Por Lautaro Rivara, Diario Red.
Diante da permanente excepcionalidade que tem cercado tudo o que diz respeito à Venezuela nos últimos anos, os últimos dias têm sido de – pelo menos relativa – normalidade no país sul-americano. O “Dia D”, tão anunciado pela oposição, foi mais um dia de procrastinação e espera. Nem a esperada entrada clandestina do ex-candidato presidencial Edmundo González Urrutia em território nacional, nem os protestos maciços e radicais anunciados na capital, nem a invasão do Palácio Miraflores pelos bot-farms foram de fato realizados.
O caso Maria Corina
Nos últimos dias, as ruas de Caracas permaneceram tensas e expectantes, mesmo em 9 de janeiro, o dia em que as principais manifestações convocadas pelo governo e pela oposição coincidiram no tempo e no espaço, que finalmente se encontraram no rico município de Chacao, na capital, sem violência ou incidentes graves. A grande operação de segurança implementada, concentrada principalmente em cercar o palácio do governo que foi tomado de assalto no golpe de Estado de 2002, bem como a memória traumática das violentas “guarimbas” de 2014 e 2017, sem dúvida tiveram um efeito dissuasivo sobre a base da oposição, que não conseguiu mobilizar mais do que uma pequena fração das pessoas mobilizadas na última campanha presidencial.
O principal e quase único conflito surgiu à tarde, quando durante o comício antichavista – que não ultrapassou 3.000 ou 4.000 pessoas – o chamado Comando Venezuela anunciou na rede social X a suposta prisão de María Corina Machado por agentes do Estado. Num acontecimento inédito, a conhecida organização Human Rights Watch apressou-se a “confirmar” o ocorrido na mesma rede social, por um tweet emitido pelo vice-diretor para as Américas Juan Pappier. A partir daí, a mídia e a mesa de som da rede cuidaram do resto.
Negando o “sequestro” da própria líder da oposição numa filmagem que circulou à tarde, a versão seguinte divulgada afirmava que Machado teria sido detida, obrigada a gravar o referido vídeo e depois liberada. Até agora – e apesar da grande presença de jornalistas e fotógrafos no local – ninguém foi capaz de fornecer provas visuais ou testemunhais de uma prisão violenta que parece ter sido nada mais do que uma montagem destinada a transformar uma mobilização doméstica discreta num evento político estrondoso internacional. Sem outras provas ou fontes além dos tuítes acima mencionados, boa parte da imprensa internacional, incluindo alguns meios de comunicação progressistas, rapidamente fez eco das notícias falsas, contribuindo para a desinformação generalizada.
O ato de investidura e as primeiras medidas
Nas primeiras horas da manhã de 10 de janeiro ocorreu a posse de Nicolás Maduro Moros como presidente da República Bolivariana da Venezuela. Assim, o ex-sindicalista voltará a exercer a função de chefe do Executivo e Comandante-em-Chefe das Forças Armadas Nacionais Bolivarianas (FANB) pelo terceiro período consecutivo, que se estenderá até 2031.
A cerimônia de investidura, relativamente breve e íntima, teve lugar na Assembleia Nacional, o epicentro do conflito político mais flagrante entre o partido no poder e a oposição nos últimos anos. Desta forma, o chavismo revalida a mais extensa hegemonia política da história contemporânea da região, com 26 anos de governo desde o início da primeira presidência de Hugo Chávez Frias em 1999, falecido em 2013.
No seu discurso, Maduro garantiu que “o país está em paz” e que está “no pleno exercício da sua soberania nacional”. Além disso, afirmou que os Estados Unidos e “seus satélites na América Latina e no mundo” teriam transformado as eleições de 28 de julho numa “eleição global”. Em sua primeira medida de governo, o também presidente do Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV), enviou ao parlamento um decreto pedindo uma nova reforma constitucional, que em suas palavras, deveria definir o modelo econômico venezuelano no longo prazo e garantir uma reforma política de conteúdo ainda indeterminado.
O impacto internacional
Longe do tão repetido “isolamento venezuelano”, a inauguração e os seus convidados ofereceram um reflexo fiel da fratura global em diferentes blocos de países, bem como das alianças e realinhamentos da esquerda e dos progressismos da América Latina e das Caraíbas. A nível global, estiveram presentes delegações da Rússia, lideradas pelo presidente da Duma de Estado, Viacheslav Volodin; da China, liderada por Wang Dongming, do Congresso Nacional Popular; da Coreia do Norte e também do Irã, país com o qual a Venezuela anunciou uma “aliança poderosa” em novembro de 2024. Correlativamente, nem os Estados Unidos do presidente cessante Joe Biden nem a União Europeia estiveram presentes, enquanto vários governos ocidentais ratificaram o seu reconhecimento de González como “presidente eleito”.
No que diz respeito à região, estiveram presentes os governos politicamente relacionados de Honduras, representados por Manuel Zelaya, ex-presidente e marido da atual presidente Xiomara Castro; de Cuba, com uma delegação chefiada pelo presidente Miguel Díaz-Canel, aliado próximo da Venezuela; da Nicarágua, país representado pelo presidente Daniel Ortega; e da Bolívia, por meio da ministra das Relações Exteriores, Celinda Sosa; dos pequenos países insulares como Dominica e São Vicente e Granadinas que fazem parte da ALBA-TCP, e até de organizações internacionais como a OPEP.
Notórias e discutidas foram as ausências, provavelmente coordenadas, de Gustavo Petro da Colômbia, Claudia Sheinbaum do México e Lula da Silva do Brasil, embora os três líderes progressistas tenham enviado os seus respectivos embaixadores ao país para acompanhar a investidura, anunciando que manterão em todos os casos o mesmo tipo de relações mantidas com o vizinho até o momento, e em nenhum caso acompanharam o reconhecimento de González promovido pelos governos mais centristas e conservadores da região.
Nessa linha, presidentes como os do Uruguai, da Argentina, do Panamá e da República Dominicana receberam o ex-candidato nas diferentes estações de sua viagem internacional, enquanto competem – especialmente este último – para ser a próxima sede de uma espécie de Grupo de Lima revivido, a aliança de países geopoliticamente alinhados com os Estados Unidos que promoveram sanções econômicas contra a Venezuela, o reconhecimento do autoproclamado Juan Guaidó e estratégias de “mudança de regime”, como a frustrada invasão da Colômbia na “batalha das pontes” de 2021.
Certezas e incertezas
Duas coisas são certas neste momento. Primeiro, que a vocação para a alternância de setores da população venezuelana, seja ela tradicionalmente antichavistas ou recentemente desfiliada, castigada por anos de guerra econômica ou familiarmente desagregadas pela migração em massa, não coincide necessariamente com os ânimos beligerantes e as estratégias de rua dos líderes mais radicalizados da oposição. Embora as eleições de julho tenham demonstrado o crescimento exponencial do voto da oposição, as mobilizações antichavistas continuam muito menores do que as de seus antagonistas, e os repetidos apelos para invadir as instituições do Estado pela força não encontraram eco em massa. Nem os votos de González anunciados pelo Conselho Nacional Eleitoral (5,3 milhões), nem os números reivindicados pelo mariacorinismo (7,4 milhões) parecem ser suficientes para provocar a tão almejada “mudança de regime”.
Em segundo lugar, é evidente que o nível nacional e o nível internacional continuam totalmente divorciados quando se trata da Venezuela. Por esta razão, apesar da mobilização de 9 de janeiro, a principal estratégia do antichavismo permanece sobretudo extraterritorial: apostar no isolamento internacional (ou pelo menos ocidental) do governo, invocando novas sanções econômicas – talvez um pouco mais “focadas” –, e sobretudo confiando-se a um Donald Trump recarregado, cuja posição, dias após assumir o seu segundo mandato à frente da Casa Branca, continua entre o silencioso e o contraditório.
Primeiro, recusou-se a receber González em Washington, enquanto um de seus senadores, Bernie Moreno, garantiu que “trabalhará com Maduro porque é ele quem vai tomar posse”, com um realismo que contrastava notavelmente com as fantasias da oposição de eventual tomada de posse em território nacional. Mas depois deste verdadeiro banho de água fria, no dia 9 de janeiro, Trump Trump se referiu em X ao ex-diplomata como “presidente eleito” da Venezuela, embora tenha rebaixado Machado ao status de mera “ativista da democracia”.
A relação entre Trump, a oposição e o governo venezuelano será uma questão fundamental e será resolvida com base em muitas variáveis: a ênfase mais doméstica prometida pelos seus porta-vozes e documentos programáticos como o Projeto 2025 da Heritage Foundation; a eventual possibilidade de “fechar” algumas das numerosas frentes internacionais abertas, como a da Ucrânia ou do Médio Oriente; a esperada retirada estratégica de Trump para o “quintal” da América Latina e do Caribe e para os seus recursos estratégicos vitais; a real capacidade de manobra que é tão hostil à região quanto o futuro secretário de Estado Marco Rubio; mas sobretudo o realismo e a capacidade de pressão de lobbies tão poderosos como a indústria petrolífera que, sem caprichos ideológicos, apostam na estabilidade dos fluxos de hidrocarbonetos, no abastecimento barato e na segurança dos negócios.
Tradução: TFG, para Desacato.info.
A opinião do/a/s autor/a/s não representa necessariamente a opinião de Desacato.info.
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