“Quem sente a dor não esquece”: em carta, comunidade de Nhanderu Marangatu narra histórico de violações e luta

Carta foi entregue em audiência de conciliação do STF, na qual comunidade Guarani Kaiowá teve seu direito territorial condicionado a pagamento de indenização a fazendeiros

Comunidade Nhanderu Marangatu em ato momentos antes da audiência de conciliação no STF. Foto: Maiara Dourado/Cimi

Assessoria de Comunicação do Cimi.- Na última quarta-feira (25), a comunidade Guarani Kaiowá da Terra Indígena (TI) Nhanderu Marangatu foi intimada judicialmente a comparecer em uma audiência de conciliação convocada, a pedido da União, pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

A sessão resultou em um acordo para saída dos fazendeiros ocupantes do território tradicional Nhanderu Marangatu. Para isso, foi negociado pela União, pelo estado de Mato Grosso do Sul e o grupo de fazendeiros, uma indenização de R$ 146 milhões a serem pagos pelas benfeitorias e pela terra nua das propriedades.

A indenização foi o que condicionou o cumprimento constitucional do Estado de restaurar o decreto de homologação da TI Nhanderu Marangatu, suspenso desde 2005, pelo então ministro Nelson Jobim.

“O gado chegou e foi nos expulsando, destruíram nossos alimentos e remédios sagrados e tudo virou pasto”

O acordo, no entanto, evidencia o que há muito o povo Guarani Kaiowá afirmava: Nhanderu Marangatu sempre foi terra indígena e os fazendeiros sempre foram invasores. Algo que a comunidade de Nhanderu Marangatu reafirmou em carta entregue, na ocasião da audiência, ao ministro Gilmar Mendes.

Na carta, os indígenas narram a saga de expulsão e violência por eles sofridas e o sentido da luta e resistência por seu território.

“Eles começaram a dizer que aquelas terras eram deles. O gado chegou e foi nos expulsando, destruíram nossos alimentos e remédios sagrados e tudo virou pasto. O que era antes mandioca, avati e mbacucu deu lugar ao colonhão. Nos expulsaram incontáveis vezes, gente nossa foi morta. Nunca esqueceremos, quem sente a dor não esquece”, relata a comunidade na carta.

“Queremos a terra por inteiro, sentir, criar nossos filhos em paz. Já tem um histórico de muita violência, não aguentamos mais”

No documento, a comunidade Guarani Kaiowá também pediu a devolução de suas terras e a resolução do conflito a eles imposto.

“Queremos a terra por inteiro, sentir, criar nossos filhos em paz. Já tem um histórico de muita violência, não aguentamos mais. Está insustentável viver esta vida, nos preocupa muito a vida dos jovens de hoje, vícios e alcoolismo que não é nosso, vocês que trouxeram isso para nós, essa luta pela terra”.

Confira a carta na íntegra:

Carta dos Kaiowá de Ñande Ru Marangatu ao Ministro Gilmar Mendes

No tempo em que só existia Ñande Ru Vusu, Nosso Pai Maior e sua família, Ele pisou a terra e com a sua dança e canto a expandiu, criando, pela força de seus pés e amor inicial, os corpos de todos os seres, nossos corpos e tudo que conhecemos. O local desta dança é para nós o Centro do Mundo, o Jasuka renda, local que vocês conhecem como cerro Guaçu. Desde lá o Criador em seu oguatá formou morros, como o cerro kora e o nosso cerro marangatu, rios, como os nossos Apa e Estrelão, lagos, animais e plantas e tudo o que conhecemos. O Criador nos fez para cuidar destes lugares, embelezá-los e promover, através do seu canto e dança que nos foi ensinado, a harmonia entre todos os seres vivos e os espirituais. Pelo canto negociamos o bem para todos, inclusive para vocês. A todos eles instituiu seres que são seus protetores, que se apresentam a nós como Jara. É com eles que somos e existimos nas relações que protegem toda a vida.

Ñande Ru Marangatu, Nosso Pai Sagrado, fez-se existir neste território que vocês dividiram por fronteiras e que ainda hoje lutamos para poder cuidar dele por completo. Ele não pertence a nós, somos nós que pertencemos a ele. Nos fez habitar desde nossos avós, dos avós de nossos avós para protegê-los. Eles igualmente protegem e guardam seres espirituais dos quais necessitamos e cuidamos através de cantos que só a nós foi revelado pelo Criador. Tudo isso está dentro da nossa terra e muitos parentes de outros morros distantes, longe, vem caminhar sobre a proteção de Ñande Ru Marangatu. Quando podíamos andar livremente e a sombra de Marangatu tocava a terra, todo Kaiowá que passava em sua frente tinha que fazer uma reza específica. Temos que rezar para passar na frente do marangatu. Essa nossa necessidade está cada vez mais ameaçada. Os jovens que não tiveram mais acesso ao Maragantu não praticam e toda a judiação que passamos tem haver com isso. Sofremos muito!

Temos medo porque alguns de nossos adultos e principalmente os jovens já não conseguem mais fazer a reza e toda a divindade que lá habita está padecendo. Precisamos rezar no Marangatu do contrário o mundo pode acabar para nós.

Sabemos que até 1950, não tinha este problema e quase não havia karai, vocês não-índio, na nossa região e os que chegavam, comiam da nossa comida, bebiam da nossa água, dormiam sob a nossa fogueira e proteção. Mas então eles começaram a dizer que as terras eram deles, que o governo havia dado. Mas nossas lideranças também pediram a terra. O SPI sabia que as terras eram nossas, que elas foram divididas depois de vocês colocarem um muro que não conseguimos ver, separando nossa terra e nossas famílias. Conhecemos cada parte do marangatu pelo nomes que o Criador nos revelou, são nomes antigos, alguns compartilhamos com vocês e dão nome até hoje a vários lugares, inclusive lugares que nossas comunidades já foram expulsas, mortas.

Entendam, já faz algum tempo que nosso povo estuda seus estudos e entende muito bem o que é Brasil e Paraguai, também a divisa que vocês colocaram. Mas nós também sabemos que somos um povo que foi dividido por vocês e agora vocês ficam nos acusando conforme seus interesses de sermos paraguaios quando é aqui e de brasileiros quando é lá, mas na verdade nós somos todos e todas Ava, gente de verdade. Assim, antes de sermos brasileiros ou paraguaios, nós somos Ava. Nossas famílias vivem dos dois lados que vocês inventaram e nos impuseram. Nós somos Kaiowá, nós somos Pa?-tavyterã, este é o nosso nome sagrado, dado pelo Nosso Pai Criador. Sempre fomos! Foi a guerra de vocês que nos trouxe essa divisão. Então não existe índio do Paraguai ou do Brasil, existe nós, os Ava como povos autênticos que habitam estas terras muito antes de qualquer um chegar. Milton Corrêa e Pio Silva, que vieram lá de Minas Gerais, foi quem trouxe a violência contra nós. Como uma paulista vai querer pegar nossa terra? Eles não conhecem o rio, não conhecem os morros, não sabem os nomes, eles não sabiam nada da nossa terra. Foi nós que ensinamos o que eles sabem. Uma pessoa veio de longe e quer a nossa terra? Isso a gente não consegue entender. Nos resta resistir, até o fim. Nosso Pai Sagrado nos ordenou! Nós somos o que somos, um povo, e exigimos respeito!

E isso aconteceu quando eles começaram a dizer que aquelas terras eram deles. O gado chegou e foi nos expulsando, destruíram nossos alimentos e remédios sagrados e tudo virou pasto. O que era antes mandioca, avati e mbacucu deu lugar ao colonhão. Nos expulsaram incontáveis vezes, gente nossa foi morta. Nunca esqueceremos, quem sente a dor não esquece. Mas não saímos totalmente, resistimos e permanecemos onde pertencemos. Até a chegada destes Correas e Silva a gente produzia muito, inclusive vendia o que sobrava, a coisa mudou quando tentaram tirar nossa terra. Hoje a maioria do nosso povo depende de cestas, e isso tem nos matado pouco a pouco.

A raiz está plantada lá, nunca saiu e mesmo impedidos de conviver com os seres de nossos lugares, o fizemos escondido, sofrendo ameaças e sendo mortos. Manoel Silva, nosso ancestral rezador foi morto e o enterramos no que antes era a sede da fazenda deles, próximo ao mborevi, e que eles chamam de fazenda. O trator foi lá e destruiu tudo. Mudaram a sede do local. Pio e Dácio eram pequenos neste tempo. Quando nos expulsaram fomos nos esconder em Guapoy’rapo (Campestre), também em pysyry e vários outros lugares, mas não longe do nosso sagrado. Porque ele nos chama e temos que atendê-lo. Orico Soares, torturaram muito, judiaram dele e jogaram seu corpo e a bicicleta no rio Estrelão. Nosso ancião Ciriaco Ribeiro e toda sua família foi expulsa pela família do Pio Silva e seus kueras, também Milton Corrêa, que veio lá de Minas Gerais e expulsou todo mundo. Nosso povo tem muitas histórias desse tempo, muita dor e morte.

Queremos a terra por inteiro, sentir, criar nossos filhos em paz. Já tem um histórico de muita violência, não aguentamos mais. Está insustentável viver esta vida, nos preocupa muito a vida dos jovens de hoje, vícios e alcoolismo que não é nosso, vocês que trouxeram isso para nós, essa luta pela terra. As crianças têm um sonho e vamos estar bem só quando a terra estiver sendo cuidada só por nós. Assim é nosso modo das crianças crescerem felizes. Vamos fazer tudo florir de novo e todos os seres irão voltar.

Lá vai ter nova criança, novo jovem, nova família junto com todos os seres que foram expulsos de lá. Vamos trazer todo mundo de novo. Os jaras estão soltos, vagando sem seus pares da terra, as plantas, árvores e animais que já não existem para abrigá-los.

Só que quando vamos lutar por tudo isso, somos mortos. Somos obrigados a morrer pela terra. Então se isso é necessário, nós vamos morrer. Essa é a melhor saída para nós, morrer na terra, porque é a ela que nós pertencemos.

Se o presidente tem terras, se o governador do MS tem terras, então que dê a estes que nos invadiram, que estão destruindo nosso teko marangatu, e os tirem de uma vez por todas de nosso tekoha. A terra é o sustento de tudo para nosso mundo, o Criador fez a terra para compartilhar com todos, ninguém pode dizer: Esse quadrado é só meu! Todos voltamos para a terra. A terra é o principal para nós. Sem ela não somos nada, não temos vida, cultura, história, é nela que negociamos toda nossa vida, por isso nós somos a terra.

Hoje recuperamos quase toda a nossa terra, falta só um pouco onde nosso guerreiro foi morto, Neri Ramos. Ali a fazenda já destruiu tudo. Eles tiraram a mata, árvores sagradas foram derrubadas e retiradas de lá escondido. Já não tem mais mata nesta fazenda Barra. Por isso, que quando retomamos nossa terra o que fazemos é retomar nosso ser, nosso modo de ser, teko porã, nosso jeito sagrado de ser, teko marangatu, pois somente por ele é que vamos conseguir salvar as plantas, a mata, as fontes de água, e os jara poderão voltar a habitá-los novamente.

Estamos em quase tudo e já conseguimos depois de muitos anos realizar nosso ritual de passagem dos kunumi. Conseguimos realizar nosso ritual em que os meninos viram Ava e reestabelecem a harmonia com o todos os seres.

Somos chamados por estes protetores espirituais a parar a destruição da mata e permitir que a floresta volte, que os animais voltem. Nós vamos rezar e cuidar dela de novo. Quando vocês irão entender que garantir a nossa vida é garantir a vida de vocês também?

Nosso sagrado nos chama, precisamos cuidar dele, do contrário sofreremos os males, todos nós, vocês brancos também.

Terra Indígena Nhande ru Marangatu, 25 de setembro de 2024

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.