Por Eduardo Hoornaert*.
Gostaria de tecer algumas considerações acerca do modo como o Brasil se apresentou no final dos jogos olímpicos em Londres, domingo passado, 12 de agosto. Fiquei triste quando o apresentador disse as seguintes palavras (cito de memória): ‘quando os portugueses chegaram aqui, viviam no país cinco milhões de índios’. Teria sido melhor se ele tivesse dito ‘cinco milhões de habitantes’. Esse termo ‘índio’ soa mal nos dias de hoje e penso que para a maioria dos que o ouviram em Londres evoca imagens do Farwest, com John Wayne etc. Penso que não se trata de um simples detalhe, um lapso casual, mas de uma constante na maneira como os brasileiros contemplam a sua própria história. Quando os portugueses chegaram, viviam aqui pessoas de mais de três mil povos diferentes, tão diferentes que suas falas pertenciam a três famílias linguísticas (o tupi-guarani, gê e karib), algo impressionante quando pensamos que todas as línguas atualmente faladas na Europa provêm de uma só família linguística (o indo-europeu). Como escrevi, parece apenas um lapso do apresentador, mas não é bem assim. Sabemos que nos livros de história usados nas escolas se encontram palavras como ‘índio’, ‘descobrimento’, ‘capitanias hereditárias’, ‘invasões holandesas (ou francesas)’, etc. etc. Onde fica o historiador cearense Capistrano de Abreu, que no século XIX já escreveu que era urgente substituir esse vocabulário por um conhecimento mais preciso e aprofundado do país? Aparentemente não se lê Capistrano no ministério da educação, pois na atual greve dos professores, os interlocutores do governo só falam em questões de salários. Ora, o ministério da educação é o local onde se repensa o Brasil, a começar pela eliminação de termos como os acima citados. Pelo menos, tem de ser assim. Eis um ponto em que a educação parece que não avançou desde os tempos de Capistrano, pois até hoje a escola ensina às crianças a repetir palavras como índio, descobrimento, invasão, capitania etc., além de estereótipos como malandragem, sincretismo, carnaval e futebol.
O sincretismo, eis a questão de ‘ser ou não ser’ do Brasil. O tema foi, pela primeira vez, abordado nos anos 1930 por ‘explicadores do Brasil’ da época, como Gilberto Freyre, Caio Prado Júnior e Sérgio Buarque de Holanda. Decerto, esses autores fizeram um trabalho pioneiro, mas desde então tanto o Brasil mudou muito. O cenário mundial também mudou, particularmente, em três pontos que gostaria de comentar brevemente aqui:
1. A integração latino-americana, praticamente inexistente nos anos 1930, hoje é um imperativo. É preciso ultrapassar o nacionalismo presente nas análises tradicionais (como também nas olimpíadas de Londres). A recente entrada da Venezuela no Mercosul traz ao Brasil o tema da ideia bolivariana, que nos remete à nossa responsabilidade na construção de uma região latino-americana independente do modo de pensar nos Estados Unidos e na Europa. Marcelo Barros escreve com razão sobre a ‘espiritualidade bolivariana’, um tema que merece nossa atenção. O universalismo latino-americano pode ser um estímulo para outras regiões do mundo se emancipar da visão típica do Atlântico Norte (Europa e Estados Unidos).
2. O tema do sincretismo e da miscigenação, tão importante nas sínteses dos anos 1930, ganha hoje um novo significado. Hoje sabemos que toda a história humana, de uma ou de outra forma, ao final das contas, é ‘sincrética’. Não existe história humana sem sincretismo e isso tem de ser dito com clareza por países como o Brasil. Está na hora de superar a vergonha que ainda reina em torno da chamada ‘mistura de raças’ e o Brasil pode ser pioneiro nessa superação, pois constitui um exemplo positivo de convivência pacífica entre culturas e raças muito diversas e mesmo conflitantes: as antigas culturas do continente (subjugadas), as culturas dos colonizadores e as culturas dos povos transportados da África para servir aqui como escravos. Hoje, os países do chamado ‘primeiro mundo’ mostram-se mal preparados a enfrentar a convivência multinacional, multirracial e multicultural que o momento histórico exige. Acabamos de ver, pela TV, que atletas negros ganham medalhas de ouro sob o rótulo dos Estados Unidos, da Inglaterra e/ou da França. Esse tipo de disfarce é típico dos tempos que vivenciamos, um disfarce incômodo e, afinal, humilhante para o esportista negro. O atleta negro só é valorizado quando se percebe claramente sua identidade, como aconteceu na cerimônia de entrega das medalhas aos vencedores da maratona, todos africanos.
3. A percepção da universalidade da miscigenação se aplica à religião. Quando Roger Bastide e Pierre Verger ‘descobriram’ o candomblé da Bahia, interpretaram-no como algo especificamente brasileiro. Mas não é bem assim. O encontro entre Jesus (o líder galileu) e Oxalá (o líder de um antigo reino africano) é significativo para o que se passa hoje um pouco no mundo inteiro, não é uma particularidade do ‘terceiro mundo’. Sempre mais, Jesus se alinha com outros personagens de outras culturas. Os tempos que vivemos nos convidam a ver as coisas da religião de forma mais pragmática e menos dogmática. Nisso também o Brasil é um país que abre perspectivas e é saudável que isso apareça no cenário mundial.
Afinal, o Brasil tem muito a ‘mostrar’ ao mundo por ocasião dos jogos olímpicos no Rio, daqui a quatro anos. Espero que, nesse ínterim, se discuta acerca de uma interpretação do Brasil que não venha a confirmar preconceitos e estereótipos do passado. Pois jogos olímpicos são mais que competições esportivas. Constituem uma vitrine do mundo e uma oportunidade de se mostrar de que forma desejamos viver neste mundo.
* Padre casado, belga, com mais de 5O anos de Brasil, historiador e teólogo, mais de 20 livros publicados. Mora em Salvador. Dedica-se agora ao estudo das origens do cristianismo
Fonte: Adital.
Foto: AFP
Realmente assim como muitos brasileiros não gostei do encerramento brasileiro nas Olímpiadas de Londres, pois deveríamos ter apostado em figuras conhecidas mundialmente como Tom Jobim (no caso, representado por seu filho). E por que não aproveitamos o momento para relembrar nosso grande Santos Dumont? Fica a dica!!!