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Há poucos dias, o Brasil sediou a Cúpula do G20 que foi precedida pelo evento do G20 Social, o qual na ocasião reuniu, segundo o ministro Márcio Macedo, na cerimônia de encerramento, 47 mil pessoas de diferentes países e segmentos da sociedade civil. A proposta central foi trazer à discussão desafios atuais e apresentar soluções para um futuro mais inclusivo, justo e sustentável com foco nos seguintes pontos: Combate à fome, pobreza e desigualdades; Sustentabilidade, mudança do clima e transição justa; Direitos Humanos; Economia e trabalho; e Reforma da Governança global. Do G20 Social, saiu uma carta de encaminhamentos para ser considerada e incluída no documento final da Cúpula dos Líderes do G20.
O governo brasileiro tem figurado em acordos importantes na agenda global e climática, como a liderança da discussão sobre a transição energética. Isso se dá devido à sua capacidade de articulação e desenvoltura em transitar entre as Partes – países integrantes da Conferência do Clima.
Portanto, é necessário refletir como ainda é um desafio a efetividade de ações e iniciativas locais para a salvaguarda dos ecossistemas de povos e comunidades tradicionais a partir da destinação de orçamento e recursos, uma explanação feita durante a atividade autogestionada proposta pelo Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) com o tema: “Vidas Entrelaçadas, Fios de Esperança: porque cada pessoa conta”, para a qual a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Quilombolas (Conaq) foi convidada.
Propomos, a seguir, uma reflexão sobre a situação dos territórios quilombolas no cenário do protagonismo do Brasil na agenda climática e de governança global. Como isso impacta a garantia de direitos constitucionais?
Embora a população quilombola tenha assegurado na Constituição Federal de 1988 o direito à propriedade de seus territórios, 36 anos depois, apenas 12% das pessoas autodeclaradas quilombolas, conforme o Censo 2022, se encontram em território oficialmente reconhecido pelo Estado brasileiro. Temos um total de 494 territórios quilombolas titulados, mas ainda assim não há segurança jurídica, pois 98% desses estão sob pressão ambiental, é o que revela o levantamento, da Conaq em parceria com o Instituto Socioambiental (ISA), publicado neste ano de 2024.
Enquanto isso, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), responsável pela implementação da política fundiária quilombola, acumula uma fila de mais de 1.800 pedidos de titulação, muitos protocolados há 21 anos, em 2003. Ao analisar o tempo médio gasto pelo INCRA para concluir um processo de titulação, a Terra de Direitos aponta que seriam necessários 2.708 anos para zerar a fila atual. A morosidade progressiva em assegurar o direito aos territórios fere os princípios da dignidade humana da população quilombola e compromete a governança territorial, ampliando a degradação ambiental para áreas tradicionalmente conservadas pelas comunidades.
Nisso, o Racismo estrutural é determinante para o ritmo e o orçamento necessários à execução das políticas públicas quilombolas. Enquanto a titulação não chega, a violência os alcança, sempre com anuência do Estado. Ele mesmo através de seus aparatos ou terceiros, financiados por ele. Haja vista que os licenciamentos ambientais, em sua maioria, desconsideram a importância e abrangência dos territórios e dos povos que os habitam.
No modelo econômico adotado pelo Brasil a partir do “desenvolvimento do campo” e da “janela de exploração minerária”, os territórios quilombolas são entregues nas letras miúdas dos contratos. Perdem-se os rios, as matas, a segurança alimentar, as práticas culturais, a paz, o bem-viver e, muitas vezes, o direito de existir.
Em meio a tudo isso, os territórios quilombolas, embora sejam responsáveis pela conservação ambiental dos biomas onde estão inseridos, também compõem os grupos sociais desproporcionalmente afetados pelos efeitos das mudanças climáticas, dadas as condições geográficas e de ausências a eles impostas. Atingidos drasticamente por mais uma variante do Racismo, o Racismo Ambiental.
Dessa forma, esses mesmos territórios são destinados às zonas de sacrifícios para a execução da transição da matriz enérgica. Segundo a Gestora Ambiental Andressa Dutra (2023): “pode-se afirmar que o racismo é uma tecnologia de poder que vai operar o controle social, a dominação e a atuação do Estado […]. Esse mecanismo é quem vai organizar o racismo ambiental que passa a operar no sentido de definir para quais corpos estão destinados os impactos ambientais negativos”.
Quando o Brasil se coloca à disposição para somar na transição energética a partir da produção de energias limpas: eólicas e solar, por exemplo, os territórios quilombolas, especialmente do Nordeste do país são barganhados para dar lugar às torres eólicas e estações fotovoltaicas. Isso se dá pela invisibilização desses territórios, pois, à luz do ordenamento jurídico brasileiro, a ausência de documentos de demarcação e titulação que comprovem a propriedade da terra anula a posse centenária de tais territórios, logo podem ser entendidos como vazios demográficos. Porque todo grileiro que avança sobre os territórios tradicionais alega desconhecer o direito à propriedade dos que ali já estão.
Enquanto isso, outros territórios, em condições semelhantes, são ameaçados por diversos empreendimentos. Com destaque para a mineração, pois, pelo menos cinco dos minerais críticos necessários para a fabricação de baterias de longa duração e mesmo para garantia do funcionamento das eólicas, são encontrados em abundância no subsolo brasileiro: lítio, grafite, elementos de terras raras, cobre, níquel e cobalto.
Isso coloca o país com mais uma vantagem econômica nesse cenário. Para tanto, o Ministério de Minas e Energia elaborou um “Guia para o Investidor Estrangeiro em Minerais Críticos para a Transição Energética no Brasil”. O documento salienta que: “o Brasil se destaca como um atrativo terreno para investimentos estrangeiros nesse contexto. Para ajudar o país a aproveitar a janela de oportunidade aberta para o setor mineral pela transição energética e impulsionar as iniciativas de atração de investimentos […]. O Guia oferece uma visão geral das características demográficas e territoriais brasileiras, bem como aspectos econômicos como PIB, taxas de juro, câmbio, reservas internacionais e investimentos”.
A crítica consiste no fato de que internamente o Brasil não tem alinhado entre os aparelhos do Estado a importância e necessidade de Consulta Livre, Prévia e Informadas, conforme a Convenção 169 da OIT, nem tampouco definidas as áreas de interesse ancestral, onde se encontram os povos e comunidades tradicionais. Subtende-se que a política de proteção dos territórios quilombolas compete somente ao INCRA, uma autarquia estrategicamente sucateada. Sem orçamento não há mobilidade, nem execução de políticas públicas.
De acordo com o levantamento da Conaq e do ISA, mencionado acima, existem mais de 1.380 requerimentos minerários para exploração em áreas quilombolas oficialmente delimitadas, ou seja, “52,8% dos Territórios Quilombolas (261) são afetados por 1.385 requerimentos”, mais de cinco requerimentos por território. Os licenciamentos para fins de extração mineral são gerenciados pela Agência Nacional de Mineração (ANM) que, em tese, não entra em conflito de interesses com o INCRA, pois este atua na superfície e a ANM no subsolo. O que se tem visto é que os processos tramitam sob os territórios quilombolas sem considerar a Consulta Livre Prévia e Informada, haja vista que o subsolo não é de propriedade dos quilombos. Mas, como restringir os impactos ao subsolo sem danos à superfície?
Apesar de garantida a demarcação e titulação, os territórios são alvos frequentes de empreendimentos que alteram a dinâmica de toda a sociobiodiversidade e dificultam ainda mais o processo de adaptação e mitigação amplamente difundido na agenda climática. Como mensurar os desafios enfrentados pelos territórios que não estão oficialmente delimitados e que abrigam mais de 87% da população quilombola?
A invisibilidade estatística e a morosidade no processo de titulação são ações fundamentais para a consolidação do racismo, o que a assistente social, Historiadora e articuladora política da Conaq, Selma Dealdina (2023), chama de crime perfeito. Segundo ela, “pode-se dizer que o racismo é um crime perfeito uma vez que ele se molda aos contextos históricos e sociais, seja por meio do racismo estrutural, ou pelo racismo ambiental, institucional e econômico. O racismo cria várias formas de atuar e dentro de suas diversas facetas vai vestindo a roupa que lhe é conveniente”.
Durante o G20 Social o Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação lançou a pesquisa: Vozes silenciadas energias renováveis: a cobertura da mídia sobre a transição energética no Brasil (2024). A pesquisa analisou 566 conteúdos publicados em três grandes veículos de circulação nacional, uma agência de jornalismo pública e seis veículos locais. E o que se pode entender, a partir desses dados, é que a grande mídia, assim como o Estado brasileiro e o capital verde, se vale de um discurso esvaziado e salvacionista para ser favorável ao modelo de transição europeu que tem sido imposto a essas bandas do Sul Global.
Ainda de acordo com a pesquisa, das 1.001 fontes ouvidas, apenas 1,4% são das comunidades diretamente afetadas pelos megaempreendimentos eólicos e fotovoltaicos. Somadas, as fontes do poder executivo e das empresas das energias renováveis são cerca de 60% das vozes escutadas. O silenciamento das populações locais reflete a força das relações de poder coloniais ainda existentes no imaginário da população e podem reforçar os discursos que legitimam verdadeiras zonas de sacrifício de povos que estão majoritariamente atravessados pelas desigualdades estruturais do Brasil, de gênero, raça e classe.
A situação de violência a que os territórios quilombolas são submetidos para fins da estruturação econômica do Brasil e, mais recente, para subsidiar o protagonismo do Brasil na agenda climática revela como a seletividade das prioridades são influenciadas por questões raciais, de classe e geográficas. Porque o país próspero para investidores estrangeiros não pode garantir recursos e orçamentos necessários para uma política fundiária que promova reparação, inclusão e segurança territorial de uma parcela da população que, desde o princípio, nunca foi reconhecida como cidadã o suficiente para ter direito à propriedade.
A regularização fundiária no Brasil é indispensável e urgente para garantir justiça socioambiental, transição energética inclusiva e justa, adaptação, mitigação e, sobretudo, para subsidiar o discurso do Estado brasileiro em efetivamente contribuir para com a agenda climática e de governança global. Mas, o que tudo isso tem a ver com o G20 Social? Importa saber que os quilombos estão às margens dos protagonismos a que o Brasil se propõe.
Maryellen Crisóstomo é quilombola do território Baião no Sudeste do Tocantins, mestranda em Letras (UFT), Jornalista e ativista de Direitos Humanos e Ambientais Quilombolas, Coordenadora da Coeqto, membra do Coletivo de Mulheres Quilombolas da Conaq, do Intervozes e do Conselho Diretor do Greenpeace Brasil.
Nataly Queiroz é jornalista, doutora em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco, integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social e coordenou a equipe de pesquisa do Vozes Silenciadas Energias Renováveis: a cobertura da mídia sobre transição energética no Brasil.
Alfredo Portugal é educador e comunicador popular, jornalista, pesquisador, doutorando em Educação pela Universidade Federal da Bahia, integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social e coordenou a equipe de pesquisa do Vozes Silenciadas Energias Renováveis: a cobertura da mídia sobre transição energética no Brasil.