Um país condenado à estagnação pela dívida pública. Por Flávio Lucius Contador

Com base em dados oficiais do Bacen, o estoque da Dívida Bruta do Governo Geral, em outubro de 2024, cresceu quase 7 vezes em relação ao estoque de 2006

Flávio Lucius Contador.

Não faltam ao Brasil recursos para financiar seu desenvolvimento econômico sustentável. O que falta é uma distribuição justa deles, pois sua maior parte se destina ao mercado financeiro especulativo. Este último retira recursos produtivos da economia para a especulação estéril no mercado financeiro, ao alimentar bilionários com a segunda maior taxa de juros reais do mundo, através da Selic, que os torna campeões da concentração de renda no País e os verdadeiros donos do PIB.

De fato, quando se analisa a série histórica da receita federal (taxas e tributos), pode-se observar que entre 2022 e 2023 houve um aumento anual corrente de R$ 2,218 trilhões para um recorde histórico de R$ 2,318 trilhões. Portanto, um crescimento de cerca de R$ 100 bilhões. Essa tendência não se arrefeceu neste ano. Ao contrário. Entre janeiro e outubro de 2024, comparado ao mesmo período de 2023, o aumento chegou a R$ 274 bilhões, passando de R$ 1,908 trilhão para R$ 2,182 trilhões. Até o fim do ano, certamente ultrapassará o nível do ano passado, como se vê no gráfico.

A receita tributária não é a única fonte de recursos para o Tesouro Nacional. Há quatro outras principais, listadas abaixo. São elas:

Data Fonte de Recursos Valor Corrente e Percentual
Out/24 Operação Compromissada R$ 1,566 trilhão ou 13,6% do PIB
Out/24 Depósitos Voluntários Remunerados R$ 187 bilhões ou 1,6% do PIB
Out/24 Conta Única do Tesouro R$ 1,437 trilhão ou 12,5% do PIB
Out/24 Reserva Internacional US$ 366 bilhões (dólar – R$ 6,04) ou

R$ 2,210 trilhões ou 19,33% do PIB

TOTAL   R$ 5,410 trilhões.

Embora nem todas essas fontes possam ser consideradas recursos para livre aplicação do Governo federal, pelo menos uma delas, a Conta Única do Tesouro/Banco Central, que recebe todas as sobras da execução orçamentária dos entes públicos, poderia ser destinada a políticas públicas. É que, diferentemente das operações compromissadas, dos depósitos voluntários dos bancos no Bacen e das reservas internacionais, que são ativos e passivos ao mesmo tempo, ela constitui efetivamente recursos livres do Tesouro.

Qual é a razão pela qual tantos recursos acumulados no Tesouro Nacional – a Receita Tributária e a Conta Única, no total de R$ 3,619 trilhões -, não são usados para aplicação em políticas públicas de interesse do povo? O motivo é simples: parte desses recursos são destinados a garantir o pagamento em dia do serviço da Dívida Pública ou, para usar a linguagem do “mercado”, para lhe dar sustentabilidade. Esta é uma exigência do “mercado”, perfeitamente atendida pelo “arcabouço fiscal” que estabelece as metas orçamentárias anuais.

Assim, não obstante o aumento sustentável da receita e o acúmulo de recursos livres na Conta Única do Tesouro, todos os anos, de forma recorrente, quando se aproxima o momento de discussão do orçamento total da União – ou mesmo antes disso, para enquadrar o orçamento corrente nas metas fiscais -, do Poder Executivo e Legislativo tem de entrar em longas e tortuosas discussões para fazer cortes no orçamento primário para assegurar a “sustentabilidade” da dívida. É aqui que se decidem as relações reais do Estado com o povo, pois os cortes afetam diretamente os interesses da população.

Para se entenderem essas relações, é preciso, inicialmente, distinguir orçamento financeiro de orçamento primário. O primeiro, que consiste nas despesas federais anuais com juros, correção monetária e amortização da dívida pública, é obrigatório e não tem limites. Seu valor é apenas estimado pelo Congresso no ano anterior ao da execução do orçamento, mas o pagamento do que é apurado concretamente nele no fim do ano seguinte é sagrado. Já o orçamento primário estabelece o valor dos investimentos e das despesas do Governo, constitucionalmente obrigatórias ou não, e podem estar sujeitos a cortes – exceto, em princípio, as despesas obrigatórias previstas na Constituição (não discricionárias).

O orçamento global estimado para o próximo ano é de R$ 5,699 trilhões. Parte dele corresponde ao serviço da Dívida Pública Federal de R$ 2,528 trilhões, ou 44,35% dele. Já o estoque da Dívida Pública Geral do Governo, onde se incluem as dívidas dos demais entes federativos – estados e municípios –, deve chegar ainda este ano a R$ 9,032 trilhões.

As despesas não obrigatórias são uma parte menor do orçamento que corresponde ao programa do governo proposto à sociedade, nas eleições, pelo candidato a presidente. São essas despesas que formam o orçamento primário, a ser proposto pelo Executivo e aprovado pelo Congresso. No caso concreto, o presidente Lula enviou sua proposta nos últimos dias para discussão no Congresso. E é justamente aí que se trava um combate político acirrado, porque Lula não tem maioria parlamentar para garantir a aprovação da parte do orçamento de sua iniciativa.

Portanto, tem que negociar. E a maioria do Congresso, em geral, dominado pelos lobistas do grande capital especulativo, se alinha aos interesses do “mercado” em detrimento dos “sociais”. O Presidente está obstinado a equilibrar o orçamento primário ou a limitar seu déficit, no máximo, a 0,25% do PIB, para pagar os serviços da Dívida Pública, conforme previsto no chamado “arcabouço fiscal”. Como não tem controle sobre o orçamento financeiro, que depende diretamente do estoque da dívida pública e dos juros, da correção monetária e da amortização que incidem sobre ele, tem que apelar para cortes no orçamento primário, onde se encontra o Estado social. Assim, para atender aos interesses dos especuladores, o Governo sacrifica as pessoas mais vulneráveis da sociedade.

O Presidente poderia propor um déficit maior, para favorecer o crescimento da economia a partir de incentivos à produção de bens e serviços na sociedade com juros baixos, a fim de evitar a migração do capital para a especulação com os juros altíssimos da Selic. Contudo, como não há coordenação entre Tesouro e Banco Central, que insiste em manter ou até mesmo elevar a Selic, a produção não acompanharia a demanda, e poderia surgir inflação. Além disso, a resistência principal a uma política desenvolvimentista desse tipo viria da própria maioria do Congresso: dominado por conservadores, ele se oporia a uma política de efetiva redução dos juros para favorecer o setor produtivo, o que contrariaria os interesses das oligarquias financeiras que a controlam.

O parâmetro de negociação no Congresso é o chamado “orçamento fiscal”. Nele se estabelecem as metas fiscais para o ano, ou seja, o balanço entre receitas (ou capacidade de pagamento do Estado) e as despesas do orçamento primário. O “arcabouço” proposto pelo Executivo busca um equilíbrio entre ambas, com uma tolerância de 0,25% do PIB para mais ou para menos. Quando esse equilíbrio é ameaçado por uma proposta de despesa maior do que receita, os cortes do orçamento primário entram em cena.

São esses cortes que viabilizam o equilíbrio global do orçamento, porque, como observado acima, o orçamento financeiro é intocável. Na proposta enviada há poucos dias ao Congresso pelo Executivo os principais cortes nas políticas sociais são a alteração na política de reajuste do salário-mínimo, do abono salarial e alteração no cadastro de recebimento do BPC. Sem considerar a contrarreforma administrativa infraconstitucional, a desobrigação da admissão de servidores públicos pelo RJU estatutário, a admissão futura pela CLT ou trabalho temporário, a extensão da Desvinculação das Receitas da União (DRU).

Essa desvinculação é um mecanismo que permite ao governo federal usar livremente 20% de todos os tributos federais vinculados por lei a fundos ou despesas com contribuições sociais que respondem por cerca de 90% do montante desvinculado. Note-se que os cortes totais no orçamento primário, em 2025 e 2026, no montante de R$ 70 bilhões, correspondem aproximadamente ao custo da parte da dívida pública indexada no mesmo período à Selic – a base da taxa de juros brasileira, segunda maior do mundo em termos reais!

Quando se mergulha fundo na análise das contas financeiras nacionais, verifica- se, portanto, que o propósito fundamental do “arcabouço fiscal” é garantir a sustentabilidade da dívida pública, a fim de tranquilizar os especuladores financeiros de que o País não lhes dará um calote. Em outubro deste ano, a Dívida Pública Federal, quando se exclui a carteira do Bacen (R$ 2,480 trilhões), chega a R$ 7,698 trilhões, com um custo anual da dívida pública federal – 11,17%. Os juros computados e pagos são de R$ 860 bilhões.

Cerca de metade da Dívida Pública Federal é indexada pela Selic, a taxa de juros básica fixada pelo Banco Central. Para cada ponto percentual de aumento da Selic, a pretexto de controlar a inflação, o estoque da Dívida Bruta do Governo Geral, segundo os dados do BACEN, a cada ponto percentual, a dívida pública aumenta cerca de R$ 55 bilhões. É para acomodar esse e outros aumentos de despesas financeiras no “arcabouço fiscal” que o “mercado impõe” cortes draconianos no orçamento primário, já que não se pode reduzir o serviço da dívida. Ao contrário, o serviço da dívida é justamente o que o “mercado” ganha especulativamente.

Agora veja-se a trajetória do estoque a longo prazo da dívida pública brasileira. Pesquisando os dados das Estatísticas Fiscais, verifica-se que o estoque da Dívida Bruta do Governo Geral, entre 2007 (R$ 1,334 trilhão) e outubro de 2024 (9,032 trilhões), cresceu cerca de R$ 7,698 trilhões. No mesmo período, os pagamentos efetuados por conta do Serviço dessa dívida (juros e amortização) foram cerca de R$ 20,580 trilhões. Desse total, cerca de R$ 16,673 trilhões foram pagamentos que teriam sido de amortizações. É estranho como um país amortiza mais de R$ 16 trilhões de dívida pública, ou seja, abate grande parte do principal dela, e o estoque ainda cresce R$ 7,698 trilhões!

Em resumo, com base em dados oficiais do Bacen, o estoque da Dívida Bruta do Governo Geral, em outubro de 2024, cresceu quase 7 vezes em relação ao estoque de 2006. Para os especuladores e o capital financeiro rentista, um grande negócio da China; para o Brasil, um saco sem fundo de carga financeira!

Já o estoque da Dívida Pública Federal, segundo os dados oficiais do Relatório Mensal da Dívida Pública, cresceu, entre 2006 e outubro de 2024 – portanto, em 226 meses -, cerca de R$ 5,837 trilhões (ver gráfico abaixo). Isso, quando se exclui a carteira de dívida mobiliária no Bacen no valor de R$ 2,480 trilhões. Quando se inclui essa carteira – que é o correto, pois ela está garantida por títulos federais -, o estoque efetivo da Dívida Pública Federal em outubro de 2024 deveria ser de R$ 9,553 trilhões – maior que o estoque da Dívida Bruta Geral dos Governos, de R$ 9,032 trilhões.

A conclusão que se pode tirar desses números e dessas considerações é que o País, não obstante o grande volume de receitas tributárias arrecadadas e do que tem disponível na Conta Única do Tesouro, não pode aplicá-los em seu desenvolvimento em razão dos imensos custos da dívida pública, que devem ser pagos inexoravelmente, em alguns casos, até diariamente. Mesmo quando há sobra de capacidade de gasto, como é o caso da Conta Única, isso não acontece, pois ela deve ser mantida como uma espécie de vitrina da capacidade futura, a fim de dar tranquilidade aos especuladores.

Enquanto isso, na medida do avanço do domínio conservador sobre o Congresso, o orçamento financeiro que representa o serviço da Dívida Pública continuará esmagando o primário, sem outra reação do Governo a não ser propagar como extraordinária uma taxa de crescimento do PIB da ordem de 2%/3%, a menor entre os principais países do BRICS. E tudo isso sem perspectiva de mudança a curto ou médio prazos, já que não existe expediente, na atual institucionalidade fiscal, para alterar essa situação que tenderá a piorar com os desastres climáticos extremos – como veremos em artigo próximo.

 

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