Por Fábio Bacila Sahd.
Nos anos 1980, na obra “Os assassinos da memória”, o historiador francês Pierre Vidal-Naquet¹ travou o devido combate às teses revisionistas, que tentaram negar o genocídio cometido pelos nazistas. O intelectual, de família judaica, então desconstruiu as falácias de vários expoentes do negacionismo, em especial, Robert Faurisson, que afirmava que o exército alemão teria dado “ordens bem draconianas para que nenhum soldado alemão participasse desses excessos contra a população civil, inclusive contra os judeus”. Para o falsário, a Wehrmacht e a SS seriam “menos temíveis para os civis não combatentes do que para muitos outros exércitos”. A partir dessa premissa, afirma Naquet, torna-se possível “explicar e justificar qualquer coisa”.
O negacionista propunha, por exemplo, que a imposição da estrela judaica obrigatória seria uma medida militar, resultado das preocupações de Hitler com a segurança dos soldados alemães, já que muitos judeus seriam suspeitos de praticar “a espionagem, o tráfico de armas, o terrorismo e o mercado negro”. Logo, os nazistas “tinham bons motivos para desconfiar”. Inclusive, Faurisson justifica a violência contra crianças, pois relatórios e memórias de judeus seriam “mais do que suficientes” para demonstrar que desde pequenos seriam subversivos, envolvendo-se em “todas as formas de atividades ilícitas ou de resistência”.
Quem acompanha o caso palestino-israelense a partir de uma perspectiva minimamente crítica já percebe de imediato semelhanças retóricas entre os revisionistas de ontem e os negacionistas de hoje, no caso, membros dos governos israelenses e suas correias de transmissão, como a Confederação Israelita do Brasil (CONIB), a ONG Stand With Us e o Instituto Brasil Israel. Para esses grupos, tal qual a SS e a Wehrmacht de Faurisson, as “Forças de Defesa de Israel” (cuja própria nomenclatura denuncia o odor negacionista) teriam protocolos rígidos de ação para assegurar a proteção dos civis palestinos, o que está resumido no bordão propagandístico de que se trata do “exército mais moral do mundo”, premissa esta que igualmente serve para “explicar e justificar qualquer coisa”. Naquet nos lembra que os negacionistas defendem suas teorias esdrúxulas, mas “como os fatos depõem contra eles”, a argumentação se resume a “exprimir, no tom moral mais elevado possível, seu próprio desprezo por todas as provas que falem contra ele”, indo na contramão da realidade.
São inúmeros os paralelos possíveis entre os revisionistas/negacionistas do holocausto e os do apartheid e do genocídio na Palestina. Para Naquet há um compartilhamento de princípios extremamente simples entre os primeiros, que podemos extrapolar para os atores do segundo caso. Destaca-se:
A) A negação do genocídio como invenção;
B) A relativização da “solução final” (considerada uma simples expulsão para o Leste europeu ou “repatriamento”);
C) A diminuição drástica do número de vítimas;
D) A atribuição de outras causas para as mortes (aviação aliada ou “vítimas de represálias infelizes, mas de acordo com o direito internacional”);
E) A afirmação de que boa parte ou quase todas as mortes foram de “subversivos” ou “soldados”;
F) O argumento de que Alemanha não foi a principal responsável pela guerra e nem o maior inimigo do gênero humano, mas sim a URSS.
São gritantes as semelhanças com o caso palestino: no início do discurso sionista, diziam que não havia palestinos, mas imigrantes recentes de outras regiões árabes, para as quais deveriam ser “transferidos” e repatriados (o que justificou a Nakba, de 1948). Atualmente, afirmam que quase todas as mortes são de terroristas, o governo do Hamas adultera e inflaciona os números, os próprios terroristas executam ou utilizam escudos humanos (quando são as forças israelenses que o fazem²) e as mortes seriam mero “efeito colateral”. A causalidade está invertida. Embora a colonização seja um fato óbvio, sob a ótica sionista as ações da resistência palestina não são anticoloniais, mas “terroristas” (como em outros colonialismos de povoamento, os sionistas reivindicam a natividade no território, escamoteando sua origem colonial). Tampouco existe um regime de apartheid responsável pela violência e pela desestabilização da paz e das relações amistosas entre os povos. Na fantasia sionista há uma democracia liberal que se defende legal e legitimamente, em vez de um regime racista que recorreu a medidas extremas para manter a dominação e opressão racial sistemáticas sobre os palestinos. Nas palavras do diretor do Museu do Holocausto em Israel, proferidas ainda no início do genocídio em Gaza, tratava-se do “direito legítimo de defesa do país”, que resultou “em mortes acidentais de civis palestinos em Gaza”, sendo isso um “estímulo negativo que leva milhares a gritar ‘Palestina Livre’”³.
Enquanto o negacionista de plantão repetia esse batido bordão, centenas de intelectuais e especialistas já alertavam para o risco de genocídio, assim como relatores especiais da ONU?. Mesmo com relatórios já publicados e o processo contra Israel por genocídio em andamento na Corte Internacional de Justiça, a Federação Israelita do Rio Grande do Sul publicou uma nota de repúdio contra um evento universitário por “alegações infundadas de que Israel estaria cometendo genocídio”. Para a entidade seria uma “acusação falaciosa”, que objetivaria “subverter os fatos” e “banalizar o que ocorreu com o povo judeu durante o regime nazista”. A guerra de Israel seria “contra o grupo terrorista Hamas e não contra o povo palestino”?. Diante da publicação na revista da FIOCRUZ de matéria sobre o genocídio em Gaza, que inclusive está estampada na capa, a CONIB se valeu de retórica negacionista semelhante, acusando a entidade vinculada ao Ministério da Saúde de estar instrumentalizada para “a propagação do antissemitismo”?.
Voltemos à arguição faurissoniana de que as ações de Himmler na “retaguarda do front” foram direcionadas aos insurgentes do gueto, afinal, guerrearam por quatro semanas e destruíram 700 bunkers. Assim como os judeus outrora, os palestinos são considerados suspeitos congênitos de “espionagem, tráfico de armas, terrorismo e mercado negro”. Logo, também os israelenses teriam “bons motivos para desconfiar” deles, inclusive das crianças, havendo suficientes evidências de que já seriam iniciadas na subversão e em “todos os tipos de atividades ilícitas ou de resistência”. A consequência mais ilustrativa decorrente dessa lógica é a estampa de uma camiseta utilizada por militares israelenses, que mostra uma mulher palestina grávida, com uma mira apontada para sua barriga, acompanhada do texto “um tiro, duas mortes”?. Além disso, há o canto de torcida futebolística do time israelense Maccabi Tel Aviv que, jogando na Holanda, em 2024, entoava: “Não há mais escolas em Gaza porque não há mais crianças em Gaza”?.
Tal como com Faurisson, não importam as pilhas e pilhas de relatórios, outros documentos e testemunhos, mas apenas o que for útil para a defesa ideológica inegociável do regime. A semelhança entre os argumentos e o método dos revisionistas/negacionistas é tamanha que estes parecem ter seguido uma cartilha dos primeiros, fundamentada em técnicas como o hiperdimensionamento e a distorção das ações de resistência, ao mesmo tempo em que omitem a opressão sistemática que as explica. Há também “a mentira pura e simples, o falso, o apelo a uma documentação completamente fantástica” (como os falsos testemunhos, dos supostos vídeos de túneis, de militantes e de armas em hospitais de Gaza). Agregamos ainda a exceção tomada como regra, enquanto se invalidam todo e qualquer testemunho direto como mentira ou imaginação, assim como documentos, ignorando-os ou os tachando de falsos, manipulados ou apenas boatos. “Enfim e principalmente, tudo o que pode tornar conveniente e crível essa história terrível, marcar sua evolução, fornecer termos de comparação política é ignorado ou falsificado”.
A estrela de Davi para fins securitários, a afirmação de que ciganos ou judeus foram concentrados não por motivos políticos, mas devido a “nomadismo e de delinquência potencial”, correspondem às políticas israelenses para Gaza. Seu isolamento e bloqueio “profiláticos” não seria para punir e matar, mas para coibir certo terrorismo congênito. O que dizer das listas de produtos impedidos de entrar no território, que incluem tomate, chocolate, caderno entre outros produtos de altíssima periculosidade? O resultado é negar não somente as mortes, mas também a destruição sistemática de sua infraestrutura desde 2007, impossibilitando a reconstrução e o trânsito de sujeitos, incluindo aqueles com doenças graves, como câncer, em busca de tratamento indisponível no território.
Outra medida oriunda da suposta preocupação comum com a segurança dos militares é a diretriz do exército de Israel de “dedo leve no gatilho”, que permite há anos aos militares atuantes em Gaza disparar contra qualquer coisa, sem que tenham que responder a processos judiciais, vigorando uma difundida impunidade por mortes intencionais ou no mínimo evitáveis?. Isso revela a realidade análoga de “banalidade do mal” em Gaza, como evidenciado em vários relatos, tanto de incitações ao genocídio quanto de disparos gratuitos, como o de um blindado contra um edifício laranja situado há quilômetros de distância, simplesmente porque a cor irritava os olhos de um militar israelense¹?. Quantos prédios e crianças judias também não devem ter irritado os olhos nazistas? No limite, já que a opressão e o racismo estrutural dos regimes estão escamoteados das narrativas negacionistas, tudo é justificado.
Naquet remete ao “método paranoico hipercrítico” sugerido por Salvador Dali, ou o esforço absurdo para demonstrar que fatos nunca ocorreram. Ele então questiona: “O que significa esse método histórico? É, em nossa sociedade de encenação e espetáculo, uma tentativa de extermínio no papel, que substitui o extermínio real”, explicando e justificando qualquer coisa. Assim que, revisionistas e sionistas, em seu negacionismo compartilhado da realidade, omitem o racismo estrutural como causa primeira da violência e justificam as ações opressivas de seus regimes de afinidade a partir de temores securitários, descontextualizando ações de resistência. Novamente, a semelhança é tamanha que até Faurisson utiliza a arma ideológica do “terrorismo” para justificar as ações “securitárias” nazistas, sendo esse suposto impulso destrutivo irracional e absoluto a única causa explicativa possível. Isso deixou os israelenses tão “estupefatos” quanto ficaram os nazistas diante do levante no gueto de Varsóvia, ao menos tal como Faurisson o narra. Os “fortins” fabricados por judeus surpreenderam tanto quanto o armamento da guerrilha palestina, com ambos os regimes “reprimindo” suas insurreições e “transferindo” os sobreviventes, uns para campos outros para “zonas seguras”. Leiamos novamente, mas com atenção redobrada: “limpei os grandes guetos […] combatemos na rua por quatro semanas […] demolimos mais ou menos setecentos bunkers”. De uma perspectiva crítica, trata-se de Gaza ou do gueto de Varsóvia? Difícil discernir, mas quando Luiz Inácio Lula da Silva fez os devidos paralelos foi visceralmente combatido¹¹, não por acaso pela instituição cujo mesmo diretor, logo nas primeiras semanas, já proferiu discursos negacionistas¹².
A questão central é: os negacionistas distorcem e invertem a causalidade da violência, responsabilizando os oprimidos por sua deflagração, na contramão da premissa básica da teoria dos direitos humanos, segundo a qual a violência é inevitável em contextos de negação sistemática de direitos. Tanto porque é inseparável das ações e da lógica do opressor quanto porque se apresenta como último recurso disponível aos oprimidos, o que não impede que cometam abusos ou crimes de guerra, como apontado em alguns relatórios para o 7 de outubro de 2023.
Frantz Omar Fanon já apontava que a violência é crônica em contextos coloniais, surgindo primeiramente da própria presença e das ações dos colonizadores, mas também se expressando na contraviolência dos colonizados. Observando a realidade palestino-israelense à luz dessa perspectiva, há décadas milhares de relatórios do sistema ONU e de uma infinidade de organizações locais, regionais e internacionais apontam para uma plêiade de violações dos direitos humanos e humanitários (leis de guerra)¹³. Mais recentemente, inclusive em entendimento da Corte Internacional de Justiça, interpretou-se que em seu conjunto essas ações resultam no crime e regime de apartheid, estabelecido já com a fundação de Israel como Estado racializado como judeu, em 1948.
Vale destacar que em “Os assassinos da memória” o próprio Naquet critica o abuso retórico do holocausto pelo sionismo para justificar seus crimes: “Cabe aos historiadores arrancarem os fatos históricos das mãos dos ideólogos que os exploram. No caso do genocídio dos judeus, é evidente que uma das ideologias judias, o sionismo, explora o grande massacre de forma por vezes escandalosa”. Inclusive, o próprio Naquet já fala em “sociedade de apartheid”, interpretação esta popularizada somente no novo milênio e que já está juridicamente pacificada. É evidente que se há um regime de apartheid, há também resistência. No entanto, para os negacionistas de hoje, assim como para os de ontem, tudo se resume a uma questão de segurança e de legítima defesa, como se regimes racistas pudessem se perpetuar em vez de constituírem aberrações do direito internacional, o que inclusive torna a resistência armada legalizada.
Em sua época, Naquet cumpriu seu papel histórico de desconstruir os revisionistas do holocausto e já teceu duras críticas àqueles que, de maneira indireta, poderiam colaborar com seus esforços, no caso os sionistas. Nosso foco, enquanto intelectualidade contemporânea, deve ser dar o devido e semelhante combate aos negacionistas que tentam legitimar a trajetória sionista de violações e negações simultâneas. Não se trata aqui somente de disputa pelo sentido do passado, “revisado” para negar os crimes de outrora, mas de uma prática permanente de negação e justificativa de atrocidades que seguem seu curso inabalável e que, inclusive, resultaram no crime de genocídio na Faixa de Gaza. Esse é o teor do processo aberto pela África do Sul contra Israel e subscrito por dezenas de outros países, inclusive o Brasil, e o que aponta Francesca Albanese, em dois documentos publicados ainda em 2024, na qualidade de relatora especial designada pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU para os Territórios Palestinos Ocupados. Mas, assim como no caso de Faurisson, contra todas as evidências acumuladas ao longo de décadas, trata-se de defesa, de danos colaterais, de uso de escudo humano pelo Hamas, de manipulação propagandística forjando cadáveres etc.
Não há debate possível com negacionistas
Vale aprofundar o entendimento e o encaminhamento proposto por Naquet: não há debate possível com negacionistas. Responder a eles é “dar crédito a ideia de que existe efetivamente um debate e fazer publicidade”. Não há duas escolas interpretativas, uma “exterminacionista” e outra “negacionista” ou “revisionista”. Os últimos não partem do princípio da realidade e não estão abertos a abandonar suas premissas ideológicas, apenas buscam argumentos para justifica-las, o que inviabiliza qualquer debate real. Assim, “responder como, se a discussão é impossível?”, questiona Naquet. Eles buscam “destruir, não a verdade, que é indestrutível, mas a tomada de consciência da verdade” e suas assertivas podem reivindicar cientificismo e criticidade para se tornarem mais convincentes, como o atual embuste de responsabilizar individualmente Netanyahu pelo ocorrido em Gaza, como se não fosse uma política de Estado de décadas e de expressão ou ato limite de um regime de apartheid, que remonta a 1948.
Conforme Naquet, não cabe dar visibilidade a propagandas, a posições não científicas, mas estritamente ideológicas. Logo, não se deve debater diretamente com negacionistas, o que inclui universidades não garantirem espaço para suas intervenções, insistindo em premissas equivocadas (“ouvir o outro lado”, o “contraditório”). Fazer isso é expor pessoas que desconhecem os termos mínimos do debate ao negacionismo de fatos óbvios. Não se trata aqui de novidade, mas de tomada de consciência, afinal, provavelmente em nenhum momento a lógica do “contraditório” foi reivindicada em debates sobre a ditadura no Brasil ou sobre o nazismo, condicionando sua realização à presença de um saudosista da “revolução” ou de um nazista”. Isso falaria mais sobre a ignorância dos proponentes do que sobre o tema em si.
O postulado das duas escolas, ‘exterminacionista’” e “revisionista”, é uma criação absurda dos últimos, uma mera tentativa de “simplesmente substituir a verdade insuportável pela mentira tranquilizadora”. Ou seja, para Naquet é o próprio “método revisionista” que desqualifica os negacionistas como interlocutores legítimos de qualquer debate acadêmico. “Nós não nos colocamos no terreno de nosso inimigo. Não o ‘discutimos’; desmontamos os mecanismos de suas mentiras e falsidades”. O intelectual franco-judeu relembra da “máxima, simples e forte: ‘É responsabilidade dos intelectuais dizer a verdade e revelar as mentiras’”, se insurgir contra o intento dos “assassinos da memória” de “atingir uma comunidade nas mil fibras ainda dolorosas que a ligam a seu próprio passado” de a privar ideologicamente de sua memória histórica. Vale uma citação mais longa de Naquet:
Quero deixar claro de uma vez por todas que não estou respondendo aos acusadores e que não manterei qualquer diálogo com eles em qualquer plano. Um diálogo entre dois homens, mesmo adversários, supõe um terreno comum, um respeito comum, no caso, pela verdade. Com os revisionistas esse campo não existe […] Estabeleci uma regra para mim: podemos e devemos discutir sobre os ‘revisionistas’; podemos analisar seus textos como fazemos a anatomia de uma mentira […] mas não discutir com os ‘revisionistas’ […] não tenho o que lhes responder e não responderei. Esse é o preço da coerência intelectual.
A resposta de Naquet ao assalto revisionista permanece mais atual do que nunca, afinal seguimos “sendo obrigados, de certa forma, a provar o que aconteceu. Nós que, desde 1945, sabemos, temos de ser demonstrativos, eloquentes, temos de empregar as armas da retórica”. Cabe apenas substituir 1945 por 1948, pois a mesma lógica é válida para o muitíssimo bem documentado caso palestino-israelense.
Mas no campo da disputa retórica negacionista de nada valem as toneladas de relatórios produzidos por organizações variadas, dos relatores especiais anteriores a Albanese, passando por inúmeras ONGs, inclusive israelenses, até o órgão monitor da Convenção de Erradicação da Discriminação Racial, que em 2012 censurou Israel por também violar o artigo referente à segregação e ao apartheid. Sequer a acusação de genocídio em Gaza é nova, remontando a um livro de 2012 (“Sionismo, modernidade e barbárie”) e a uma decisão do Tribunal Russel, de 2014. Mas, tal como seus pares de outrora, os negacionistas atuais, ignorando essa massa documental continuam a argumentar com base em premissas ideológicas ou no “inexistencialismo”. Contam com adeptos intransigentes e apoiadores incautos, tentando se amparar na reivindicação de “liberdade de palavra e expressão” e na denúncia de campanhas supostamente “venenosas de boatos, intimidações, calúnias e violências” que alegam sofrer. Representando os algozes, o poder dominante, tentam assumir o papel das vítimas.
Para que essa inversão obscena possa ocorrer, a principal estratégia é a banalização da acusação de antissemitismo, originalmente, um estratagema perverso de racialização utilizado por nacionalismos europeus para desnacionalizar ou estrangeirizar cidadãos judeus de diferentes países. De fenômeno e catástrofe histórica lamentável foi descontextualizado ou transcendentalizado para tudo explicar e justificar, adquirindo uma condição a-histórica de “doença da civilização ocidental” (espécie de fórmula universalmente válida e abrangente), sendo o antissionismo supostamente uma de suas expressões. O argumento utilizado para defender essa ideia pelo diretor do Museu do Holocausto de Israel (que deveria ter um compromisso real com a memória e a história) é a afirmação de um sobrevivente de holocausto, Elie Wiesel, enquanto silencia completamente a memória de outro, Hajo Meyer, pois este compara sua vivência em Auschwitz justamente com o que vivem os palestinos¹?. Inclusive, Meyer organizou um manifesto com outros sobreviventes e descendentes, publicado em nome da Rede Internacional Judaica Antissionista, ainda em 2014, afirmando que papel de quem reivindica a memória do holocausto não reproduzir acriticamente os ditames que provêm de Israel, mas brandir corajosamente a consigna de que o “nunca mais” é “nunca mais para ninguém”.
É o próprio Naquet quem afirma: “de repente, o genocídio dos judeus deixa de ser uma realidade histórica vivida de maneira existencial para tornar-se um instrumento banal de legitimação política […] entre os efeitos perversos dessa instrumentalização do genocídio, há a confusão constante e sabiamente mantida entre o ódio dos nazistas e dos árabes?”, com sua “manipulação permanente” atendendo a “objetivos muito pragmáticos”, que o priva o genocídio de “densidade histórica”, tornando-se irreal, o que “consequentemente, traz a mais temível e eficaz das colaborações à loucura e à mentira revisionistas”. Assim, o sionismo “insiste até o absoluto no específico” do holocausto, instrumentalizando-o cotidianamente para justificar a política israelense, em vez de “reintegrar o grande massacre nas correntes da história universal”, inclusive aproximando-o do caso palestino e o entendendo como possibilidade inerente da modernidade, como Zygmunt Bauman demonstra juntamente com teóricos da Escola de Frankfurt.
Em seu texto de 1975, “Israel-Palestina: a fronteira invisível”, quando visitou a região, o intelectual francês já apontou criticamente a faceta negacionista do sionismo, mais especificamente a rejeição da dimensão histórica de Israel, que eternizava a presença judaica ali enquanto negava a palestina e poderia se desdobrar em uma catástrofe.
Devemos reconhecer que, no âmbito estritamente político o “antissemitismo transcendental” é um recurso retórico muito eficaz. A regra nesse campo não é a objetividade, mas o convencimento, sendo a mentira um subterfúgio recorrente, ainda que sua sistematização como arma política seja estratégia fascista por excelência. De todo modo, o negacionismo não pode se constituir em uma “escola” interpretativa digna de um debate acadêmico, pois não se compromete com o real, mas com a eficácia discursiva. No caso em questão, cabe notar que, o negacionismo está já nas origens do sionismo, enquanto movimento que falava publicamente em “terra sem povo para um povo sem terra”, mas internamente debatia a presença palestina como uma “questão oculta”. A saída hegemônica que se impôs foi a limpeza étnica, como efetivamente ocorreu em 1948, e novamente em 2024, equivalendo a genocídio. Eis uma das expressões possíveis do “inexistencialismo”, “a negação, a taxação de realidades sociais, culturais, políticas acreditadas como bem estabelecidas como inexistentes, escamoteando a dominação, opressão, submissão, ou seja, a própria história e a realidade. Tal jogo deixa de “ser inocente quando se questiona essa ou aquela expressão específica da humanidade, um determinado momento doloroso de sua história”.
Dito tudo isto, a questão que resta é: Por que extratos da academia brasileira, felizmente tornados minoritários pelo genocídio em curso, que tão justa e facilmente aderiram às críticas de Naquet aos assassinos da memória, ainda ignoram o negacionismo sionista e insistem em promover “debates”? São cúmplices, ideólogos ou sujeitos extremamente ignorantes fora de suas áreas de concentração, o que é comum?
Independentemente da resposta, o apelo é para que toda a crítica e os encaminhamentos derivados que constam em “Os assassinos da memória”, que fundamentam o necessário boicote acadêmico, sejam estendidos a todos os revisionistas/negacionistas, que insistem em falsas polêmicas ou “escolas” e na obrigação de “ouvir a contraparte”, pois também da parte sionista não há qualquer compromisso com a realidade. Se as universidades boicotaram o apartheid sul-africano por que não devem fazê-lo com a versão israelense, que finalmente foi reconhecida como tal no processo de 2024 da Corte Internacional de Justiça?
* Fábio Bacila Sahd é doutor pelo programa interdisciplinar “Humanidades, direitos e outras legitimidades” da Universidade de São Paulo (USP), mestre em história pela Universidade Estadual de Maringá (UEM), professor adjunto no Departamento de História da UFPR e secretário de Direitos Humanos e Solidariedade da FEPAL.
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1. A obra utilizada foi: VIDAL-NAQUET, Pierre. Os assassinos da memória: um Eichmann de papel e outros ensaios sobre o revisionismo. Campinas: Papirus, 1988. Os vários trechos que são citação direta estão entre aspas, tendo sido retirados das páginas: 110; 9-11; 13-14; 16; 21; 26-29; 33-36; 37-40; 43-45; 67-69; 105; 110; 115; 146-147; .
6. https://www.aljazeera.com/news/2024/11/8/israeli-football-fans-clash-with-protesters-in-amsterdam.
7. A ONG israelense Breaking the Silence traz um apanhado de testemunhos de militares, que praticaram ou testemunharam violações: https://www.breakingthesilence.org.il/wp-content/uploads/2011/02/Operation_Cast_Lead_Gaza_2009_Eng.pdf
8. Eis trecho contido também em um relatório também da Breaking the Silence: https://www.breakingthesilence.org.il/pdf/ProtectiveEdge.pdf.
9. https://www.institutobrasilisrael.org/2023/10/30/mundo-insone/.
10. Para um resumo dessa relatoria vide: https://repositorio.usp.br/item/002902534. Para um resumo dos relatórios sobre a denúncia de apartheid: https://www.editorafi.org/ebook/b28-apartheid-palestina-israel.
11. https://operamundi.uol.com.br/politica-e-economia/morto-nesta-semana-judeu-deportado-para-auschwitz-disse-que-se-identificava-com-juventude-palestina/. Meyer escreveu o livro “Judaism: An ethical tradition betrayed”, que inicia comparando nazismo e sionismo.
Fábio Bacila Sahd é doutor pelo programa interdisciplinar “Humanidades, direitos e outras legitimidades” da Universidade de São Paulo (USP), mestre em história pela Universidade Estadual de Maringá (UEM), professor adjunto no Departamento de História da UFPR e secretário de Direitos Humanos e Solidariedade da FEPAL.
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