Governo Lula 3: breve balanço do primeiro biênio e perspectivas. Por Rita Coitinho.

Por Rita Coitinho.

Nestes primeiros dias de janeiro de 2025 o governo “Lula 3” entra em seu terceiro ano. Uma gestão muito diferente das duas anteriores (1º de janeiro de 2003 a 1º de janeiro de 2011, quando foi sucedido por Dilma Roussef, também do Partido dos Trabalhadores). O terceiro mandato do presidente Lula se iniciou marcado por duas questões fundamentais: 1) as tensões dos primeiros meses, quando enfrentou-se uma tentativa de golpe de Estado e 2) o imobilismo causado, dentre outros fatores, pela imensa pressão do mercado financeiro e da bancada conservadora, majoritária no Congresso Nacional. Este artigo traça um breve balanço do governo, sem pretender ser exaustivo, buscando-se avaliar esses dois anos de mandato em termos de forças sociais, capacidades dos agentes políticos e instituições. O texto está subdivido em três temas e uma breve conclusão: a tentativa de golpe de Estado e seus desdobramentos; as realizações e limites nas áreas econômica e social; política externa.

  1. Golpe e contragolpe:

O terceiro mandato de Luís Inácio Lula da Silva iniciou-se marcado pela tentativa de golpe de Estado deflagrada no dia 08 de janeiro de 2023, poucos dias após a posse do Presidente. Hoje sabemos que o plano fora concebido logo após as eleições, com a participação de altos oficiais das forças armadas, empresários e políticos influentes, incluindo-se o próprio ex-presidente, Jair Bolsonaro, entre os investigados no inquérito que ainda está em fase de análise pelo Ministério Público Federal. Até o momento já foram condenadas 256 pessoas por tentativa de golpe de Estado, depredação do patrimônio público e outros delitos. No entanto, nada até o momento teve o impacto e o simbolismo que alcançou a detenção, em 14 de dezembro de 2023, do primeiro general a ser detido desde a constituição de 1988, General Braga Netto, que ocupou cargos importantes na gestão de Bolsonaro e foi candidato a vice-presidente na chapa derrotada em 2022. O alto oficial está em prisão preventiva por ter sido provado que estaria agindo para atrapalhar as investigações acerca da tentativa de golpe. Conforme o inquérito policial, há outros generais e altos oficiais envolvidos na conspiração que visava inicialmente impedir a posse do presidente eleito e seu vice, além de assassiná-los por envenenamento. Além disso, o plano, que chegou a ser iniciado e depois foi abortado (ainda não sabemos em detalhes o porquê), tinha o objetivo de sequestrar e assassinar um dos juízes da suprema corte, notadamente o que conduz atualmente as investigações acerca do golpe de Estado, Alexandre de Morais.

Adiada para o começo de janeiro, a movimentação golpista tomou um rumo diferente dos planos iniciais. O movimento de 08 de janeiro de 2023 visava derrubar o governo recém-empossado e também prender ou assassinar o presidente, seu vice e alguns juízes da suprema corte. A movimentação, que envolveu civis, policiais e militares, previa forçar a decretação, pelo Presidente da República, de uma Operação de Manutenção da Lei e da Ordem (GLO), instituto que confere poderes ao Exército para a manutenção da ordem pública (nas GLO’s, o Exército assume também o comando da Polícia Militar do Estado da Federação onde a operação foi decretada). Com os poderes concedidos, o Exército assumiria o controle da Capital Federal e depois seria instaurado um governo golpista. Também esse plano fracassou por uma série de fatores, dentre os quais destaca-se a divisão entre os próprios generais.

Parte dos fatos apurados ainda está sob segredo de justiça. A expectativa é que ao longo de 2025 sejam reveladas as principais informações, além das evidências de envolvimento de um grande número de militares de alta patente, políticos, empresários e possivelmente de Jair Bolsonaro e sua família.

Ainda que sem acesso a muitas das provas centrais para a reconstituição dos fatos ligados ao plano de golpe de Estado, algumas conclusões importantes já vêm sendo aventadas. Em primeiro lugar, é inegável que a articulação golpista desenrolava-se dentro do Palácio do Planalto, com amplo conhecimento das principais autoridades civis e militares. Ainda, já se sabe que o plano não se consolidou porque uma parte do oficialato deixou de apoiá-lo. As informações até o momento obtidas dão conta de que o principal fator que demoveu parte dos militares é de ordem externa: não havia apoio do governo dos Estados Unidos, principal esteio de todos os movimentos golpistas ocorridos no Brasil pelo menos desde o pós-Segunda Guerra. Havia, isso sim, ampla base de apoio no setor do agronegócio, incluindo empresários das áreas de suporte, como proprietários de frotas de caminhões e redes de comerciantes atacadistas. Com o desenrolar das investigações esses “setores”, por enquanto ainda sem rosto, ganharão nome e sobrenome e é muito provável que encontremos também entre os financiadores do coup d’état grandes nomes da banca financeira.

Não é casual também que foi essa mesma a base de apoio dos processos que levaram à deposição da presidenta Dilma Roussef em 2016. Menos casual ainda é que a maioria parlamentar, responsável pela progressiva perda de controle do poder executivo nacional sobre o Orçamento da União é composta por deputados e senadores oriundos do “agro” ou que tiveram suas candidaturas financiadas pelos empresários da produção de soja e gado ou por banqueiros que sobrevivem às custas do endividamento público, cada vez mais profundo graças à manutenção da política de altas taxas de juros e déficit fiscal. Ainda menos espantoso e cada vez mais claro aos olhos de quem se esforça minimamente para enxergar a realidade é o vínculo da bancada parlamentar do agronegócio com a destruição ambiental – incluindo, além do crime ambiental propriamente dito, também as incansáveis iniciativas para destruir a legislação de proteção ao meio-ambiente e o alcance dos órgãos de controle do Estado brasileiro.

2. Economia e políticas sociais

O tema da economia e das políticas sociais, portanto, está diretamente articulado ao problema da luta entre as chamadas “forças democráticas” e a extrema-direita, principal fração política articuladora do plano do golpe de Estado. A chamada “extrema-direita” no Brasil contemporâneo aglutina apoiadores fazendo uso de bandeiras morais conservadoras. Sua base ideológica, porém, é econômica: o fundamentalismo liberal promovido pela banca financeira internacional – que tem suas raízes no nascimento do próprio capitalismo, é verdade, mas que assume essa roupagem bem delimitada, à qual denominamos neoliberalismo, a partir dos experimentos conduzidos na Inglaterra por Margareth Tatcher.

O governo desastroso conduzido por Jair Bolsonaro e pelos militares levou à divisão, nas eleições de 2022, do campo neoliberal. Parte da mídia monopolista, que apoiara ativamente a candidatura de Bolsonaro em 2018, descolou-se do bloco, bem como alguns setores do empresariado, especialmente aqueles que lucram com selos de “qualidade ambiental” ou que ainda apostam em manter parte do seu capital no setor produtivo. A aliança democrática que elegeu Lula em 2022 para um terceiro mandato abarcou, portanto, desde os tradicionais movimentos sociais e partidos de esquerda quanto essas parcelas do empresariado. A aliança vitoriosa, no entanto, foi composta por forças portadoras de projetos muito distintos entre si. A composição inicial do governo, que acomodou setores tão diferentes em seus ministérios já mostrou, nos primeiros dias, que seria uma gestão difícil, marcada por contradições internas profundas.

Para além desse fator, a aliança que venceu as eleições presidenciais em 2022 não fez a maioria no Congresso Nacional. Ao contrário: ampliaram-se os assentos de partidos conservadores, políticos neopentecostais, representantes do agronegócio, do lobby de armas e do mercado financeiro. Reeleito o presidente da Câmara, Arthur Lira, um político da base de apoio de Bolsonaro que já havia comandado um amplo esquema de sequestro do orçamento do poder executivo para as emendas parlamentares, passou os últimos dois anos mantendo o governo Lula sob chantagem. A maioria dos projetos de interesse do governo foram derrotados ou engavetados. Até mesmo a última reforma fiscal, que isentava de impostos os cidadãos com renda de até cinco mil reais e taxava super-ricos foi esvaziada pelo Congresso. O orçamento da União foi fatiado a ponto de tornar o Executivo, que pela Constituição tem a prerrogativa de organizar e utilizar os recursos para o financiamento da máquina pública e das políticas sociais, um refém do Congresso.

Ainda assim, o governo Lula conseguiu realizar a sua principal agenda de campanha: reconstituir os programas de renda mínima e retornar à situação anterior a Bolsonaro, em que o Brasil saíra do mapa da fome. Houve crescimento econômico (cerca de 3%) e os níveis de desemprego hoje estão em cerca de 6%, o que é um patamar próximo ao pleno emprego. A inflação segue, no entanto, corroendo a renda dos brasileiros e a política de salário-mínimo sofreu um revés: com um aumento anunciado muito inferior ao ano passado, o governo atende às pressões do “mercado”, leia-se: dos super-ricos que falam através da mídia monopolistas. Cresce a insatisfação dos servidores públicos, que tampouco tiveram a reconstituição de seus patamares de renda . Há mais de 10 anos sem reajustes reais, a ampla maioria dos servidores públicos federais vive um empobrecimento progressivo – com exceção de algumas poucas carreiras, como as polícias, os militares e o judiciário, este último com salários nababescos, de fazer inveja a muitos aristocratas pelo mundo – e ao longo de 2024 o governo Lula enfrentou várias greves e protestos. Quase todas foram finalizadas com acordos insatisfatórios, fator que vem corroendo o apoio dos setores médios ao governo federal.

Se, por um lado, o governo Lula de fato conseguiu cumprir com a agenda de recuperar a segurança alimentar dos mais pobres (que era a sua principal meta) em outras áreas tem enfrentado sérias críticas. Não houve avanço real nas políticas de reforma agrária, gerando queixas dos movimentos sociais que deram sustentação à chapa de Lula, como o MST. Há dificuldades reais de lidar com o problema do desmatamento, ainda que tenham sido obtidos importantes resultados no primeiro ano de mandato – mas não no segundo – e o Congresso segue em uma ofensiva para reduzir cada vez mais a proteção ambiental por meio do desmonte da legislação. Nos próximos dois anos o que se vislumbra, na área econômica e social é ainda mais desanimador: o governo comprometeu-se com metas fiscais severas, cedendo à pressão do mercado. Em razão disso, o orçamento passará por novos cortes, dificultando cada vez mais a necessária reconstrução das estruturas de Estado (na saúde, educação, cultura, meio-ambiente, previdência, assistência social e infra-estrutura) e gerando mais insatisfação, o que certamente trará dificuldades na manutenção da base de apoio popular, que foi essencial à vitória (por menos de 2% dos votos) em 2022.

3 – Política Externa

Os dois primeiros mandatados de Lula foram caracterizados por uma verdadeira virada nos rumos da política externa brasileira. As políticas implementadas nas relações exteriores entre 2003 e 2011 receberam o nome de “Política Externa Ativa e Altiva”. Ativa porque o presidente buscava assumir o protagonismo, dando maior importância à “diplomacia presidencial” e utilizando a legitimidade e o carisma do de Lula para favorecer os interesses comerciais e diplomáticos do Brasil mundo afora. E “altiva” porque era uma política externa que não se curvava aos interesses de nenhum outro país. O Brasil desafiou Washington ao criar novos espaços de concertação internacional, dando amplo apoio à ampliação do Mercosul e à criação da UNASUL, articulou novas rotas de comércio com os países árabes, africanos e asiáticos, além de utilizar amplamente as regras do sistema internacional, em especial o mecanismo de solução de controvérsias da Organização Mundial do Comércio (OMC) a seu favor e à favor dos países em desenvolvimento. Como desdobramento disso, a diplomacia de Dilma Roussef, sua sucessora, logrou consolidar vínculos com outros países importantes, como Índia, China e Rússia, numa interlocução que deu origem aos BRICS na esteira dos debates pela reforma do sistema financeiro internacional. Com Dilma vimos nascer também a CELAC, primeira articulação de toda a América Latina e Caribe sem a participação dos dois países anglófonos da América do Norte (Canadá e EUA).

Parte disso (em especial as articulações latino e sul americanas) desabou sob Temer e Bolsonaro. Com Lula 3, as expectativas de retomada eram grandes. No entanto, ressalvados alguns acertos importantes, como o posicionamento crítico e altivo em relação ao genocídio em curso na Palestina (com apoio ao processo movido pela África do Sul na Corte Internacional de Justiça contra Israel), houve pouco ou nenhum avanço no sentido de se retomar a Unasul e a Celac, além de passos muito modestos no Mercosul, além da assinatura de um acordo neocolonial entre Mercosul e União Europeia. O governo Lula 3 parece temer afastar-se do chamado “ocidente”, priorizando cada vez mais fóruns como o G-20 – a reunião das 20 maiores economias do mundo, um fórum sem impactos relevantes para as mudanças necessárias na governança mundial – e acordos ruins como este entre Mercosul e União Europeia.

Na América Latina, onde poderia jogar um papel central na rearticulação desses espaços de cooperação, Lula tem preferido assumir uma postura conflitiva em relação a tradicionais aliados, como Nicolás Maduro. Ao invés de aguardar resultados e respeitar processos internos, Lula, que quase sofreu um golpe de Estado em 2023, e teve os resultados de sua própria eleição questionados por Bolsonaro, preferiu também questionar os processos internos à Venezuela, abrindo um perigoso precedente.

Perspectivas

Com a eleição de Donald Trump nos EUA a extrema-direita ganha novo fôlego no continente americano. Os processos conduzidos contra os mentores dos planos de golpe de Estado em 2023, que terão continuidade em 2025 jogam, portanto, um papel crucial no que se pode esperar do futuro próximo. Uma anistia aos envolvidos ou a interrupção dos processos por alguma outra razão poderá dar novo fôlego à extrema direita e aos militares e policiais participantes da trama, já que agora o esperado “apoio internacional”, que não veio em 2022/23, poderá ser obtido de Trump. O governo Lula, mas principalmente os partidos de esquerda e movimentos sociais que compõem sua base precisam organizar com urgência amplas campanhas em que se debata a importância da manutenção das conquistas da Constituição de 1988, da ampliação dos programas sociais, e da manutenção do Estado democrático de Direito. É preciso esclarecer a população acerca dos efeitos nocivos de uma anistia aos golpistas – tão nocivos quanto os da anistia que foi concedida aos militares que instauraram a Ditadura que durou de 1964 a 1985.

Em 2025 o Brasil assumirá a presidência do bloco BRICS, além de receber a COP-30. São dois fóruns importantes em que o Brasil poderá jogar um papel progressivo, trazendo à tona a agenda do multilateralismo, da reforma das instituições financeiras internacionais e da governança global. A questão climática, grande tema da humanidade, pode e deve ganhar contornos programáticos também na maneira como se organiza a economia a nível global. É uma nova chance que se abre para que o governo Lula retome sua postura “ativa e altiva” na política externa.

De todo modo, a conjuntura internacional não é simples. Delineiam-se tempos de graves disputas internacionais – com EUA e China no centro e todos os parceiros comerciais destes dois gigantes enredados no conflito. Haverá intensa pressão de Washinton para um realinhamento de todo o continente latino-americano. É claro que essa pressão esbarrará também nos interesses das forças sociais internas a cada um dos países – o agronegócio brasileiro, por exemplo, ao mesmo tempo em que tem na China sua maior compradora, tem nas multinacionais dos EUA e Europa seus “patrões”, visto que delas compram suas sementes e principais insumos. Certo é que o sucesso do governo Lula 3, diante desse cenário conflitivo que se anuncia para os próximos anos poderia jogar um papel relevante na resistência de todo o continente às pressões externas e, por isso, interessa a todos os latino-americanos.

Rita Coitinho é socióloga, com doutorado em Geografia Humana. Autora do livro “Entre duas Américas: EUA ou América Latina?” (editora Insular, 2019), além de artigos e ensaios para jornais, revistas e portais de notícias. Atualmente é colunista de política internacional no portal Opera Mundi.

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