Por Jonathan Cook.
No que deveria ser uma confissão extraordinária transmitida pela televisão, John Bolton, assessor de segurança nacional do primeiro mandato do presidente eleito dos Estados Unidos, Donald Trump, admitiu à rede CNN ter ajudado a conspirar para derrubar governos estrangeiros durante seu período na Casa Branca.
Ao negar que Trump tenha tentado um golpe com a invasão do Capitólio, em 6 de janeiro de 2021, Bolton disse ao âncora Jake Tapper: “Como alguém que ajudou a planejar golpes de Estado, não aqui [em Washington], mas em outros lugares, isso dá bastante trabalho”.
Trata-se de uma admissão de que Bolton e outros oficiais da gestão americana cometeram o “supremo crime internacional”, como os julgamentos de Nuremberg, após a Segunda Guerra Mundial, caracterizaram a ação de atacar arbitrariamente uma outra nação soberana. Mas Tapper tratou o comentário como se nada fosse.
Washington pode fazer abertamente o que outros Estados não podem devido a um pressuposto excepcional de que os contornos normais da lei internacional e das regras de guerra não se aplicam à superpotência global.
O Estado norte-americano — está muito bem documentado — conduziu “mudanças de regime” em mais de 70 países desde a Segunda Guerra Mundial. Nas décadas recentes, envolveu-se direta ou indiretamente em guerras no Afeganistão, Iraque, Líbia, Síria, Iêmen e Ucrânia. O próprio Bolton se vangloriou de esforços, realizados no decorrer de 2019, para derrubar o governo de Nicolás Maduro na Venezuela, ao tentar instaurar seu favorito não-eleito, Juan Guaidó.
O Pentágono gasta mais do que os próximos nove países combinados e mantém cerca de 800 bases armadas em todo o planeta. Ainda assim, o Congresso americano se mostra inclinado em somar novas dezenas de bilhões de dólares ao orçamento militar.
Diante deste quatro, um novo documentário busca elucidar as razões pelas quais o público ocidental permanece tão dócil, embora subjugado a um estado quase permanente de guerra, com gastos cada vez maiores na indústria militar.
Mão invisível
De acordo com Theaters of War, o Departamento de Defesa dos Estados Unidos vai além de influenciar positivamente as representações hollywoodianas da guerra. Quando o assunto lhe afeta, o Pentágono exige ativamente supervisão de roteiro e dita os enredos. Na prática, trava uma guerra plena de propaganda contra o público ocidental, para amaciá-los a favor de seu militarismo global.
O documentário, baseado em dados revelados por pedidos de direito à informação, do jornalista investigativo Tom Secker e do pesquisador Matthew Alford, revela o fato chocante de que o Pentágono tem sido a mão invisível por trás de milhares de filmes e programas de televisão nas últimas décadas.
Muitos outros filmes jamais chegam às audiências porque o escritório de entretenimento do Departamento de Defesa se recusa a cooperar, ao crer que as “mensagens erradas” seriam promovidas.
As objeções do Pentágono — em geral, um beijo da morte — compreendem quaisquer sugestões de incompetência militar ou crimes de guerra, perda de controle sobre armamentos nucleares, influência das corporações de petróleo, venda ilegal de armas ou tráfico de drogas, uso de armas químicas ou biológicas, promoção de golpes no exterior ou envolvimento em assassinatos ou tortura. De fato, precisamente tudo aquilo que sabemos que o exército estadunidense fez e continua a fazer.
Mas como é que o Departamento de Defesa é capaz de exercer tamanho controle sobre produções cinematográficas? Porque os caríssimos blockbusters têm muito mais chance de resgatar o investimento e transformá-lo em lucro caso apresentem os mais novos e brilhantes brinquedos em termos de guerra. Somente o Pentágono pode fornecer porta-aviões, helicópteros, jatos combatentes, pilotos, submarinos, blindados, figurantes armados e assessores militares. Contudo, colabora apenas se estiver satisfeito com a mensagem na tela.
Como um dos acadêmicos bem observa em Theaters of War, a propaganda funciona muito melhor quando se passa por entretenimento: “Você está mais aberto a incorporar ideias porque baixou suas defesas”. Quantos espectadores de fato levariam a sério um filme precedido por ícones de patrocínio do Pentágono ou da Agência Central de Inteligência, a CIA? Precisamente por isso, contratos do Departamento de Defesa costumam especificar que seu papel no filme é “confidencial”.
E é por essa razão que pouquíssimos sabem que o Departamento de Defesa e a CIA tiveram uma contundente voz sobre o processo decisório de diversos projetos, incluindo Apollo 13, as franquias Jurassic Park e James Bond, a versão americana de Godzilla, os filmes de super-herói da Marvel, Transformers, Eu sou a lenda, Entrando numa fria, dentre muitos outros. Ou que o exército se envolve até mesmo em programas de culinária ou perguntas e respostas.
A realidade, argumenta este documentário, é que muitos dos filmes de Hollywood são pouco mais do que comerciais para a indústria de guerra dos Estados Unidos.
Vendendo a guerra
Neste verão, Hollywood lançou a tão esperada sequência de Top Gun, filme estrelado por Tom Cruise sobre um piloto de elite da Força Aérea americana que se tornou determinante, na década de 1980, para os meios de vender a guerra ao público como se fosse sexy.
Os produtores de Top Gun tiveram acesso a porta-aviões da Marinha americana, uma base naval e mesmo jatos combatentes F-14 e outros. Como observou o The Washington Post: “É improvável que o filme fosse feito sem o apoio considerável do Pentágono — um único jato F-14 custa US$38 milhões”, enquanto o orçamento da obra original não superava os US$15 milhões.
O Pentágono teve seu retorno. Seu banco de dados registra que a peça “concluiu a reabilitação da imagem do exército, devastada pela Guerra do Vietnã”. Suas escrivaninhas de recrutamento, montadas do lado de fora dos cinemas, tomaram vantagem de sua nova credibilidade.
Top Gun foi tão bem sucedido em promover o machismo beligerante que foi implicado, anos depois, no escândalo de Tailhook, em que mais de 80 mulheres a serviço do exército sofreram abuso sexual por colegas durante uma convenção em Las Vegas. De fato, o escândalo adiou a sequência, Top Gun: Maverick, em 36 anos, quando as condições do Pentágono se tornaram ainda mais rigorosas.
O novo acordo declarou explicitamente que o Departamento de Defesa poderia supervisionar o roteiro, “elaborar sobre tópicos discursivos” e até mesmo censurar cenas que não o agradassem. O exército assumiu também poder de veto sobre o elenco, além de uma exibição prévia para que Maverick fosse aprovado para lançamento. Qualquer violação dos termos, segundo o acordo daria ao Pentágono o suposto direito de deletar imagens gravações que porventura envolvessem seus produtos — isto é, de matar o filme. Poderia ainda resultar na negativa de “apoio futuro” — uma ameaça à carreira dos cineastas envolvidos.
Mas o tratamento concedido a Top Gun não é incomum, mas sim, como aponta Theaters of War, um padrão para os blockbusters americanos — isto é, os filmes com maior potencial de impacto na cultura popular e nas percepções da guerra.
A premissa de uma das franquias mais populares da história recente, Homem de Ferro, dos estúdios Marvel, foi até mesmo reescrita sob intervenção do Pentágono. O protagonista, Tony Stark, interpretado por Robert Downey Jr, originalmente se opunha, de forma eloquente, à indústria de armas, ao reinventar o império de seu pai para que sua tecnologia servisse à paz.
Após a ingerência do Pentágono, Stark muda de figura, ao se tornar um verdadeiro pregador da guerra. “Paz significa ter um bastão maior do que o outro cara”, diz o super-herói. Em uma das cenas, Stark faz piada de uma jovem repórter que critica seu império, ao então seduzi-la para retratá-la como hipócrita.
Fiasco militar
O Pentágono se tornou particularmente sensível às representações do exército americano após um fiasco militar em 1993, no qual um de seus helicópteros foi abatido em Mogadishu, na Somália. O incidente levou a extensa troca de tiros e à morte de diversos soldados americanos e centenas de somalis.
No ano seguinte, o Departamento de Defesa insistiu em revisões amplas do filmem de Harrison Ford Clear and Present Danger — em português, Perigo real e imediato —, sobretudo uma cena na qual milícias colombianas subjugam forças especiais americanas. Como mostraram documentos reunidos por Theaters of War, oficiais dos Estados Unidos temiam que os eventos de Mogadishu fariam o exército “parecer ridículo”, de modo que oficiais se recusaram a “cooperar em um filme que diz a mesma coisa”, em uma zona de combate distinta. De acordo com o Pentágono, o filme deveria ser “mais comercial para nós”.
Quando, em 2001, Hollywood voltou sua atenção ao livro Falcão negro em perigo — especificamente sobre o incidente em Mogadishu —, o Pentágono insistiu em enormes mudanças de roteiro que subverteram o drama. Apenas oito anos após os fatos representados ocorrerem, o Departamento de Defesa transformou uma história de sua própria incompetência em um conto tipicamente americano de heroísmo militar, contra todas as adversidades impostas por um inimigo selvagem — porém, sem rosto.
Subversões similares se repetiram em Argo, de 2012, um filme sobre a crise de reféns no Irã, no ano de 1979. Segundo Theaters of War, foi a CIA que sugeriu o livro a Hollywood, cinco anos antes, ao listá-lo em seu website na seção de “inspirações a enredos futuros”. A história era tão atraente à CIA por assumir como enfoque seu único sucesso após a Revolução Iraniana. Na ocasião, a agência traficou um punhado de poucos reféns para fora de Teerã, ao disfarçá-los de cinegrafistas canadenses.
Documentos censurados apresentados pelo documentário mostram ainda como o escritório de relações públicas da CIA revisou múltiplos tratamentos do roteiro adaptado de Argo antes de celebrá-lo: “A agência sairá muito bem”.
Isso se deve ao que Argo ignora: a ingerência de longa data da agência no Irã, incluindo a deposição de seu governo eleito em 1953 para instaurar uma marionete, o que culminou, em último caso, na Revolução de 1979; as falhas de inteligência da CIA que não viram a resolução se aproximar; e o fato de que os seis reféns resgatados encobriram os outros 52 que passaram mais de um ano encarcerados em Teerã — uma história de crimes e incompetência convertida em redenção.
A CIA gerenciou um golpe similar de relações públicas naquele mesmo ano, com Zero Dark Thirty, a Hora mais escura, após a administração de Barack Obama perder a batalha para esconder sua rotina de tortura no Iraque e em outros países. Os cineastas não tiveram alternativa senão reconhecer que a CIA recorreu às técnicas de afogamento como tortura, conhecidas como waterboarding. Sob pressão, contudo, os cineastas não tiveram alternativa senão omitir outros métodos, como o uso de cachorros nas sessões de tortura.
Ainda assim, o afogamento foi representado, de forma facciosa, como uma ferramenta vital aos esforços da CIA para extrair informações para supostamente manter a segurança de cidadão americanos e ajudar a caçar Osama bin Laden — o arquiteto por trás dos atentados terroristas de 11 de setembro de 2001. Tamanha distorção do registro histórico levou até mesmo o político conservador John McCain, condecorado “herói de guerra”, a vir a público para criticar o filme.
Vitrine de produtos
O Pentágono tem tamanha influência sobre Hollywood que conseguiu até mesmo subverter a mensagem antiguerra no coração do clássico japonês Godzilla. Na década de 1950, Godzilla era uma clara alegoria dos horrores dos bombardeios atômicos americanos contra Hiroshima e Nagasaki, no fim da Segunda Guerra Mundial. A versão de 2014, contudo, teve ingerência do Pentágono, ao ponto de remover alusões a Hiroshima e Nagasaki e introduzir, em seu lugar, a Guerra Fria, ao retratar um submarino russo, há muito perdido, como catalisador do confronto com Godzilla.
Como se não bastasse, ambas as versões de 2014 e 2019 viraram a história do avesso. Armas nucleares se tornaram a salvação da humanidade, em vez de ameaça, ou a única maneira de derrotar Godzilla. A proliferação nuclear promovida pelo Pentágono já não seria um problema, mas sim integral à sobrevivência humana.
Theaters of War também argumenta que o Departamento de Defesa foi um catalisador importante aos avanços de Hollywood aos gêneros de ficção científica e fantasia. Mundos imaginários como o universo Marvel, por exemplo, são um exemplo nítido, ao ostentar a demanda pelos brinquedos do Pentágono contra inimigos implacáveis alheios a este mundo. É nesta equação que Hollywood e o Pentágono são capazes de varrer para debaixo do tapete questões reais, como o valor da vida humana, as motivações comerciais por trás dos conflitos e as falhas dos estrategistas militares.
O desafio imposto por inimigos super-humanos com poderes extraordinários se provou o meio perfeito para normalizar gastos militares crescentes e extravagantes.
Essas são as razões pelas quais o Pentágono tem voz sobre a representação de seus produtos nos filmes de Hollywood, como o Hulk pilotando um jato combatente F-22, no filme de 2003; o Super-Homem voando ao lado de um F-35 em Homem de Ferro; e a glorificação do blindado Ripsaw no oitavo filme da franquia Velozes e Furiosos.
Pagando os dividendos
Theaters of War conclui que a promoção do militarismo americano paga seus dividendos, ao refletir em aumento no orçamento do Pentágono e suas empreiteiras, assim como prestígio, menos monitoramento e escrutínio, maior lucro e gastos exorbitantes crescentes em guerras inúteis.
Donald Baruch, assessor especial do Pentágono para audiovisual, notou que o governo dos Estados Unidos “não pode comprar o tipo de publicidade que os filmes nos proporcionam”. Ao reabilitar a imagem do exército americano, Hollywood encoraja não apenas o público ocidental, mas o próprio Pentágono a acreditar em seu potencial. Hollywood, assim, torna o exército mais confiante e menos crítico sobre suas vulnerabilidades, e mais afoito em ir à guerra, sob o menor dos pretextos.
Com o selo de aprovação de Hollywood, o Pentágono decide quem são os mocinhos e quem são os vilões. Em Top Gun: Maverick, o vilão é um Irã irreconhecível, que supostamente tenta desenvolver uma bomba nuclear. Rússia, China e árabes genéricos e estereotipados são outros vilões costumeiros.
A constante desumanização de suposto inimigos e o desdém por suas apreensões facilitam ao Pentágono sancionar Estados ou sociedades vulneráveis ou justificar suas guerras, cujo resultado é a morte certa e o deslocamento em massa.
Essa cultura belicista é parte da razão pela qual não há debate público sobre os perigos de transferir bilhões de dólares em armas à Ucrânia, para travar uma guerra por procuração contra a Rússia, mesmo às custas de uma deflagração nuclear. Como nota Theaters of War, a influência de bastidores do Pentágono sobre a cultura popular, potencialmente, tem um papel decisivo em angariar apoio a ações polarizantes, como a invasão dos Estados Unidos ao Iraque em 2003. De fato, faz a diferença entre aprovação ou rejeição popular.
Quão diferentes seriam as coisas se Hollywood não cedesse à influência do Pentágono se ilustra por um estudo de caso. The Day After — ou O Dia Seguinte — é um longa-metragem de 1983 sobre a Guerra Fria, lançado diretamente na televisão por conta das objeções do Departamento de Defesa. O Pentágono rejeitou o roteiro, ao retratar disparos nucleares trocados por Rússia e Estados Unidos após uma série de desentendimentos. Segundo Theaters of War, o Pentágono exigiu que Moscou fosse unicamente responsável por começar a guerra na ficção. Estranhamente, os realizadores, desta vez, foram firmes.
O Dia Seguinte foi assistido por quase metade da população americana. O então presidente, Ronald Reagan, registrou em seu diário que o filme o deixou “profundamente deprimido”. A obra criou um espaço para discussões abertas sobre uma política de desarmamento atômico. Um único filme que escapou do maniqueísmo do Pentágono gerou um debate muito mais amplo, ao ponto de ser creditado por postergar avanços nucleares de ambas as potências militares. Para o filme, ambos os povos — russos e americanos — enfrentariam a mesma ameaça existencial.
Um filme que, ao menos naquele instante, tornou o mundo um pouco mais seguro.
Theaters of War deixa ao público uma pergunta: O que seria o mundo se o Pentágono não tivesse interferido em mais de três mil filmes e programas de televisão para promover, incansavelmente, suas mensagens pró-guerra?
Publicado originalmente em Middle East Eye