Cadeia, o fetiche social do Brasil

Por Marília Moschkovich*.

Não sou advogada, não estudei Direito. Me espanta, mesmo assim, a ideia torta de justiça que vejo – e leio, e ouço – por aí. Essa noção bizarra de que quem comete qualquer crime “tem que pagar”, que atribui à Justiça a função quase exclusiva de punir, “dar o troco”, ou “vingar” as vítimas, me parece um tanto equivocada. Em geral é esse tipo de interpretação sobre o papel da Justiça na nossa sociedade que naturaliza a categoria “crime” e reproduz uma série de fantasias quase fetichistas sobre a figura de um “criminoso”.

Havia tempos eu não assistia A Grande Família, que andei achando os episódios meio bocós. Por acaso deixei pra desligar a TV mais tarde outro dia e tive o prazer de assistir a um episódio que trouxe várias destas questões à tona. No episódio, a pastelaria do Beiçola sofre um arrastão de um grupo de meninos chefiado por um estelionatário adulto (Luis Fernando Guimarães, hilário nesse papel como havia tempos eu não achava). No desespero, Lineu e o próprio Beiçola conseguem capturar um “bandido”: uma criança de pouco mais de dez anos de idade. Ele fica preso no banheiro, enquanto a família discute como proceder. No início, Dona Nenê é a única a questionar se ligar para a polícia é realmente o melhor a fazer. Ela lembra: “alguém já viu ladrão sair melhor da cadeia?”. Aos poucos a família se convence de que, realmente, não é para tanto. O menino só queria dinheiro pra comprar um game portátil.

Taí o “criminoso”

Isso me lembrou de outro episódio, desta vez da minha própria vida, sem roteirista global nem nada. Comecei com a mania de ler jornal diariamente quando tinha algo entre uns 11 ou 12 anos de idade. Eu estava decidida a ser jornalista e, claro, tinha que ler o jornal todo dia. Pois em certa ocasião – era 1998 ou 1999, já não me lembro – o jornal veio com uma foto de um menino negro chorando, estampando a capa. A manchete anunciava que ele havia sido condenado à morte em algum estado dos EUA, tampouco me lembro qual. O menino na foto chorava e eu, quase com a mesma idade, chorava a cada linha da notícia, que explicava que ele tinha uma deficiência mental e num surto havia matado uma outra criança, menor que ele.

Condenado à morte. Outro criminoso

Anos mais tarde assisti ao excelente Daniel, um filme de ficção baseado numa entrevista com o filho dos Rosenberg que sobreviveu à história toda com um pouco de lucidez (o que não foi o caso de sua irmã). Durante a guerra fria, o casal de origem judia foi condenado e executado na cadeira elétrica, acusado de espionagem (e não vou nem comentar que os judeus eram considerados criminosos na Alemanha nazista). Não havia, claro, prova alguma. Mesmo quando parece que há provas, porém, elas levam a erros cruéis. Um outro filme que assisti ainda depois de Daniel traz Kevin Spacey como um militante de direitos humanos que luta contra a pena de morte. Em A Vida de David Gale fica clara a possibilidade latente do erro.

Julius e Ethel Resenberg, assim como o ficcional David Gale, são todos criminosos

O “crime” não é um dado da natureza. É uma categoria inventada na nossa sociedade. Nem toda quebra de lei é crime. É a legislação que define o que é crime e o que não é. Essa legislação é feita inteirinha por pessoas, que têm interesses, posicionamentos políticos, moral religiosa, moral laica; que foram criadas nessa mesma sociedade que se estrutura por meio de classes sociais, categorias raciais, e de uma matriz heterossexual de comportamento que é bem opressiva. Decorre disso que existe sempre um embate pela definição das leis. Nesse embate, as ideias que propagamos, reproduzimos e defendemos sobre o que deve ser a justiça, qual deve ser seu papel, pra que serve o sistema prisional, etc. são essenciais. Elas forjam os termos mais práticos da lei.

A existência da pena de morte em qualquer país que utilize esse modelo de Estado moderno (o mesmo que nós utilizamos), está necessariamente apoiada pela crença de que o Estado, por meio da justiça, está “vingando” as vítimas de uma certa ação criminosa. Isso se aplica também nos casos em que a “vítima” não é uma pessoa, mas uma ideia, como a propriedade privada ou a moral sexual. Há uma série de países em que o simples ato de fazer sexo anal (não importa a sexualidade dos envolvidos) é punido com a morte. Nos EUA, país que muita gente julga um “modelo” de civilidade e cidadania, até bem recentemente havia estados em que a prática do sexo oral era proibida. Na Nicarágua, uma mulher que abortar um feto gerado por um estupro é uma criminosa.

No Brasil, o Conselho Nacional de justiça conta que mais de 40% da população carcerária é composta de gente que não foi considerada culpada, que não teve julgamento. Como socióloga, não sei explicar exatamente por que isto acontece, mas imagino que a mentalidade punitivista da população, em geral, tenha algo a ver com isto. As pessoas parecem sempre mais preocupadas em que se bote gente na cadeia do que em que de fato haja um processo justo. Os argumentos, circunstâncias e minúcias pouco importam: o que a população normalmente brada pelos quatro cantos (da internet, inclusive) é que o acusado tem que ir preso e pronto. Já compra-se imediatamente a ideia de que acusados são culpados, o que é deveras problemático.

O julgamento do mensalão é um prato cheio para observar a expressão deste tipo de pensamento. Pergunte às pessoas na rua: não lhes interessa quem é de fato culpado de algum crime, quem se enquadra na lei e quem não se enquadra. A população julgou, seguindo a mídia de massas, que se jogue todo mundo na cadeira e fim. A mesmíssima população que, enquanto posta cartazes “contra a corrupção” no Facebook, sonega seus impostos, transfere suas multas de trânsito por altíssima velocidade (e reclama de uma inexistente “indústria da multa”), entre outros pequenos atos de corrupção cotidianos. Colabora, ainda, para que a corrupção política no Estado continue. Como? Defendendo que o voto continue obrigatório, votando em qualquer candidato para vereador, ou “deixando a política para os políticos”. Pra ficar em exemplos corriqueiros. “Detesto política” ou “sou apolítico” vêm em geral das mesmas bocas que se dizem “contra a corrupção”. Assim fica difícil.

O episódio de “A Grande Família”,
Assim como o menino executado nos EUA,
Assim como o casal Rosenberg ou David Gale,
Assim como os praticantes de sexo anal em alguns países,
Assim como as mulheres nicaraguenses estupradas que se recusam a gerar tais fetos,
Assim como seu vizinho que sonega impostos na microempresa dele,
Assim como você ao transferir uma multa para o nome de outra pessoa,
São todos criminosos.

Você não é menos criminoso por ser branco e de classe média/alta. Só tem mais dinheiro e mais recursos pra não ser preso sem julgamento. Aproveite a oportunidade de ter o mensalão sendo julgado, o episódio de A Grande Família, e eleições municipais assim, no mesmo ano, uma coisa pertinho da outra, e pense no que é que significa, de fato, “justiça”. Assim, com “j” minúsculo.

Para ler os textos anteriores de Marília Moschkovich, clique aqui

Imagem: Fernando Botero, da série Família

 *  Editora de Mulher Alternativa.

Fonte: http://www.outraspalavras.net 

1 COMENTÁRIO

  1. Marília faz umas críticas pertinentes, pena que ela apenas questione a moralidade da punição, isto é, em nível cultural, e não as estruturas que sustentam inclusive materialmente isso: o estado com todo o aparato judiciário-penal. Sem questionar isso, não dá pra pensar em qualquer coisa q passe perto de algo que possa ser entendido como ‘justiça’.

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