Parece certo que nosso povo iraquiano chegou afinal ao resultado lógico. Einstein ensinava que não há resultados novos, se as causas se repetem.
Durante os dez anos de ocupação norte-americana e dos governos que impuseram ao Iraque, falseou-se a vontade de um povo submetido à mais repugnante lavagem cerebral e de consciência, para tentar que aceitasse o que lhe era imposto em eleições locais e parlamentares e no referendo de uma Constituição-bomba; que aceitasse uma representação sectária, étnica e doutrinária sobre a qual se erigiram as instituições do Estado e da sociedade.
Apesar do que tenha sempre havido de temerário nesse projeto, para o destino da nação e o futuro dos iraquianos, o povo do Iraque esperava chegar a algum resultado que o arrancasse do desespero e afinal visse alguma luz no fim do túnel no qual se via metido, depois que irmãos e amigos o traíram, separaram-se dele e o converteram em botim a ser extraído, de qualquer plano que se armasse contra o Iraque.
Se se tivesse aproveitado melhor todo esse tempo, seria possível melhorar a situação, mas no Iraque só a miséria, a analfabetismo e a fome aumentaram nos dez anos de ocupação norte-americana, apesar dos ganhos cada vez maiores para alguns, e de orçamentos astronômicos, graças ao aumento do preço do petróleo exportado.
O pobre vê-se cada dia mais pobre, o rico, cada dia mais rico. Essa é a regra da vida diária em todo o Iraque, desde que o poder foi arrancado do povo por quem se diz representante de seitas, nacionalidades e religiões, porque os recursos do país estão sendo monopolizados pelos que nos arrancaram o poder, seus sócios, seus acólitos, os parentes deles. Vivem de adaptar as leis para que atendam aos interesses deles e para vencer fraudulentamente licitações e concorrências e contratos com o Estado, nos quais se leiloa o patrimônio público. E ainda roubam o dinheiro destinado àqueles projetos. E criaram grandes empórios comerciais, empresariais ou de representação de empresas árabes ou estrangeiras.
Tudo isso acontece porque não há nenhum tipo de controle parlamentar – e o Parlamento deveria ser o verdadeiro representante do povo; ou porque a Justiça é omissa e nada faz. Os pactos de silêncio perpetuam a corrupção, cuja única vítima, material e moral, é o cidadão iraquiano.
O desprezo contra os iraquianos e a especulação contra nosso povo chegaram a níveis indescritíveis. Já cancelaram a Carteira de Abastecimento, que permitia que o cidadão tivesse acesso a alguns alimentos básicos. A justificativa que o governo apresentou para o cancelamento, foi que o cancelamento seria indispensável para impedir que continuasse a corrupção dos que fazem a gestão dos contratos de compra de alimentos no atacado. Quer dizer: em vez de castigar os culpados, castiga-se o cidadão, que acaba privado do próprio pão.
Dada a destruição do Estado, a ausência de qualquer sistema judiciário e a absoluta falta de coordenação entre os atuais governantes, sempre em luta entre eles, porque os diferentes grupos representam interesses regionais e internacionais, surgiram no Iraque novas autoridades e dirigentes religiosos e tribais. E, aproveitando-se da falta absoluta de qualquer segurança e porque os cidadãos veem-se obrigados a proteger, cada um, a sua propriedade, milícias armadas controlam as ruas e os bairros e, esgrimindo essa falta absoluta de segurança pública, chantageiam os cidadãos para que votem neles e os elejam; e assim, vão-se instalando no poder.
Alguns dirigentes tribais, uma vez instalados no poder, convertem-se em braços executores dos governantes, glorificando o governo, tanto quanto desfrutando das dádivas que recebem em paga pelos seus ‘serviços’. Também já surgem dirigentes religiosos que se aliaram ao poder, para glorificar valores religiosos, aparecendo frente às câmeras de televisão como mais interesse aos governantes, quando não estão assassinando crentes de outras seitas, ou violando mulheres prisioneiras deles. Esses dirigentes, que integram as comissões de investigação, existem não para investigar, mas para ocultar os crimes de guerra uns dos outros e conceder indultos a criminosos conhecidos. O cidadão, assim, está completamente desprotegido.
Nessa situação, resta ao povo enfrentar de peito aberto toda a vergonha, a humilhação, a morte, os êxodos, as violações, apoiando-se nas verdadeiras forças da nação, nos símbolos religiosos e tribais honrados – que em momento algum deram trégua nem às forças norte-americanas de ocupação, nem aos governos que impuseram ao Iraque, os mesmos símbolos religiosos e tribais honrados que fizeram de servir à nação iraquiana e aos iraquianos a sua estratégia de resistência, desde 2003 até hoje.
Desde o momento em que os EUA invadiram o Iraque, o tempo parou para o povo iraquiano. O passar dos anos nada significa, porque dia e noite são iguais e hoje é igual a ontem. Só a tragédia aumenta dia a dia, com os iraquianos sofrendo, tanto a injustiça fardada e dos partidos políticos, como a injustiça institucionalizada nos aparelhos do Estado e nos altos mandatários, que atuam sob a proteção da nova Constituição das novas leis.
Até nos piores momentos, na época das sanções, os iraquianos sonhamos com algum futuro; acreditávamos que os sofrimentos terminariam. Hoje descobrimos que perdemos o presente e o futuro sob a violência da ocupação e suas autoridades impostas, que, de fato, estabeleceram no Iraque uma alternância de poder entre grupos políticos que não acreditam nos direitos do povo, e passaram a mão nos recursos e nas riquezas do país, para pô-los a serviço de um setor minoritário.
A marginalização, o desenraizamento, o isolamento, a exclusão contribuíram muito para o sentimento generalizado na população do Iraque, de que, aqui, os cidadãos não são todos iguais em direitos e deveres, o que gerou o clima necessário para que surja a revolta: o cidadão que nada tem, nada pode perder. A agressão constante e repetida contra os cidadãos iraquianos: perseguições, corrupção, discriminação etc., acabaram por fazer eclodir o levante na província Al Anbar, que já começa a alastrar-se até Saladino e Mosul.
Isso implica que a população começa a conscientizar-se sobre o que lhe cabe fazer para pôr fim a situação atual, porque se nega a continuar submetida às autoridades governamentais, a partidos sectários e a milícias que paralisam o desenvolvimento em todos os espaços da vida.
É levante saudável e valente, porque visa a pôr fim à injustiça e a assegurar dignidade para todos. O fato de os protagonistas da revolta insistam em que nada têm a ver com nenhum dos atuais partidos políticos, grupos ou seitas, é mostra de que têm consciência do que fazem.
São conscientes, em primeiro lugar, de que todas as forças políticas que participam no sistema, embora pertençam ao entorno social, contribuíram para o empobrecimento do país e a perseguição cidadãos e enriqueceram à custa do sofrimento do povo.
Em segundo lugar, os protagonistas das revoltas são conscientes de que a etapa pela qual o país está passando, não exige longos debates sobre a forma de governo ou sobre a natureza do sistema político; e exite, isso sim, governo transparente, capaz de garantir alguns mínimos serviços econômicos, sociais, educacionais e de segurança pública – governo capaz de combater a pobreza e de pôr fim às violações de Direitos Humanos básicos.
Todos os iraquianos veem com clareza que o poder atual e as forças políticas que o sustentam são incapazes de oferecer qualquer serviço público real, porque nasceram do útero de uma crise política que partilhou cargos em função da força relativa de cada grupo, não com vistas a oferecer algum serviço a algum cidadão iraquiano. Os cargos públicos servem unicamente para reforçar e financiar a força política à qual serve um ou outro e se converte em trincheira de luta contra todas as demais forças política – e contra o povo. Nada disso ajuda a desenvolver qualquer sentimento de responsabilidade pública sequer em face do próprio cargo de cada um e, além do mais, torna os políticos impotentes para convencer os cidadãos de que o Estado é o Estado dos cidadãos.
O Estado no Iraque perde qualquer legitimidade – se é que algum dia teve alguma legitimidade – razão pela qual os levantes populares assumem responsabilidade legítima e legal.
As autoridades não vão analisar o que fazem, porque o destino delas e o modelo em que vivem, de corrupção e riqueza, está em jogo. Cabe esperar, portanto, que utilizem contra o povo, todo o aparelho do Estado e seus recursos, para influenciar, primeiro, os cabeças dos levantes, servindo-se, em primeiro lugar, da força e da repressão contra grupos de cidadãos. Em segundo lugar, utilizarão as forças políticas e as personalidades religiosas e tribais próximas e dependentes do poder, mas que pertencem ao mesmo tecido social dos manifestantes, para tentar minar ‘’por dentro’’ as manifestações e dispersar os cidadãos mobilizados, tentando obter que renunciem às suas demandas autênticas. Foi exatamente o que aconteceu quando enviaram al-Mutlaq a Saleh, para convencer os manifestantes a porem fim aos protestos, mesmo sem terem obtido qualquer resposta a qualquer das reivindicações populares.
Aconteça o que acontecer, a situação não voltará a ser o que foi. A data do levante no Iraque será um ponto de inflexão entre o passado e o que está por acontecer.
A responsabilidade por dar proteção aos cidadãos protagonistas do levante do Iraque, e de ressaltar o valor histórico dessa ação heroica é dever absoluto de todos os intelectuais, escritores e jornalistas árabes e locais, para que o levante se estenda a outras praças de outras províncias, cidades e vilarejos do Iraque, até se converter em revolta geral, transformar-se em ação histórica que ponha de pé o Iraque e os iraquianos e devolva ao país sua unidade nacional.
Fonte: Rede Castor.