Outro domingo sangrento

 Por Fernando Evangelista*.

– Que dia é hoje? – perguntei.

– Domingo, 13 de agosto – respondeu Matt, fotógrafo e parceiro de reportagem. Por quê?

– Por nada.

Eu tinha perguntado por perguntar: 13 de agosto de 2006. Domingo.

Estávamos em Beirute, capital do Líbano, sobre os escombros do Hassam Buildings, um condomínio de seis prédios, cada qual com doze andares. O Exército israelense havia destruído não só o condomínio, mas a parte sul da capital, região de predominância xiita, sob forte influência do Hezbollah.

Poucos homens, visivelmente exaustos, porém decididos, cavavam em busca de sobreviventes. Quantas pessoas estão soterradas? Ninguém tinha ideia, mas eu sabia – todos sabiam – que os mortos eram civis em sua maioria.

Todos sabiam, ainda, do iminente cessar-fogo. A guerra estava no fim e o ataque daquele domingo, naquelas proporções, parecia não ter nenhum objetivo estratégico ou, pelo menos, nenhuma justificativa plausível, se é que existem justificativas plausíveis para o assassinato de civis.

– Hoje é domingo e eu deveria estar deitado no sofá da minha casa, assistindo a uma corrida de MotoGP – disse Matt, entre uma foto e outra.

– Eu queria uma rede, uma sombra e um pouquinho de água fresca.

A temperatura chegava aos 40 graus, sem nenhuma brisa. Aos poucos, apareceram curiosos e voluntários e alguém perguntou quem eu era e para quem trabalhava, fez as perguntas de sempre e eu estava dando as respostas de sempre, quando ouvi um grito, seguido de outros tantos. As pessoas correram desordenadamente. Eu corri junto.

– O que está acontecendo? berrei para alguém ao meu lado e teria preferido não ouvir a resposta.

– Está vindo um avião!

Outro avião israelense? Mais bombas? Correr, não pensar, correr, não desistir. Correr sem parar, correr para qualquer canto bem longe dali.

Nos primeiros dias da guerra, eu havia ficado preso no elevador do Ministério da Informação e permaneci uma hora em pânico, temendo que o prédio fosse atingido por uma bomba. Mas tive uma recompensa imediata: recebi a promessa de uma entrevista exclusiva com Fouad Siniora, Primeiro Ministro libanês. A entrevista, infelizmente, jamais aconteceu porque o homem que me garantiu o encontro escafedeu-se e nunca mais foi localizado.

Embora sem as promessas de entrevistas exclusivas, desta vez eu não estava preso num elevador, o que numa rápida análise da situação me pareceu uma grande coisa. Correr, não pensar. Correr até ser traído pelo fôlego e então você para, olha as pessoas à sua frente, já bem distantes, olha para trás, não vê mais ninguém e tem a nítida sensação de que a bomba, lançada de um avião ou de um navio, vai cair bem onde você está.

O que estou fazendo nesta cidade? – foi a outra reflexão que consegui elaborar. Sempre fui fascinado por Beirute, pelos seus mistérios e suas armadilhas à beira do Mediterrâneo

. Beirute dos xiitas, sunitas, drusos e cristãos maronitas. Beirute da linha verde, avenida no centro da capital, que separa cada grupo no seu devido lugar. Não há muros, mas os territórios são bem visíveis, da mesma maneira que ainda são visíveis as marcas da guerra civil que, de 1975 a 1989, deixou 150 mil mortos.

Também daqueles anos, as lembranças do assassinato de 241 fuzileiros navais norte-americanos, da ocupação israelense, dos massacres de Sabra e Shatila, da Milícia Falangista e de outros 38 grupos armados que agiam na cidade.

Beirute do Commodore Hotel, onde ficou a trupe de jornalistas estrangeiros durante a guerra civil e que tinha na recepção um cartaz avisando: “em caso de tiroteio nas dependências do hotel, a administração insiste para que operadores de câmera de televisão e fotógrafos não procurem registrar os incidentes”.

Eu sempre quis conhecer Beirute, mas ali, correndo sem saber para onde, com medo de bombas lançadas por aviões, tive a sensação de que eu deveria ter vindo em outra data. O que fazer?

Você espera. Espera e vê que as pessoas começam a voltar porque o avião passou, mas não jogou nenhuma bomba. Não desta vez. Matt, eu soube depois, não correu. Ficou onde estava, à espreita da “grande foto”.

O trabalho de escavação foi retomado no mesmo ritmo, na mesma aparente monotonia sem esperança, até que entre a poeira e o concreto surgiu parte de um corpo. Primeiro, o que se via era uma orelha, depois o cabelo e um pouquinho do rosto.

Era uma menina de uns dez anos e estava vestindo um agasalho preto e uma camiseta da mesma cor. Tinha os cabelos longos, escuros, amarrados por um elástico branco. Quando os homens a colocaram sobre a maca, vi um ferimento profundo no seu pé esquerdo e descobri, horrorizado, que metade de seu rosto não existia mais.

A partir daquele domingo, o rosto desfigurado da menina libanesa seria, para mim, a imagem da guerra. E enquanto outros vinte corpos eram encontrados sob os escombros do Hassam Buildings, o Conselho de Segurança da ONU chegava a um acordo sobre a resolução que impôs um cessar-fogo.

Hezbollah e Israel interromperam o conflito que durou 34 dias e deixou mais de 1.200 civis libaneses mortos, sendo que 355 eram crianças. Do lado israelense morreram 157 pessoas, entre civis e militares. A guerra terminou, oficialmente, às 8 horas do dia 14 de agosto. Um dia depois do ataque ao Hassam Buildings.

*Fernando Evangelista é jornalista, mantém a coluna Revoltas Cotidianas, publicada toda terça-feira. Com a jornalista Juliana Kroeger, co-dirigiu o documentário Fibra, vencedor do Prêmio Júri Oficial de Melhor Filme na Mostra Catarinense do FAM, festival de cinema do Mercosul, encerrado na sexta-feira passada. Fibra ganhou ainda o Prêmio Itapema FM de melhor filme.

Veja o trailer: http://vimeo.com/35545111

Fotos do Líbano: Matt Corner (http://mattcorner.photoshelter.com/gallery-list)

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