Anistia ou a negação da história. Entrevista exclusiva com Cleide Martins

O que me preocupa são todos os outros militares que dedicam suas vidas a criar e combater o inimigo interno.

Arte de capa: Tali Feld Gleiser

Redação.- Pretendem, sempre, com constância histórica, tutelar a sociedade, mas, em cada oportunidade que tomam o governo o país fica a mercê da violência, a miséria, a entrega da soberania nacional. Insistem mesmo ante a obviedade delitiva cometida quando participam da órbita civil. São os autores intelectuais, junto com boa parte do mundo financeiro e das oligarquias apátridas, das piores mazelas que mantém, muitos aspectos do Brasil, em situação de colônia. São eles, os militares que traficam o poder com cantiga do tal “inimigo interno”.

Alguns deles, por primeira vez, se tornaram réus por tentativa de golpe de estado. Mas, muitos se escondem na multidão ocultando o que fizeram antes, desde 1964. Nunca julgados, nunca condenados, nunca separados da sociedade que foi vítima inadmissível da aventura prenhe de tortura, sevícia, violação, morte e ladroagem.

Claro que não se trata de toda a classe fardada, mas, não é e nunca foi um número pequeno, animado pela covardia de sucessivos momentos da institucionalidade brasieira que tremeu sempre ante a força da caserna. Está prestes a mudar isso para bem da democracia? Bolsonaro e seus asseclas terminarão presos? Quais os riscos de uma anistia e como isto se emparenta com a Lava Jato e outros trágicos momentos da democracia?

Sobre esses assuntos, Raul Fitipaldi, para o Portal Desacato, conversou com a advogada, Cleide Martins.

A seguir o diálogo:

Os outros militares

R.F. A condição de réus de Jair Bolsonaro e sua banda de militares reascende o tema da anistia obtida pelos executores intelectuais e materiais da ditadura. Aqueles a conseguiram para desgraça da democracia. Há riscos de que estes militares de hoje a consigam?

C.M. Sim, é um risco bem concreto. A base da extrema direita está trabalhando para isto.

Na minha avaliação, os que foram denunciados e já são réus nos processos podem sim serem responsabilizados pelos crimes cometidos contra a nossa democracia em mais esta intentona golpista.

O que me preocupa são todos os outros militares
que dedicam suas vidas a criar e combater inimigo interno.

São militares que negam a história, se opõem à Comissão da Verdade, atuam para impedir a reparação às vítimas da ditadura militar.

Foto: Lula Marques/Agência Brasil

Preocupa saber que eles estão no jogo político e têm um projeto para o país diferente dos projetos que têm sido apresentados nas urnas, um projeto ultraneoliberal que pretende aniquilar o Estado, privatizar absolutamente tudo o que há, inclusive saúde e educação, e com ele aniquilar a cidadania em si própria, além de instalar uma ditadura militar no país.

Militares que frequentavam o acampamento em Brasília, figuras ilustres e seus familiares já foram poupados. Todos estes que escaparam da justiça agora tendem a seguir tramando golpes contra o Estado democrático de direito em nosso país, porque é isto o que fazem desde a fundação da República.

Além destes, nós ainda aguardamos que os políticos e os patrocinadores do golpe sejam também denunciados e julgados por terem conspirado contra a democracia em nosso país.

Mensalão, Lava Jato e depois…

R.F. Bolsonaro, seu clã e os aliados se beneficiaram dos atos delitivos da Lava Jato que destruiu reputações e a empresa brasileira. Essa continuidade que colocou Moro como ministro, e os atos criminosos do ex-presidente durante a pandemia não deveriam ser trazidos à tona para reativar as denúncias?

C.M. O que se passou nos tribunais deste país desde o julgamento da AP 470, ação penal pejorativamente conhecida como “Mensalão”, é muito grave.

Foram centenas de operações que prejudicaram o país, retardaram nosso desenvolvimento, destruíram nossa economia, aniquilaram o emprego e diminuíram a renda dos trabalhadores, destruíram direitos trabalhistas e previdenciários e nos impuseram um teto de gasto, com a famigerada PEC do fim do mundo.

Tais operações, conduzidas por servidores públicos treinados no Brasil e nos Estados Unidos da América para este fim específico, criminalizaram a política e pavimentaram o caminho para a ascensão do nazifascismo que  se elegeu com o mesmo lema da Alemanha nazista: Brasil acima de tudo, deus acima de todos.

Moro e Dallagnol. Fotos: Fabio Rodrigues Pozzebom e Lula Marques/Agência Brasil
Todos os operadores do lawfare precisam ser responsabilizados.

A Alemanha, após a segunda guerra criou um dispositivo legal, que tipifica um crime conhecido como “perversão da justiça”, que descreve a ação de um servidor público contra o direito ou em benefício de alguém. As violações ao direito cometidas por servidores públicos, tais como as cometidas por Moro e Dallagnol, que prenderam pessoas contrariando a norma legal, que coagiram pessoas a fazerem delações que foram usadas, sem a corroboração de provas para condenar pessoas, ensejariam a condenação por “perversão da justiça”.

Como no Brasil ainda não dispomos de uma lei similar à lei alemã, precisamos acompanhar e cobrar do Procurador Geral da República (PGR), Paulo Gonet, que dê andamento na Representação feita pelo Conselho Nacional de Justiça, quando enviou o relatório da correição feita na 13ª Vara Federal de Curitiba, que apontou crimes que incluem valores da ordem de 2,5 bilhões de reais.

O relatório da Polícia Federal é sólido e bem fundamentado, descreve com clareza os crimes e indica os autores, está parado há nove meses na PGR, aguardando o oferecimento da denúncia.

O mesmo acontece com os crimes cometidos por Bolsonaro e sua equipe de ministros na condução da pandemia. O Brasil parou um semestre para assistir ao vivo aos atos da Comissão Parlamentar de Inquérito. Os crimes foram fartamente descritos, o relatório da CPI entregue à PGR foi arquivado, os familiares das vítimas esperam e merecem justiça.

R.F. As divergências explicitadas pelo Ministro Luiz Fux com o Ministro Alexandre de Moraes sobre a delação de Mauro Cid não abrem uma perigosa janela a caminho da devida condenação?

C.M. Absolutamente! Os golpistas estavam tão certos do êxito de seu plano que deixaram provas por todos os lados. As fartas provas documentais foram colhidas dentro do Palácio do Planalto. Redigiram e imprimiram a minuta do golpe, o plano Punhal Verde e Amarelo para assassinar pessoas, fizeram entrevistas e publicaram em suas redes sociais, trocaram mensagens por aplicativos, enfim, o arcabouço probatório é mais do que suficiente para fundamentar a condenação.

Imagem tomada do Portal de Rádio Pampa

A primeira vez

R.F. Como observa a relação de juristas internacionais relacionados com estes temas decorrentes de ditaduras, tentativas de golpe e Lawfare?

C.M. Da repercussão internacional destaco a publicação do jornal El país: “Esta é a primeira vez que a tentativa de golpismo aparece nos tribunais brasileiros.”

Esta é a grande novidade. Desde 1823 até os dias atuais foram 8 golpes contra nossa democracia, envolvendo militares. Em 2016, tivemos o golpe jurídico parlamentar. Entre um golpe e outro foram mais duas dezenas de tentativas malsucedidas de golpes. Sempre com participação de militares.

Desta vez eles estão no banco dos réus. No julgamento, suas defesas sequer negaram os crimes, se limitaram a questionar um ou outro aspecto do processo.

No entanto, a base parlamentar do golpe trabalha por uma anistia para os criminosos.

 

Foto: Lula Marques/Agência Brasil

Os juristas que já detectaram a existência do novo tipo de guerra, esta que faz uso estratégico do direito para perseguir inimigos políticos, violar a soberania popular e afastar aqueles que estavam no poder conduzindo políticas em prol de seus direitos sociais, se alinham na luta da resistência contra o lawfare, como forma de impedir os avanços da extrema direita que busca nos impor a necropolítica, que carrega junto consigo o neoconservadorismo e o neonazismo.

Nos Estados Unidos, neste momento em que advogados e juízes se encontram sob fortes ataques, a revista Foreign Policy aponta que o Brasil é o exemplo de como lidar com a questão.

Ou seja, naquele país que inventou o lawfare juízes hoje estão na mira da extrema direita e nos veem como o modelo a ser seguido para enfrentar a guerra. Como dizia o poeta, é um tempo de guerra, é um tempo sem paz.

R.F. Quais ações com relação a esta conjuntura realizará como apoio à justiça o Coletivo de Lawfare Nunca Mais?

A Rede Lawfare Nunca Mais  é uma associação que tem como objetivo realizar ações que colaborem para detectar e neutralizar o lawfare em nosso país. Nosso sonho é que todas as vítimas de lawfare sejam resgatadas das prisões virtuais nas quais se encontram com suas vidas interrompidas, respondendo a inúmeras ações, com seus bens bloqueados, condenadas ao pagamento de multas absurdas, vítimas de acusações infundadas de corrupção. Para as vítimas buscamos anistia e reparação e para os violadores do direito, os operadores do lawfare, buscamos responsabilização.

Desde 2023 temos atuado junto ao governo brasileiro a criação de uma política pública que proteja o nosso país desta guerra.

Quando da realização do Plano Plurianual Participativo submetemos, com o apoio da ABJD, Transforma MP, Fened, dentre outras organizações, a proposta de criação da Rede Nacional de Monitoramento e Combate ao Lawfare.

A Rede Nacional de Monitoramento e Combate ao Lawfare tem por objetivos:

I – prevenir, detectar e neutralizar os casos de uso estratégico do Direito e da mídia, para deslegitimar e aniquilar inimigos políticos;

II – promover o resgate e a reparação das vítimas de lawfare e a responsabilização dos agentes violadores;

III – formular, promover, coordenar e articular políticas públicas pertinentes ao tema.

Com isto esperamos que cesse a perseguição judicial e midiática que tem por objetivo aniquilar lideranças políticas que estiveram trabalhando por um projeto de sociedade justa e igualitária, pois, no nosso entender, foi este uso estratégico do direito que propiciou as condições para eleição dos protonazifascistas que urdiram este golpe.

Mais especificamente com relação à responsabilização dos operadores do lawfare, já enviamos documentos ao Ministério da Justiça e Polícia Federal, denunciando fatos ocorridos na 13ª Vara Federal de Curitiba e temos cobrado o andamento das representações.

Estamos articulando apoio de parlamentares para nos ajudar na cobrança ao Procurador Geral da República quanto ao andamento das apurações dos fatos apresentados pelo Conselho Nacional de Justiça, decorrentes da correição e do relatório da Polícia Federal sobre os crimes relacionados à Operação Lava Jato.

No que diz respeito ao julgamento dos golpistas, nossa missão é ampliar o debate por meio das redes sociais e dos programas que apresentamos todas as terças-feiras e mobilizar para as manifestações exigindo a responsabilização. O lema é um só: sem anistia para golpistas – ditadura nunca mais! Lawfare Nuna Mais.

 

Cleide Martins é advogada, pedagoga, especialista em Gestão da Comunicação Organizacional pela FIA/USP e em Educação a Distância pelo SENAC, Diretora Executiva da Rede Lawfare Nunca Mais.

Raul Fitipaldi, é jornalista e apresentador, cofundador do Portal Desacato e da Cooperativa Comunicacional Sul – @raulfitipaldi

 

 


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