De repente a memória se volta contra o tempo e procura por quem eu era, uma existência de crescimentos, avanços, pausas e recomeços.
Olho para trás e vejo o menino jogando bolita com outros meninos e meninas, que depois, com os anos, nunca mais se teria noticias deles.
Vejo meu pai Henrique aborrecido e doente, mas – também – encontro a mãe Catarina, forte, determinada e profundamente empenhada em cuidar da gente.
Eu vejo minha irmã Roseli e irmão Carlos, crianças ao redor de um fogão de lenha, aquecendo água, um bule de café e cozinhando uma panela de feijão.
Naqueles momentos pouco havia, além de uma casa velha, um pai adoecido e uma mãe que tomava conta de tudo e nos dava de comer.
Ela rezava – tinha uma fé inabalável -, acreditava que Deus daria suporte, segurança e zelaria sempre pelos seus.
Ela trabalhava tanto e, apesar de não possuir um palmo de terra, a tomava emprestada, para plantar pipoca, batata doce, mandioca, amendoins e milho.
Criava galinhas, além delas, sempre tinha um porquinho no chiqueiro e uma vaquinha – a Estrela, que nos fornecia o leite.
Nos domingos, depois da missa, o almoço era uma bela macarronada caseira, regada com o molho de alguma galinha cuidada no terreiro.
Crescíamos, entre muitos amigos – todos pobres e contentes -, como se a pobreza, algum dia, viesse a ofertar-lhes todas as boas aventuranças.
Íamos à escola de uniforme, carregávamos o caderno, lápis e borracha numa sacola feita da embalagem de arroz.
A felicidade se comunicava entre as pessoas humildes e sonhadoras, porque elas se abriam para o amanhã.
Sobreveio a doença na mãe, embora antes, o médico já havia desenganado o pai e, precocemente, o tempo deles esgotou.
Ficamos sós, mas as outras irmãs – do primeiro casamento do pai, Edy, Matilde e Lina -, nos levaram, cada qual para um lado.
Não sentiríamos mais os perfumes do jardim e do quintal que a mãe cuidava com tanto carinho e tão pouco teríamos aquele almoço de domingo.
Eu não jogo mais bolitas, minha irmã e irmão partilham alegrias, a vida ofereceu-lhes amores no caminho, Júlia, Amanda e Ana.
Tornei-me missionário indigenista no Cimi, convivo com povos originários, que seguem em movimentos de resistência por dentro das adversidades tensas e violentas.
Eu, apesar do tempo que andou apressado, percebo que a felicidade caminha pelo percurso compartilhado entre os amores mais sublimes.
Amores do cotidiano, nas boas e más horas, no lazer, nas lutas, no lar e na família, entre Iara, Camila e eu.
E me pergunto, pra onde foi o tempo – o meu tempo – de idas e vindas, de sonhos, risos, perdas, lágrimas e conquistas?
Concluo que o meu tempo foi constituído naquilo que me tornei, mesmo diante das nostalgias, ele segue por dentro de tudo que vivemos e somos.
O tempo não apaga as memórias, que me fazem visitar os que já se foram e aqueles que permanecem tecendo laços de vida.
Porto Alegre (RS), 17 de setembro de 2024.
Roberto Antônio Liebgott é Missionário do Conselho Indigenista Missionário/CIMI. Formado em Filosofia e Direito.