Leia a quarta parte da entrevista de Salim Lamrani.
Opera Mundi: O Cenesex trabalha muito também com a problemática transexual.
MCE: A situação das pessoas transexuais é difícil não apenas em Cuba, mas no resto do mundo. É preciso aceitar como uma realidade a identidade de gênero que não é feminina nem masculina, como é o caso da transexualidade. Convém aceitar a ideia de que existem pessoas que podem mudar de identidade de gênero, que estão em conflito com sua identidade de gênero, e que podem dispor dos mesmos direitos que todos. Não deve ser um motivo para privá-las de seus direitos e discriminá-las.
Também propusemos trabalhar sobre uma linguagem de gênero com o Partido Comunista, pois cabe a ele situar-se na vanguarda da sociedade e apresentar as ideias mais avançadas e mais emancipadoras. É o que esperamos e exigimos como militantes deste. À medida que o partido desenvolver essa política, o Estado terá que seguir e tomar as medidas necessárias, adotando leis.
OM: Quantas pessoas foram beneficiadas pela lei que permite que transexuais mudem de sexo, com um financiamento total da operação pelo seguro social? Como se desenvolve esse processo?
MCE: Se minha memória não falha, foram realizadas 15 operações de mudança de sexo em Cuba. A primeira em 1988, ou seja, há mais de um quarto de século. Logo, a partir de 2007, o Ministério da Saúde voltou a implementar esse procedimento. Existe uma Comissão Nacional de Atenção Integral a transexuais desde 1970. Recebemos cerca de 200 petições desde essa data e a cifra vai aumentar à medida que os meios de comunicação nacionais divulgarem a existência desse serviço.
As pessoas passam por um processo de acompanhamento de dois anos e os especialistas as acompanham e proporcionam tratamento hormonal personalizado, que permite a transição para o gênero com o qual se identificam. Após esse processo, a comissão analisa os diferentes casos e valida quem é apto para a operação e autoriza a mudança legal de identidade.
A operação responde a um procedimento científico aprovado em nível internacional e não a um simples capricho de ordem estética. É fundamental para o bem-estar das pessoas transexuais e permite aliviar a angústia permanente que essas pessoas sofrem desde sua primeira infância, por conta dos preconceitos, da incompreensão e da discriminação das quais são vítimas.
OM: Existe uma verdadeira política de luta contra todo tipo de discriminação em Cuba?
MCE: Hoje em dia, sim. Existe um consenso na sociedade cubana na consideração de que a homofobia e a “transfobia” são formas de discriminação incoerentes com o projeto emancipador da Revolução. Optamos por uma estratégia educativa e comunicacional, pois se trata de um processo de transformação cultural profundo. É imperativo adotar elementos de análise para eliminar os preconceitos que se estabeleceram historicamente para dominar as pessoas, sua sexualidade e seu corpo. A mudança de consciência social é um processo muito grande e complexo, mas imprescindível.
OM: Uma palavra sobre a prostituição em Cuba. O auge do turismo desde os anos 1990 está na origem de um fenômeno que quase havia desaparecido da sociedade cubana. Qual é a situação hoje em dia?
MCE: A prostituição é uma forma de exploração da mulher e também do homem, pois é uma relação que se baseia no poder, neste caso, do dinheiro. Como dizia o poeta espanhol Francisco Quevedo, o poder do dinheiro é imenso. A pessoa que dispõe de recursos tem a possibilidade de adquirir certo número de coisas, incluindo o sexo, e ele é humilhante para a pessoa que é vítima. A compra de um serviço sexual é degradante para a condição humana, pois é uma subordinação do outro, um rebaixamento do próximo. É uma forma de escravidão desprovida de qualquer componente democrático na relação sexual. Transforma o ser humano em mercadoria e, por conseguinte, o priva de seus direitos. A prostituição se baseia no sistema de exploração patriarcal e classista.
Raciocino a partir do princípio de que toda pessoa é livre para usar seu corpo. No entanto, falei com muitas prostitutas em todo o mundo e é possível assegurar que nenhuma delas realiza essa atividade por prazer, mas por necessidade. Não há uma escolha na prostituição, mas uma imposição, seja de uma pessoa ou da sociedade. Por isso, sou contra a prostituição e não desejo que essa atividade seja reconhecida como um trabalho como as demais. Os Estados devem garantir aos cidadãos opções de trabalho que lhes permitam alcançar a dignidade plena e duradoura, como disse nosso herói nacional José Martí.
OM: Você é a favor de políticas que penalizam os clientes?
MCE: Sou muito favorável e acho que as medidas adotadas pela Suécia deveriam ser generalizadas para o mundo todo. É o cliente que está na origem da demanda e faz com que se explorem outros seres humanos e os convertam em mercadorias. É ele que estabelece o abuso de poder com sua capacidade financeira.
OM: E no caso de Cuba?
MCE: Uma perspectiva histórica é necessária. Em 1959, a Federação de Mulheres Cubanas se dedicou ao problema da prostituição, que afetava principalmente mulheres pobres provenientes de minorias étnicas. Havia mais de 100 mil prostitutas naquela época e viviam em condições humilhantes e precárias. A Revolução mudou suas vidas e permitiu que voltassem a encontrar a dignidade, e as libertou da exploração. O esforço do processo revolucionário para erradicar o fenômeno da prostituição é verdadeiramente uma fonte de orgulho nacional, pois foi um grande êxito. As mulheres constituem hoje a principal força técnica do país.
Agora, é verdade que a crise dos anos 1990, o “Período Especial”, ocasionou um ressurgimento desse fenômeno social, com novas características, já que a prostituição é vinculada ao turismo internacional, com a presença de clientes que pagam para obter serviços sexuais. Creio que as políticas atuais destinadas lutar contra esse fenômeno não são suficientes. Seria preciso realizar um trabalho qualitativo muito mais profundo para dispor das ferramentas e das pistas necessárias para fazer frente à problemática da prostituição. É necessário penalizar o cliente, já que essa política demonstrou sua eficiência na Suécia.
OM: Em que fase se encontra o projeto de lei destinado a permitir a união dos casais homossexuais?
MCE: Os especialistas do Ministério da Justiça e da União Nacional de Juristas de Cuba analisaram o projeto de lei destinado a modificar o Código da Família. Ele será logo debatido no Parlamento. Espero que nossos deputados adotem uma política de não discriminação no que se refere à orientação sexual e à identidade de gênero e contribuam de fato para por fim aos preconceitos na sociedade. O Parlamento tem o dever de reconhecer e proteger os direitos de todos os nossos cidadãos.
A sociedade cubana está pronta para aceitar o casamento homossexual. Cabe a nossos políticos colocarem-se à altura do povo. Em Caibarién, no centro da ilha, José Agustín Hernández, apelidado de Adela, é um enfermeiro transexual de 48 anos e foi eleito delegado da Assembleia Municipal. É a primeira vez na história do país e isso demonstra que nosso povo está pronto. Mas você poderia citar muitos países nos quais foram eleitas pessoas transexuais? Por acaso, há pessoas assim na França, Estados Unidos ou Brasil? Não temos certeza disso.
OM: Como você passou a defender o direito à diversidade sexual?
MCE: O papel de minha mãe foi fundamental. Ela sempre rechaçou todas as formas de injustiça. Desde cedo, ela se opôs às Umap e ao Quinquênio Cinza. Era uma mulher do futuro. Quando o Código da Família foi elaborado em meados dos anos 1970, foi proposto que se definisse o casamento como a “união de duas pessoas”. Não se queria especificar o sexo, já que se tinha em mente a problemática do casamento homossexual e que os direitos conquistados com o Triunfo da Revolução Cubana em 1950 deveriam ser os mesmos para todos, sem distinção alguma de raça, gênero, classe ou orientação sexual.
OM: E seu pai?
MCE: Meu pai não compartilhava da homofobia que reinava naquela época, já que minha mãe o sensibilizou sobre essa realidade. Cresceu em uma sociedade patriarcal e homofóbica, mas conseguiu se liberar de seus preconceitos graças à ela. Mas não é isso o que ocorre à sua volta, onde lamentavelmente há muitas pessoas homofóbicas. Mas não perdemos a esperança.
OM: Alguns se espantam pelo fato de uma mulher heterossexual como você, casada, com filhos, defender o direito à diversidade sexual.
MCE: Por acaso é preciso fazer parte de uma minoria ética para combater o racismo? Por acaso é preciso ser uma mulher para defender as mulheres? Por acaso é preciso ser deficiente para defender os direitos dos deficientes? Por acaso é preciso ser um trabalhador para defender os direitos da classe trabalhadora? Por acaso é preciso ser um trabalhador rural para defender os direitos dos sem terra? José Martí era um grande intelectual e sempre defendeu a causa do povo. Marx também. A luta pela igualdade e contra todas as injustiças é um dever universal que deve implicar a todos os cidadãos.
Foto: Wikipedia
Fonte: Ópera Mundi
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