“Não basta essa esquerda “legal”, que discute gênero e raça. Ainda importa contar ao eleitor por que um cidadão ganha R$ 100 mil enquanto outro R$ 100, por que há pessoas tão diferentemente aparelhadas para a competição social, para além das diferenças de gênero e raça. Se não perceber isso logo, a esquerda deixará este pobre na direita. O identitarismo ecoa na classe média e na elite, não no pobre, jogado na lata de lixo pelo preconceito racial e agora vítima de racismo cultural” (Jessé de Souza, recentemente).
Gosto, leio e respeito Jessé. Mas me é permitido discordar e dizer o quanto eu creio que, nesse ponto, ele está equivocado? Então, vamos lá. Reivindico a “Esquerda Ilegal”. E o que seria isso do tal “racismo cultural”? Quem é o proprietário intelectual de ficar a todo tempo querendo interpretar o que quer, pensa, sente, exige o tal pobre brasileiro? Quem garante que O Pobre, nem é que não saiba (como alguns supõem), mas que, pelo contrário, sabem muito mais do que imaginamos, mas já não concorda com essa análise meramente intelectual? Porque não o escutar diretamente, sem a vanguarda intermediária? Culpá-lo é mais fácil? É só pelo bolso? E não conta o avesso da pele? Gênero e raça não contam, nessa conta da tal competição social mencionada por Jessé? Por que ficar alimentando uma falsa oposição entre uma coisa e outra? Por que insistirmos em colocar chifres em cabeça de cavalo? Se a questão for uterina, vamos, então, ao útero dessa questão?
Atenção! Homem branco privilegiado de esquerda (eu, Flavio) busca intelectual de esquerda para debater publicamente sobre o Identitarismo na política brasileira. Claro que Jessé nunca saberá quem eu sou. Quem sou eu? Um Zé Ninguém. Mas aceito debater com “qualquer um”.
Avisando, já de início, que o meu objetivo é demonstrar que a cruzada anti-identitarismo esconde uma profunda hipocrisia, daquelas que a pessoa (na maioria bem intencionada) quase nem sente: está incomodado, no fundo, com a ameaça de perda do seu próprio privilégio. Privilégio que se revela ou se esconde, debaixo de várias máscaras.
“Mas Jessé nunca foi privilegiado”, dirás. Eu direi: e tu, que sabes do racismo secular, estrutural, brasileiro? Eu sei pouco, pois nunca me atingiu. E o importante é admitir, nem que seja somente um bom primeiro passo. Mas eu quero, sim, saber mais do racismo. Inclusive (e principalmente, eu diria), do racismo que eu mesmo trago em mim. Pra mim, isso começa aí.
E não admito, desta forma, revitimizar, quem já está mais que prejudicado em toda esta situação: o movimento negro, trans e feminista. Era só o que faltava agora… Jogar a culpa em quem (mais) está sendo exterminado.
Em resumo, somente pretendo argumentar, tranquilamente.. Prefiro isso a sair rotulando como identitárias e divisionistas as pessoas (mais) ameaçadas pelo fascismo, machismo e racismo. Injustamente as que estão tentando transformar no bode expiatório da nova velha esquerda. Nessas eleições parece até que isso virou moda.
Minha opinião, enfim, é que todas as pautas que se chamam equivocadamente (graças a uma construção narrativa de intelectuais de direita norte-americanos) de “identitárias” são pautas legítimas e compatíveis com a luta de classes. É que não é o sequestro “moral” das pautas pelo novo fascismo brasileiro que vai me fazer calar-lhes, essas “pautas”. Quem nem creio que são somente pautas, pois estão no cerne de problemas e desigualdades fundamentais.
E que, não por mera coincidência, pode ser (exatamente!) este debate que ressignifique um marco histórico e conceitual de eliminar os principais ranços de esquerda que nos impedem de avançar no campo democrático e popular no Brasil: a não renovação das caras e das ideias, o institucionalismo conformista, o medo disfarçado de acomodação (ou vice-versa), a angústia não exteriorizada diante da possibilidade de perda de poder e privilégios, o supremacismo intelectualista, o não reconhecimento da linguagem como um espaço prioritário do avanço transformador, a equivocada análise de conjuntura que fabrica unicórnios positivistas para exterminar a indignação mobilizadora, etc.
Sejamos francos e olhemos ao nosso redor, por favor. Quais são as caras e as cores? Qual é o gênero? Quem está mais à frente? Quem está nos bastidores? Quem não é visto não pode ser lembrado, cantava Mano Brown. Quem são os que dão as caras e as cartas, comandando as lives, os youtubes, os parlamentos (no nosso caso, os de esquerda) na sua imensa maioria?
Quando vamos atentar para o fato de que, ainda assim, dois dos mais importantes fenômenos de renovada expressão na mídia alternativa (fugindo da cara de homens brancos, como eu), com o mais crescente número de seguidores foram uma Drag Queen marxista chamada Rita e um preto da periferia da periferia chamado Jones?
Assim, defendo:
-Que estas expressões históricas de velhas opressões que GRITAM, não cabem mais ser submetidas a segunda ou terceira categoria, empurradas para depois que a revolução chegar. Pois é aí onde pode estar a tal revolução. E não é novidade nenhuma, pra quem sabe da história do partido dos Panteras Negras (comunistas antirracistas) ou de que as principais revoltas populares na revolução russa começaram pelas mulheres. Ou sobre quantas vezes a história calou quem poderia ter sido protagonista, mas foi colocada lá pra trás.
-Que não há que temer-se por “ingênuas, compradas ou enganadas”, as que conhecem suas próprias dores. Pois só quem calça o sapato sabe onde ele mais aperta. E que não é questão de ser mais ou menos intelectualizada. Pois é ela quem vivencia o seu próprio sentimento, a ser sempre respeitado, pelo menos. Não há falsa oposição entre sentimento e intelectualidade. São compatíveis. Como muita coisa na vida (política), podem se complementar.
Dito isso, o problema seriam dois: a velha Generalização (origem de muitos preconceitos).
E daí a desonestidade de expulsar em rito sumário, de jogar pra fora da bolha (ou diretamente nos braços das hordas fascistas ou no limbo de excomungados de esquerda), tudo aquilo que diz o que não nos agrada, sem respeito à escuta ativa. O seu contrário é a hipocrisia: o fingir-se escutar.
A cegueira (o pior cego é aquele que não quer ver) de não encarar os verdadeiros problemas, com medo da palavra Autocrítica (aquela, “a velha e chata”, lembram?): o inferno são sempre Os Outros.
Somos nós, pessoas brancas, privilegiadas, que temos que alçar nossa voz contra esse absurdo.
Melhor tratarmos entre nós, essa tal “esquerda”, que pelo menos nos respeitamos (sim? Não?).
Melhor isso, do que achar que qualquer pessoa que respeitosamente discorda passou automaticamente pro outro lado: fascista. Melhor isso que depender dessa postura do atestado ideológico que outorga o selinho de “marxista verificado”.
Concluo, reafirmando o meu desafio para um debate sério e respeitoso, como, aliás devem ser todos.
Pois o racismo (colorismos incluídos) não é problema somente dos negros (embora há que se agradecer e respeitar-se muito à construção histórica do conceito de lugar de fala). O povo negro já está cansado de ser questionado sobre isso. Cabe a nós nos cansarmos e nos incomodarmos um pouquinho mais. E a violência machista deve ser tratada principalmente por nós, homens brancos. E privilegiados, insistindo nisso.
Marx? Claro que sim. Sempre.
Mas não foi ele mesmo que disse que, no seu tempo, não daria conta de tudo?
O que você teme por revisionismo, pode ser exatamente a reafirmação revolucionária que o nosso povo, principalmente o mais oprimido, tanto necessita. É preciso acreditar e confiar no nosso povo.
Não existe nada mais revolucionário e antifascista que uma mulher negra, trans, provocando o(s) verdadeiro(s) movimento(s) feminista(s) a ir cada vez mais na sua própria raiz.
Viva Lélia Gonzales e Abdias Nascimento.
Aquele abraço.
Flavio Carvalho.
Interessados nessa proposta de debater, em público, entrar em contato direto pelo meu Instagram: @1flaviocarvalho. Ou pelo meu e-mail: [email protected]
@1flaviocarvalho, sociólogo e escritor. @amaconaima. Barcelona, 14/10/2024.
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