Por Urda Alice Klueger.
(Texto do livro “Meu cachorro Atahualpa, publicado em 2010)
No calorão de fevereiro, era tempo de se fazer alguma coisa, e voltamos para o apartamento abandonado em novembro, que ainda mantinha sobre a mesa as sobras de um café da manhã interrompido quando fugíramos de lá, amedrontados pela possibilidade de uma casa enorme que poderia vir a cair de grande altura contra o prédio onde vivíamos. Para quem tiver curiosidade de saber o que se passou lá onde morávamos antes, sugiro que abram o www.youtube.com.br e coloquem lá, entre aspas, ”rua hermann huscher”. Há uma série de filmes que mostram um pouco da tragédia que vivemos em novembro.
Lembro como abraçava meu cachorro para subir no elevador, para levá-lo para dentro, para encorajá-lo a entrar naquele lugar que agora ele temia, como eu também temia. Rose, minha amiga, veio lá e fez uma bela faxina, e a idéia era de que a vida continuasse, voltasse a ser como era antes, mas nada mais era como antes.
Eu comprara aquele apartamento pensando morar ali o resto dos meus dias, tanto aquele lugar havia me agradado, tão bonito tinha sido – e toda aquela beleza se acabara. As muitas mansões que haviam despencado do morro fronteiriço e esmagado as casas abaixo tinham deixado profundas feridas na terra; outros deslizamentos houvera, de árvores, pedras e terra, trazendo abaixo muitas toneladas de barreiras que nos tinham mantidos prisioneiros por dias que tinham parecido pesadelos; a calha do rio que passava atrás do prédio onde vivêramos tinha sido alargada umas cinco vezes pelas enxurradas daqueles dias de horror; os pradinhos verdes de florinhas amarelas onde antes pastavam pacíficas capivaras e onde Atahualpa gostava de brincar tinham sumido sob as avalanchas ou por rebaixamento das margens do rio; muitos vizinhos tinham ido embora enquanto eu estivera fora e tantos outros tinham vindo morar ali, e então havia muitos desconhecidos, inclusive os próprios empregados do condomínio eram outros. Um síndico que já não batia muito bem no passado agora aterrorizava a quantos podia, e tudo parecia fora do lugar. Como outros, eu mantinha as cortinas fechadas para não ver toda aquela desgraça lá fora, mas por todo o tempo tinha muito presente a existência da tal casa lá no morro, escondida entre árvores, mas que poderia vir abaixo e bater com toda a força no prédio onde vivia.
Como tanta outra gente na cidade e na região, no entanto, eu retornava à área de risco, de sujeira e de feiúra onde um dia já fora tão feliz[1][1]. Alguns vizinhos me contaram que estavam tomando remédio para conseguir dormir – ao menor sinal de chuva eu fugia da parte da frente do apartamento, temendo que a tal casa viesse abaixo trazendo todo um pedaço de mata com ela – era uma vida desagradabilíssima.
O pior, porem, ainda não tinha acontecido: diante do meu prédio havia um gramadinho em declive, que fora onde eu ensinara o meu bichinho, quando bem filhote, a subir e a descer morro. Tal lugar já estava de novo limpo e com a grama aparada, quase três meses depois da Tragédia, e numa das manhãs, quando saí com Atahualpa do portão do condomínio e ele enveredou por aquele gramadinho, uma cobra venenosa pulou nele!
Decerto a cobra ia passando e ele quase que pisou nela – os animais silvestres estavam tão desterritorializados quanto os humanos, naquela tragédia toda, e decerto aquela cobra, agora, morava por ali. Eu gritei tanto, mas tanto, assim: “Atahualpa, não, NÃO, NÃÃÃÃÃO!!!!!”, que Atahualpa, que nunca me vira gritar, ficou tão surpreso que parou, estático, e não avançou na cobra, o que lhe salvou a vida. Corri chorando para pegá-lo no colo, e então se acabaram nossos passeios naquela região.
Três vezes por dia, agora, eu botava Atahualpa dentro do carro e íamos caminhar por outros lugares, como a região da Alameda Rio Branco com suas transversais durante o dia, e a Rua XV de Novembro quando era noite. Assim, naqueles meses que se seguiram, voltei a andar por muitas e muitas ruas por onde não passava há décadas, e fui descobrindo, mesmo naquelas áreas que pareciam nada terem sofrido com as águas, as marcas da Tragédia: lindas mansões caídas sobre outras nas beiradas dos morros, e coisas assim. Quando íamos mais longe e víamos a situação de determinados lugares e bairros que haviam perdido suas pontes e tantas outras coisas, além dos desmoronamentos, tentava pensar que estávamos em situação invejável por ainda termos o nosso apartamento, apesar da cobra venenosa pulando no meu bichinho em pleno gramadinho aparado e no medo a cada três pingos de chuva de que aquela casa fronteiriça viesse abaixo.
Foram tempos muito difíceis, e não sei como teria feito para sobreviver sem o meu bichinho. Atahualpa sempre foi um cachorro muito bonzinho, e nessa altura, mais ou menos atingindo a idade adulta, estava ainda mais querido do que eu podia me lembrar. Parecia que ele sabia o quanto eu estava cheia de angústia e de insegurança e do quanto precisava do apoio dele, e estava sempre do meu lado, quase como quem diz:
– Vês? Nunca irei te abandonar. Não chora. Sou teu bichinho, estou aqui contigo!
E então eu o acarinhava e fazia camas bem fofas para ele, e cozinhava os bifes de fígado dos quais ele gostava tanto, e lhe fazia as papinhas de bolo inglês com leite, das quais ele gosta até hoje, e corria pela casa todas as noites puxando um pano velho atrás de mim, para que ele também corresse, pois ele se divertia muito atacando e mordendo o pano, roncando para o mesmo como se estivesse numa caçada a animais selvagens, ou como se estivesse defendendo a própria vida. Eventualmente, ele errava a mordida no pano e mordia a minha mão mas, apesar da grande serra de dentes que lhe nascera boca afora depois que perdera os dentinhos de leite, serra essa que poderia cortar fora a minha mão, sua mordida era leve e cuidadosa, e só muito dificilmente acontecia um acidente e um dente mordia um pouco mais e me arranhava. Atahualpa era meu companheiro e meu amigo, e naqueles frios meses que se seguiram, sua cama foi crescendo: muitas coisas do meu armário iam passando para a cama dele, e assim foram indo para sua caminha meus melhores travesseiros de penas, minhas mantas andinas, meus edredons e cobertores. A cama dele estava sempre pronta, ou diante da televisão, ou no chão, ao lado do computador, ou no quarto, ao lado da minha cama, e me fascinava ver como ele me permitia trocar sua cama de lugar: eu tinha colocado, tempos antes, lindo piso de madeira em todo o nosso apartamento, e Atahualpa ficava deitadinho na sua cama enquanto eu a puxava para lá e para cá, arrastando-a sobre o piso bonito.
Na nossa volta para casa ele passara a dormir no meu quarto, mas nunca quisera dormir na minha cama, como até hoje ainda não gosta muito. Sua caminha (melhor dizendo: camona) ficava ao lado da minha, e eu dormia com um braço para fora da minha própria cama, fazendo carinho no pelinho macio do meu bichinho.
Acostumei-me a não me preocupar com o acordar-me: pela manhã, na hora em que sentia necessidade, Atahualpa subia na minha cama e me fazia festa e latia até eu me levantar para atendê-lo. Nessa altura, fazia muuuuuuuuuuito tempo que ele absolutamente não mais fazia xixi ou cocô dentro de casa, como até hoje não faz. Então, pelas manhãs, era aquela correria: botar uma roupa, escovar os dentes, e sair correndo com meu cachorro no colo, colocá-lo no carro e dirigir até uma rua onde provavelmente não houvesse cobras venenosas, para que ele pudesse se aliviar, pois quando ele se acordava, na maioria das vezes, já o fazia gemendo de pressa.
Apesar das alegrias que o meu cachorrinho me dava, nada estava sendo nada fácil viver de novo naquele lugar, durante aqueles meses. Permanecia angustiada e temerosa, e as poucas coisas que escrevi naquele período são coisas tristes e angustiantes, refletindo bem meu estado de alma. Diria que a melhor coisa no meu mundo, naquela altura, era nada mais nada menos que o meu cachorrinho Atahualpa.
Somando-se às demais angústias, havia uma outra que estava mexendo demais comigo: minha mãe, enferma, vivia seus últimos tempos, últimas semanas, e minha vida parecia estar como que dentro de um caos.
“Eu me dei conta de que cada vez que um dos meus cachorros parte, ele leva um pedaço do meu coração com ele. Cada vez que um cachorro novo entra na minha vida, ele me abençoa com um pedaço de seu coração. Se eu viver uma vida bem longa, com sorte, todas as partes do meu coração serão de cachorro, então eu me tornarei tão generoso e cheio de amor como eles.” (Autor desconhecido)
[1] Em dezembro/2008, quando fizera meu cadastro de flagelada, a moça que me atendera fora bem convincente quando me dissera que ali era área de risco, que não deveria voltar: o marido dela trabalhava numa casa minha vizinha, e ela sabia bem do lugar ao qual me referia. Também o engenheiro civil Arlon Tonolli me havia advertido para não voltar – naquela rua era perigoso até de se passar. Antes de voltar tentara saber junto a Prefeitura Municipal se o perigo já passara, mas não conseguira saber mais nenhuma informação a respeito, numa atitude de absoluto descaso para a com a população flagelada.