Anatomia de uma derrota. Por Luis Felipe Miguel.

Imagem: Foto de Ricardo Nunes (MDB Nacional/WikimediaCommons); Foto de Boulos (Bruno Spada/Câmara dos Deputados/WikimediaCommons).

Por Luis Felipe Miguel.

Não é possível pintar com meias tintas o fracasso da esquerda no primeiro turno das eleições municipais. Com menos votos do que há quatro anos, conquistando poucos mandatos, minguando nos grandes centros, PT e PSOL foram grandes derrotados. Para quem quiser uma análise detalhada dos números, recomendo o excelente artigo de Mauro Lopes.

Enquanto isso, a extrema direita obteve vitórias importantes nas cidades grandes e os partidos da direita oportunista tradicional, conhecidos como “Centrão”, avançaram pelo país afora – impulsionados também pelo sequestro do orçamento público, na forma das emendas parlamentares. Mas o discurso de seus candidatos, convém lembrar, muitas vezes está alinhado a temas e abordagens similares aos do bolsonarismo.

Em São Paulo, Guilherme Boulos começou a campanha como favorito, mas foi emparedado pelo uso da máquina municipal e estadual em favor de Ricardo Nunes e depois sofreu com a campanha de agressões, mentiras e difamações colocada em marcha por Pablo Marçal.

No meio deste processo, o candidato se mostrou incapaz de fugir do enquadramento definido para ele por seus marqueteiros. O Boulos “paz e amor”, que fazia coraçãozinho ao lado da golpista redimida Marta Suplicy, parecia destemperado ao reagir aos golpes de Marçal. Com isso, permitiu o crescimento de Tabata Amaral, que sem ter sido jamais filiada ao falecido PSDB, é o último broto do tucanato, encarnando com perfeição o velho discurso gerencial e o “equilíbrio” desapaixonado. Essa incapacidade de reagir ao coach e simultaneamente desinflar a candidatura da deputada da Fundação Lemann quase custou a Boulos a chegada ao segundo turno.

Nem Marta, que mantém prestígio nas periferias paulistanas, nem o presidente Lula se mostraram capazes da transferência de votos que Boulos esperava. A “suavização” da imagem e a “moderação” do discurso, o receituário padrão aplicado para nomes da esquerda, apenas apagaram a personalidade do candidato, sem render votos. Foi uma campanha muito mais cara, mas com resultado inferior à do próprio Boulos em 2020, sem falar de Lula e Haddad em 2022.

Diante deste quadro, o que fazer? Não falta quem diga que a esquerda precisa se conectar com o “espírito dos tempos” para assim, pretensamente, voltar a conquistar as massas: empreendedorismo na veia, Jesus no coração, meritocracia na cabeça, punitivismo no fígado. Em suma, capitular ao enquadramento neoliberal e neoconservador que se tornou dominante.

Não creio que isso dê resultado – aliás, tem sido tentado, talvez não da maneira radical que alguns querem, mas ainda assim de forma consistente, com resultados pífios. Para provar, está aí Maria do Rosário, de Porto Alegre, que se esforçou para se reconstruir com um discurso conservador e se tornou outra “favorita” que por um triz não chegou no segundo turno.

De fato, se é para votar num discurso de direita, melhor escolher logo um candidato de direita, que o encarna com muito mais credibilidade.

Mas, como escreveu certa vez Gramsci: “A história ensina, mas não tem alunos”. Parece que estamos fadados a repetir, a cada vez, os mesmos erros.

A resposta oposta é que é necessário um discurso mais à esquerda, capaz de reativar os valores que definem nosso horizonte – igualdade, solidariedade, emancipação – e que seriam capazes de acordar uma base social latente.

Simpatizo mais com esta percepção, mas julgo que ainda é insuficiente.

A crise do discurso eleitoral da esquerda é só um sintoma. A raiz do problema está na própria centralidade absoluta conferida ao embate eleitoral, como se nós acreditássemos de fato no discurso que a democracia eleitoral apresenta sobre si mesma – de que o voto popular decide o exercício do poder e as “regras do jogo” imperam igualmente para todos.

A burguesia não acredita nisso, nem as igrejas, nem os meios de comunicação ou as big techs, nem os militares…

A grande armadilha da democracia eleitoral, aquilo que a transforma num instrumento muito mais de manutenção da ordem do que transformação radical da sociedade, é a redução do horizonte da política à conquista de votos. O eleitoralismo faz com que a única coisa que importe seja obter o melhor resultado na eleição que está chegando. Com isso, não existe possibilidade de acúmulo, não existe estímulo para a desconstrução das representações hegemônicas do mundo social. Sempre é mais proveitoso remar a favor da correnteza, mesmo que essa correnteza seja conservadora, individualista, contrária aos interesses dos trabalhadores e dos grupos dominados em geral.

No Brasil, isto é acentuado pela urgência – real – de combater o bolsonarismo. Em nome desse combate, o discurso político da esquerda é sempre rebaixado. Temos que chegar no eleitor de “centro”, temos que cuidar para não assustar o evangélico conservador ou aquele que é vítima do discurso do empreendedorismo ou aquele que foi doutrinado nos valores da família tradicional e assim por diante.

O enfrentamento é sempre adiado para um próximo momento, mas esse momento obviamente nunca vem, porque temos uma eleição após a outra.

Não há nunca um momento para educação política, para a disputa, para a elevação da consciência. É só adaptação, acomodação, capitulação. E daí na eleição seguinte vamos ter que recuar ainda mais, até porque, se tem uma coisa que a direita está fazendo hoje, é a desconstrução de todos os valores ético-políticos que um dia a gente achou que tinha conseguido firmar minimamente.

O objetivo da esquerda não é ganhar eleições. É mudar o mundo. Ganhar eleição pode ser um instrumento, nunca uma finalidade.

Enquanto o momento eleitoral não for enquadrado como parte de uma estratégia política mais ampla, isto é, entendido como parte de uma luta que não se reduz à manutenção ou obtenção de mandatos, a esquerda não será capaz de obter qualquer vitória sólida.

Luis Felipe Miguel é doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), professor titular livre do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB) e pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Autor, entre outros livros, de Democracia e representação: territórios em disputa (Editora Unesp, 2014), Dominação e resistência: desafios para uma política emancipatória (Boitempo, 2018), O colapso da democracia no Brasil (Expressão Popular, 2019) e Marxismo e política: modos de usar (Boitempo, 2024). Também é coautor, junto com Flávia Biroli, de Feminismo e política: uma introdução (Boitempo, 2014). Colaborou com o livro de intervenção O ódio como política: a reinvenção das direitas no Brasil (Boitempo, 2018).

A opinião do/a/s autor/a/s não representa necessariamente a opinião de Desacato.info.

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