Sediada em Brasília, a Anis — Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero — lançou recentemente o guia documento Aspectos éticos do atendimento ao aborto legal: perguntas e respostas.
Destinado a profissionais de saúde, ele esclarece dúvidas e questões éticas sobre o aborto previsto em lei. Tem duplo objetivo: melhorar o acesso das mulheres aos serviços de aborto legal de todo o País e auxiliar as equipes multidisciplinares que neles atuam.
O guia é riquíssimo (na íntegra, ao final deste post). Contém 139 perguntas e respostas, fruto de pesquisa de campo em centro de referência no setor. Ela foi coordenada por Débora Diniz, antropóloga e professora da Universidade de Brasília (UnB), e Vanessa Dios, psicóloga do Instituto. A supervisão ficou a cargo da socióloga Miryam Mastrella, doutoranda em Sociologia pela UnB e pesquisadora da Anis, que me concedeu esta entrevista:
Blog da Saúde — Como surgiu a ideia do guia Aspectos éticos do atendimento ao aborto legal: perguntas e respostas?
Miryam Mastrella – Foi durante a análise de dados da pesquisa As emoções e sentimentos morais frente o aborto legal, que a Anis realizou entre abril de 2011 e março de 2012 num serviço de aborto legal de um hospital da rede pública de saúde. Nós queríamos conhecer o cotidiano do serviço e o processo de negociação moral entre a mulher que busca assistência e a equipe de saúde. Aí, inspiradas pelos dilemas e dúvidas vivenciados por esses profissionais, resolvemos dar um passo além. Nasceu o guia.
Blog da Saúde — Qual é o público-alvo?
Miryam Mastrella – São os profissionais que atuam nos serviços de aborto legal do país. Acreditamos que o cuidado ético e o esclarecimento das equipes de saúde refletem diretamente na qualidade do acolhimento oferecido às mulheres que procuram os serviços.
Blog da Saúde — Eu já “folheei” o guia e vi que tem orientações muito úteis. Ele pode ser lido pela população em geral?
Miryam Mastrella — Sem dúvida alguma. É uma ótima fonte de informação para a população, especialmente as mulheres, sobre o aborto legal e funcionamento dos serviços.
Blog da Saúde — Percebi que o guia é dividido em temas. Como chegaram a esse rol?
Miryam Mastrella — De fato, são 14 eixos temáticos, cada um número com número variado de questões, elaboradas a partir das vivências dos profissionais do serviço pesquisado.
Os 14 eixos são estes:
* direitos sexuais e direitos reprodutivos;
* direito ao aborto na legislação brasileira;
* serviços de aborto legal;
* aborto em caso de violência sexual;
* aborto em caso de risco à saúde da mulher;
* antecipação terapêutica do parto em caso de anencefalia;
* consentimento em relação ao aborto;
* aspectos éticos do acolhimento;
* cuidados;
* particularidades vivenciadas pela mulher;
* particularidades vivenciadas pela adolescente;
* dificuldades em relação à realização do aborto;
* dificuldades vivenciadas pela equipe de aborto legal;
* serviço de aborto legal e crenças religiosas ou filosóficas.
Algumas dúvidas acabaram se subdividindo, por isso chegamos ao total de 139 perguntas e respostas.
Blog da Saúde – No seu entender, quais os principais equívocos de profissionais de saúde em relação ao aborto legal?
Miryam Mastrella – Alguns pontos precisam ser mais trabalhados com os profissionais das equipes. Entre eles, a questão dos documentos necessários para a realização do aborto nos casos em que a lei prevê.
No caso violência sexual, por exemplo, não é necessário apresentar boletim de ocorrência policial ou laudo do Instituto Médico Legal para a realização do aborto. Basta o consentimento escrito, assinado pela mulher ou representante legal, que é anexado ao prontuário. É o documento mais importante para a equipe de saúde. A mulher, no entanto, deve ser informada sobre o significado do registro policial e a importância da notificação da violência. É que a falta da ocorrência policial pode dificultar que o agressor seja punido.
A questão da objeção de consciência também é um ponto que merece atenção. Explico. Médicos que são manifestamente contrários aborto previsto em lei não devem fazer parte dessas equipes.
Há ainda outros mecanismos que afetam o funcionamento de um serviço de aborto legal, revelando a importância do comprometimento dos gestores locais para que a política pública seja implementada. Entre tais mecanismos, podemos listar a falta de profissionais em número suficiente para realizar o atendimento, a falta de divulgação sobre as situações em que a lei prevê o aborto, a falta de divulgação dos serviços de aborto.
Blog da Saúde — Que consequências esses mecanismos que afetam o funcionamento de um serviço legal de aborto podem ter na saúde das mulheres que se submetem ao aborto?
Miryam Mastrella – Podem impedir o acesso à realização do aborto ou atrasar o procedimento. Sabemos que quanto mais cedo for feito o aborto, menores são os riscos à saúde da mulher.
Blog da Saúde — Supondo que uma mulher queira interromper a gravidez por alguma das razões previstas na legislação, que recomendações você daria?
Miryam Mastrella –– No Brasil, a mulher, sem não quiser, tem o direito de não prosseguir com a gravidez em três situações: violência sexual, risco de vida e anencefalia.
Nesses casos, a mulher deve procurar o serviço de aborto legal mais próximo, para se consultar com a equipe multiprofissional. Em caso de violência sexual, é importante que o serviço seja procurado o mais breve, já que o procedimento só é autorizado até a 20ª semana de gestação.
Nas cidades em que o serviço de aborto legal ainda não estiver implementado, a mulher deve buscar hospitais que acolham vítimas de violência sexual ou que cuidem de gravidez de risco.
Blog da Saúde — E para a mulher que não se enquadra entre as causas previstas em lei, o que recomendaria?
Miryam Mastrella — Exceto nos casos de violência sexual, risco de vida para a mulher ou anencefalia, o aborto no Brasil ainda é crime.
Fonte: Viomundo