Uma das principais características do modo de produção capitalista, que ajuda a entender, por exemplo, sua continuidade ao longo do tempo, é a capacidade antropofágica de engolir e mastigar uma determinada pauta crítica – originalmente direcionada contra ele mesmo –, e depois digeri-la para integrá-la às suas fileiras.
Em outras palavras, uma certa reivindicação, contrária ao sistema vigente, é lançada. A princípio, é combatida pelo sistema. Caso continue a existir, tal reivindicação será “domesticada” e apropriada pelo capitalismo (evidentemente, essa manobra será mais bem-sucedida quanto menos percebida for).
Como a história nos mostra, a segunda metade do século passado foi marcada pelo surgimento de importantes movimentos pelos direitos das minorias sociais – como negros, homossexuais e mulheres –, sendo alguns, como os Panteras Negras nos Estados Unidos, de orientação nitidamente marxista, considerados “radicais” pelos donos do poder.
Diante desse cenário, a solução antropofágica encontrada pelo grande capital foi engolir, mastigar e digerir as demandas das minorias sociais, convertendo-as no que hoje conhecemos como identitarismo. O que antes eram movimentos de libertação coletiva, anticapitalistas e focados em questões materiais, se transformou em movimentos por ascensão individual de alguns privilegiados das minorias. As melhorias nas condições de vida da coletividade foram substituídas pela presença de poucos negros, mulheres ou homossexuais em espaço de poder, a tal “representatividade”.
Desde então, todo movimento que se reivindica como representante de uma minoria – pelo menos no mainstream– é cooptado pelo capitalismo. E, o que é pior, quem critica essa manobra corre o sério risco de ser tachado como misógino, homofóbico ou até mesmo racista. Guardadas as devidas proporções, no plano discursivo, é a mesma apropriação que o Estado de Israel fez sobre as causas relacionadas aos judeus.
Já nesses tempos de capitalismo flexível, a investida antropofágica da vez é sobre uma das pautas históricas mais importantes da classe trabalhadora: a redução da jornada de trabalho. Não se trata de algo relativamente simples, como foi substituir a agenda de classe pela agenda da identidade. Assim, a estratégia tem sido “atacar” o mesmo problema presente nas reivindicações do proletariado: a escala 6×1 (seis dias de trabalho para um de descanso).
Para essa tarefa, eis que surgem nomes como a “organização sem fins lucrativos” 4 day week Global e a think-tank Autonomy. Basicamente, o objetivo de ambas é substituir a semana de trabalho de cinco para quatro dias semanais (em nosso caso, no Brasil, seis para quatro dias). O fato de 4 day week Global e Autonomy estarem sediadas em países imperialistas e, além disso, serem bastante celebradas pelo mundo corporativo e grandes grupos de comunicação já seria o suficiente para ascender o sinal de alerta.
Como dizem os ditos populares, “quando a esmola é grande, o santo desconfia”; “de boas intenções, o inferno está cheio”. De uma hora para outra, os capitalistas, finalmente, se conscientizaram sobre a necessidade de proporcionar melhor qualidade de vida aos empregados? Na história do capitalismo, todo ganho dos trabalhadores não foi por piedade dos patrões; mas por muita luta. Não é agora que isso vai mudar.
Segundo o economista português Pedro Gomes, a proposta da semana de quatro dias de trabalho não é para tornar as pessoas mais felizes; mas salvar o capitalismo. Na prática, significa a flexibilização da jornada. Parafraseando uma música dos anos 90, não é pelo trabalhador; é cilada!
Conforme frisou, em artigo recente, o presidente do Partido da Causa Operária (PCO), Rui Costa Pimenta, as grandes empresas têm demandas irregulares e são obrigadas a contratar um número de trabalhadores superior ao que necessitam no dia a dia, para fazer frente à oscilação da demanda. Com a semana 4×3 poderiam aumentar a intensidade do trabalho em períodos “normais” e fazer horas-extras nos períodos de demanda aquecida, reduzindo assim, não aumentando, o número de trabalhadores.
Também, é previsível que, com a semana 4×3, os salários cairão e as horas extras, determinadas pela necessidade patronal, vão tomar o lugar do salário perdido. Consequentemente, a semana 4×3 daria lugar a uma infinidade de situações nos locais de trabalho, levando a uma completa desestruturação da situação dos trabalhadores.
No Brasil, o principal movimento engajado na semana 4×3 é o VAT – Vida Além do Trabalho. Diferentemente de seus congêneres estrangeiros, o VAT é liderado por um indivíduo da classe trabalhadora, o atualmente vereador pelo Psol no Rio de Janeiro, Rick Azevedo. Ou seja, por aqui a manobra antropofágica é mais completa.
Uma breve análise sobre o VAT nos revela o mesmo histórico do modus operandi das revoluções coloridas impulsionadas pelo grande capital mundo afora nos últimos anos. Movimento que cresceu rápido e “espontaneamente” pela internet, convocação de mobilizações sem bandeiras e camisetas de partido e recomendações para que todos vistam preto, e não o tradicional vermelho da esquerda.
Como não poderia deixar de ser, em entrevistas para veículos da grande imprensa e em suas redes sociais, Rick Azevedo tem direcionado duras críticas ao PT, inclusive acusando o partido de ser “neoliberal” (a mesma crítica, supostamente à esquerda, que se fazia ao governo Dilma Rousseff no contexto do golpe de 2016). Do mesmo modo, não deixa de ser curioso um movimento pela redução da jornada de trabalho que não dialoga com os sindicatos, representantes históricos do proletariado.
Qualquer semelhança com uma certa jornada, realizada no mês de junho de 2013, não é mera coincidência. Já vimos esse filme e não gostamos do final. Lembrando Marx, “a história se repete, a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”.
Também é importante nos questionarmos sobre o porquê de Rick Azevedo ter tanto espaço e ser representado de forma tão positiva em veículos como Revista Exame, GloboNews e Folha de São Paulo. A imprensa hegemônica jamais promoveria alguém contrário às suas posições.
Por outro lado, seguindo a cartilha antropofágica do capitalismo, quem minimamente questione o atual movimento hegemônico pelo fim da escala 6×1 já tem sido taxado de ser antitrabalhador e atuar em favor dos interesses dos patrões. Mas as evidências mostram o contrário: este movimento que é patronal.
Somos contra o capitalismo, trabalhamos para derrubá-lo. Porém, um ponto temos que admitir: as técnicas de antropografia desse sistema estão cada vez mais sofisticadas. Conseguiram (pelo menos por enquanto) capturar até as causas mais caras à classe trabalhadora. Maquiavel ficaria perplexo.
Francisco Fernandes Ladeira é Doutor em Geografia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Licenciado em Geografia pela Universidade Presidente Antônio Carlos (Unipac). Especialista em Ciências Humanas: Brasil, Estado e Sociedade pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Mestre em Geografia pela Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ).
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