Por Tali Feld Gleiser.
– À família Alberdi Campos.
Quando me aproximei da Laila, ela apenas se virou com um olhar cúmplice e continuou com o que estava fazendo. Enquanto ninguém a via, ela tinha trazido uma cadeira da sala até a cozinha. Subiu-se, pegou quatro bolachas, em vez das três às que tinha direito, enquanto eu vigiava que ninguém aparecesse. Levou de volta a cadeira para a sala e sentou-se para assistir seu desenho-obsessão Doraemon.
Laila, de sete anos, veio passar as férias na casa de uma família basca que, como muitas outras, acolhe uma criança saaraui. Contra a sua vontade, a mãe quis que ela não sofresse com os cinquenta ou sessenta graus que tem nessa época do ano onde eles moram. O país que os acolheu é a Argélia, mas ali eles não são cidadãos comuns, são refugiados que moram no acampamento de Tinduf. A Frente Polisário de Liberação Nacional se encarrega de organizar a vida no local e também as viagens de crianças de até doze anos. Nessa “férias”, além de serem recebidas pelas famílias, elas são levadas ao médico e dentista. No final de agosto retornam para casa, embora eventualmente alguma fique para tratamento médico. Várias prefeituras pagam as passagens ou as mesmas famílias adotivas, mas com a profunda crise que sofre o Estado espanhol, algumas famílias tiveram que desistir de trazer crianças.
A história do povo saaraui dificilmente é divulgada na grande mídia. Poucos sabem que o Saara Ocidental foi território espanhol desde finais do século XIX até 1976. Em 1975, o governo espanhol ia realizar um referendum de autodeterminação para que o povo saaraui decidisse seu futuro livremente. Porém, o Marrocos e a Mauritânia queriam anexar o país e, aproveitando a delicada situação pela que passava o governo espanhol (Franco o ditador estava morrendo) fizeram de tudo para que o povo saaraui não conseguisse se expressar. Hassan II, o ditador marroquino, organizou a chamada “marcha verde” para invadir “pacificamente” o território dos saarauis com uma grande quantidade de civis. Devido à tensão, o governo espanhol decidiu esquecer a promessa de respeitar a decisão dos saarauis e após a realização alguns negócios econômicos com o Marrocos, ordenaram a saída dos civis espanhóis primeiro e do exército depois. Não adiantou que os saarauis tivessem sua carteira de identidade espanhola, eles foram abandonados. As tropas marroquinas entrara no território a sangue e fogo e até bombardearam a população civil com “napalm”. Grande parte da população fugiu para a fronteira argelina através do deserto. O povo saaraui reagiu depois de três anos de guerra com o Marrocos e a Mauritânia, que se rendeu e assinou a paz com a Frente Polisário, o movimento saaraui de liberação. Porém, o Marrocos invadiu a área que os mauritanos tinham devolvido aos saarauis. A guerra continuou até quase 1991, quando houve um “cessar-fogo” patrocinado pela ONU para realizar um referendum de autodeterminação, que até hoje ainda não aconteceu. No entanto, a maior parte do país continua ocupada por um imponente dispositivo militar (que supera praticamente em número à população autóctone) e segue sendo reprimida pelos invasores e grande parte dos colonos marroquinos ali instalados que superam o número dos saarauis. Uma parte do país (aproximadamente a quarta) está liberada e se encontra sob domínio do Exército Saaraui.
A Laila é filha dessa história e, como mais uma criança acolhida por famílias bascas, ela foi muito bem recebida em Azkoitia, cidadezinha a quase uma hora de Donostia-San Sebastián. Os primeiros dias foram difíceis, longe da sua cultura e realidade, e até da sua língua porque ela não falava nem castelhano nem euskera (basco). Depois de um mês e meio, ela entende e se expressa nos dois idiomas, que são completamente diferentes entre si. No começo ela era uma criança tímida, que tentava se defender de um entorno desconhecido. Muito valente, ela foi se integrando graças a Haizea e Itxaso, as duas meninas da casa que estão felizes de ter uma amiguinha para dividir seu quarto, brincar e, especialmente, fazer bagunça.
Me pergunto como funcionará na cabeça de uma criança, que vem de uma situação extremamente precária, se encontrar com que quando abre uma torneira sai água de verdade e não água com areia que estraga os dentes. Hoje Urra, a mãe adotiva, as leva para a praia, amanhã pode ser a piscina. A brincar em alguma praça, vão sempre. Que um homem seja dona de casa e não uma mulher como é o caso do Koldo? Tudo isso está fora de seus códigos. Mas Laila é uma criança como qualquer uma, que deveria ter os direitos, que muitas vezes consideramos banais, ter alimentação adequada, atenção médica, ir à escola, brincar.
Laila, Haizea e Itxaso se divertindo em Zumaia.
De cima para baixo: Inzta, Haizea, Beñat, Iosu, Laila, Haizea e Urko.
Daqui a uma semana, Laila irá embora para a sua difícil vida sabendo que as pessoas que a receberam como mais um membro da família, ou como mais uma amiguinha, vão junto com ela no coração e se sentirão mais próximas da causa saaraui.
Fontes:
http://www.nodo50.org/aapscyl/historia/historia.htm
http://www.naiz.info/eu/actualidad/noticia/20120807/ninos-saharauis-en-euskal-herria
:_)
Muchas gracias por contarlo todo tan bien.
El pueblo saharaui estaría muy orgulloso de sentir que son apoyados por personas del mundo entero, que conocen su situación y que no pueden tolerarla, debido al grado de injusticia que se ha cometido y se sostiene en esa antigua colonia española.
Debería pesar como una losa, sobre cada español, el recuerdo y la consciencia de saber que nuestros compatriotas y seres humanos maravillosos, muy luchadores, muy sufridores, fueron abandonados a su suerte por nuestros gobernantes y por el Rey de España, pricipal responsable de lo allí sucedido, Juan Carlos I de Borbon, el putero, el borracho, el que está a punto de caer junto con el régimen de la DICTADURA franquista española.