, então temos que colocar bastante ostensividade policial nas ruas para conter, para amedrontar.

Mas, registre-se, os sucessivos governos de Santa Catarina não têm feito sequer a contenção, quanto mais a prevenção. E tem perdido até mesmo as condições estruturais para fazer a própria repressão. Estamos desde que criamos a APRASC, em 2001, denunciando que a situação só vai piorar. Ao invés de nos ouvirem, nos processam, nos prendem, nos humilham, por estarmos, segundo eles, criticando “autoridade superior”.

D – Quanto investe o Estado em educação, saúde, empregos por concurso e subsídios ao transporte público, e que significa em comparação com a despesa dirigida ao aparato militar?

A.S. – Naquilo que me era possível com os dados que tinha em mãos, informei  na resposta anterior sobre os gastos com alguns serviços essenciais. Em transporte público, o governo não investe nada. E, se investir, vai ser para ajudar a enriquecer um punhado de empresas privadas, todas elas com relações de compadrio com os detentores dos poderes municipais, estaduais e federais. É preciso que os estados, a União, os municípios e as regiões metropolitanas criem empresas públicas de transporte coletivo, mas isso tem sido ofensivo aos ouvidos dos governantes, que têm em seu aplauso toda a grande mídia monopolista e, evidentemente, as empresas privadas de transporte.

 

D – Há servidores das polícias militares e civis trabalhando no sistema de segurança privado? Se há, o senhor entende isto como correto, ou é fruto de a ausência de uma compensação salarial adequada para as categorias?

A.S. – Sim, há muitos policiais que trabalham em empresas privadas de segurança. E há vários policiais também, especialmente aposentados, que são donos ou sócios de empresas privadas de segurança, neste caso, quase sempre, aqueles de mais alto salário e posto. Eles aprendem financiados pelo dinheiro público, fazem viagens de estudo remuneradas pelo poder público etc. Em seguida se aposentam e montam empresas e assessorias em segurança privada.

Registre-se, também, que, de forma individual, nas horas de folga, muitos policiais trabalham em segurança de estabelecimentos privados, como postos de gasolina, transporte de valores, supermercados, bares, restaurantes etc. Não tem como evitar, pois o salário é baixo e os donos destes estabelecimentos têm preferência por policiais de folga. Eles têm experiência, e, especialmente, mesmo de folga, são policiais, tendo mais facilidade na hora de mobilizar o serviço público de segurança.

D – Quantas empresas de segurança privada existem no Estado, quanto lucram anualmente e que significam em matéria de aporte impositivo e de postos de trabalho?

 A.S. – Em Santa Catarina, existem 98 empresas de segurança privada, em um universo de 388 da Região Sul e de 2.065 do Brasil. Como os dados são do sindicato das empresas, apenas daquelas registradas, por certo há muito mais, e a maioria delas informais. Há quatro anos a Polícia Federal informava que existiam 57 mil vigilantes privados em Santa Catarina, ou seja, um número quase quatro vezes maior à totalidade dos servidores públicos de segurança. Por estes dados, podemos afirmar, sem medo de errar, que a totalidade destas empresas gira um montante muito maior de recursos gastos pelo Estado em segurança pública, que, como dito acima, foi R$ 1,69 bilhão em 2011. Uma esfera bastante lucrativa para seus empreendedores. Os trabalhadores, claro, os chamados vigilantes, estes recebem um salário baixíssimo. Já os donos das empresas maiores, especialmente as que têm negócios com os governos (de todos os níveis), enriquecem explorando a falta de segurança. Também mora aí um dos motivos pelos quais o Estado investe pouco, pois se houvesse paz social, este setor não daria lucro para ninguém, o mesmo que vale para saúde e educação.

D – Na atual situação de instabilidade social que vive o Estado de Santa Catarina, com mais de 100 casos de violência em 15 dias, todos perdemos, o alguém ganha?

 A.S. – Eu sou da tese de que ninguém ganha, a não ser a barbárie. Claro que a gritaria da sociedade oficial do momento é porque os empresários estão tendo prejuízo. E não apenas os donos dos ônibus, os empresários do transporte coletivo. Todos os patrões perdem porque os operários, os comerciários, enfim, os trabalhadores, não conseguem mais chegar cedo ao posto de trabalho, e têm que sair mais cedo, e isso afeta a busca alucinada de burguesia pela mais valia.

Se houvesse alguma busca pela apresentação de uma proposta civilizatória, até mesmo os ataques que estão sendo feitos seriam uma forma de crítica construtiva. Tem, evidente, um claro teor de crítica nestes atos, mas não é uma crítica que proponha uma forma mais humana de sociedade. Acho que até pelo contrário: a intenção é ganhar mais espaço para o lucro, neste caso considerado ilegal. Ilegítimo, com certeza, porque a maioria da população fica apenas como refém, assustada, e cada vez mais tendente a sofrer a opressão dos “donos dos morros” sem manifestar sua vontade de ser livre de qualquer opressão.

D – Como se resolve a médio e longo prazo o problema penitenciário e a violência que assola o Estado?

 A.S. – Em curto prazo, não tem outra saída que não o fortalecimento do combate e da contenção. Em médio prazo, fortalecer os serviços públicos essenciais e colocar calços aos anseios desvairados dos monopólios privados, e isso só pode ser feito por outra natureza de governo, ou mesmo de Estado. Em longo prazo, só o socialismo pode ser a resposta. Enquanto houver capitalismo a saúde efetiva das pessoas não vai ser prioridade.

 Se o comércio de drogas degradantes das boas condições físicas e psíquicas for mais uma forma de alguém ganhar dinheiro explorando os outros, essa chaga só vai aumentar. É preciso combater qualquer forma de lucro para que se consiga acabar com a deterioração das relações humanas pelo comércio de drogas ilícitas. Ou seja, no capitalismo não tem nada de bonito e efetivamente humano que se possa fazer, a não ser continuar apagando incêndio. Ou ainda, continuar gastando com o fortalecimento da violência do Estado contra a violência da barbárie.

Claro que soluções menos bárbaras, mais humanas, podem ser encontradas mesmo na sociedade atual. Mas elas serão sempre meramente transitórias e paliativas.

 

D – Por favor, suas considerações finais e obrigado pelas respostas.

 A.S. – Nossa tarefa incontornável é buscar reorganizar o que resta de esquerda para que consigamos voltar a ter condições de apresentar uma proposta civilizatória nova, efetivamente nova. Para a barbárie atual contribui bastante também a descrença das novas e mesmo das velhas gerações com os partidos e com os governos que prometiam os céus e nos aprofundaram ainda de forma mais dócil no inferno capitalista.             Reorganizar a esquerda, e apresentar uma proposta global de alternativa ao capitalismo, o que continua sendo o socialismo, como processo de ruptura e de posterior aniquilamento da lógica desumana do lucro.

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