Um enterro e uma poesia

Por Fernando Evangelista. 

– Você vai acompanhar o enterro? pergunta Aram Cunego, ativista italiano de 23 anos, integrante do ¡Ya Basta!, grupo de defesa dos Direitos Humanos.

– Qual enterro?

Aram aponta para o estacionamento do hospital. Será ali mesmo, não tem outro jeito, as geladeiras já não acomodam tantos corpos. É abril de 2002 e estamos em Ramallah, coração político dos Territórios Palestinos.

Alguns dias antes, Israel deflagrara a Operação Escudo Defensivo para “demolir a infraestrutura do terror” e invadira militarmente as principais cidades palestinas. O estopim foi um atentado em Israel, cometido por um militante do Hamas, que deixou 21 mortos e 140 feridos.

No estacionamento, uma escavadeira faz o serviço no chão de terra. Alguns homens ajudam como podem. Pego meu bloquinho de anotações, todo rabiscado de desgraça, e encontro nas páginas centrais um guardanapo amassado, com um trecho de uma poesia de Mário Quintana: “Te lembras dos tempos em que se falava na Quinta Coluna? Felizes tempos aqueles – porque eram tempos de guerra e a gente pensava que tudo ia melhorar depois. Mas quando?”.

Cai uma chuva fina. Vinte e cinco corpos, um a um, são transportados em uma maca improvisada e depois envoltos em lençóis brancos e colocados na vala comum. Tudo é feito muito rápido, a toque de caixa, assim mesmo, de qualquer jeito, sem flores ou ritos prolongados. Não há tempo nem estrutura.

Segundo o Exército israelense, todas estas 25 pessoas são terroristas que perderam a vida em combate. Entre elas, algumas mulheres e duas crianças. Um italiano baixinho, careca e simpático, integrante da caravana, desabafa: “Eu vi esses mortos nas geladeiras e vi que muitos têm um buraco de bala na cabeça, vítimas de execuções sumárias”. A denúncia não é  nova.

Em 12 de março daquele ano, antes da operação Escudo Defensivo, a organização israelense B’Tselem declarou: “Em todas as cidades ou campos de refugiados em que entraram, os soldados israelenses repetiram os mesmos atos: dispararam sem hesitar, assassinando civis inocentes, destruindo intencionalmente os condutos de água potável, as linhas elétricas e telefônicas. Invadiram e danificaram casas particulares, dispararam contra ambulâncias, impedindo-os de prestar assistência aos feridos”.

A invasão israelense em Jenin, cidade de 30 mil habitantes ao norte da Cisjordânia, amplificou essas acusações. Segundo a Autoridade Nacional Palestina, o Exército teria assassinado 500 pessoas durante a operação. Ariel Sharon, em entrevista à CNN, rebateu: “Todos sabem que isso é mentira. Houve combates duríssimos e acredito que as forças armadas estiveram atentas para não atingir os civis”.

A entrada de jornalistas e observadores internacionais em Jenin fica proibida por vários dias. O enviado da ONU, Teje Roed-Larsen, esteve no local duas semanas depois e descreveu o que viu como “um horror que supera o entendimento. É comovedor e horrendo, vi gente tirar restos humanos dos escombros”. Ninguém sabe com exatidão o que aconteceu em Jenin. O único dado confirmado é que 23 israelenses morreram na invasão.

O governo de Israel declara o funcionário da ONU persona non grata, mas volta atrás. Outra pessoa non grata é Javier Zuniga, delegado da Anistia Internacional, que naquela mesma semana afirma: “O Exército de Israel cometeu graves violações ao direito internacional. Estamos falando de crimes de guerra”.

Parecia não haver dúvida sobre a dimensão da tragédia. Entretanto, o vice-diretor da Agência da ONU de assistência aos refugiados, Guy Siri, em entrevista ao jornal The Washington Post, afirrmou não ter visto sinais do massacre. O relatório final da ONU sobre o caso seguiu a linha de Guy e inocentou Israel.

Sentado no meio-fio do estacionamento, olhando aquele enterro coletivo, o ativista  Aram Cunego me pergunta: “Será que daqui a 10, 20 anos, as coisas estarão assim? Será que o mundo vai continuar deixando que isso aconteça impunemente?”.

Ele faz uma pausa e continua: “Para que serve o direito internacional? Até quando pessoas inocentes serão covardemente perseguidas, injustiçadas e assassinadas? Quando isso vai melhorar? Quando? Você sabe me responder?”.

Não, eu não sabia.

Fernando Evangelista é jornalista, diretor da Doc Dois Filmes. Cobriu três guerras no Oriente Médio e conflitos na Europa e América do Sul. Mantém a coluna Revoltas Cotidianas, publicada toda terça-feira.

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