Os Estados Unidos acabaram de tomar medidas com vistas a impedir que o canal televisivo russo RT continue chegando ao público estadunidense, assim como aos dos países sob sua influência geopolítica.
A alegação esgrimida para justificar este flagrante ato de censura é que a atividade jornalística desenvolvida por RT está a serviço da política da Federação Russa, uma vez que tem conseguido impedir que a visão geopolítica cultivada pelo establishment estadunidense se faça valer da maneira como seus promotores gostariam que ocorresse.
Devo dizer que, no que diz respeito ao principal motivo alegado para bloquear o sinal de RT, é impossível não reconhecer que os ideólogos dos Estados Unidos estão totalmente corretos. Basta fazer um pequeno teste prático dedicando-se a sintonizar as emissões de RT por um determinado período de tempo e confrontar o conteúdo e as formas de difusão observados com aquilo que os meios identificados com o “American way of thinking” transmitiram no mesmo intervalo de tempo.
De fato, quase que tão somente aqueles que já estavam plenamente ideologicamente ganhos pela visão política das classes dominantes afinadas com o capitalismo made in the U.S.A. serão capazes de se manterem incólumes em seus posicionamentos após terem sido expostos a essa outra maneira de ver os acontecimentos do mundo.
Mais especificamente, as autoridades estadunidenses se queixam de que sua visão sobre o conflito na Ucrânia tem sofrido enormes entraves para se impor, mormente em função da narrativa contraposta oferecida através de RT. Sendo assim, está mais do que comprovado que os que defendem a continuidade da hegemonia dos Estados Unidos no mundo estão cobertos de razão para estarem preocupados.
Porém, o que é mais curioso em toda esta história é que os Estados Unidos pretendem ser tidos como os paladinos da defesa da liberdade de expressão no mundo. Por isso, sempre que algum governo de alguma nação toma alguma medida que interfira com as práticas de seus grandes oligopólios midiáticos, eles se levantam de imediato para tachar a quem assim agiu de ser um censurador infame e inimigo da liberdade de expressão. Em consequência, buscam validar sua condenação internacional através de fortes campanhas de desprestígio.
Para ilustrar o que mencionamos no parágrafo anterior, podemos trazer à tona o recente caso em que o Judiciário brasileiro ordenou o bloqueio em nosso país das transmissões da plataforma X (ex-Twitter), de propriedade do multibilionário de nacionalidade estadunidense Elon Musk, por sua recusa em cumprir com as determinações da legislação brasileira. Em tal oportunidade, os defensores da “liberdade de expressão” a la Estados Unidos não vacilaram em botar a boca no trombone para acusar o responsável por tomar essa decisão de censurador e violador dos direitos de expressão, ou seja um ditador.
De todos esses acontecimentos, deveríamos extrair uma lição muito valiosa. A de que, em um mundo composto por classes com interesses confrontantes, a liberdade de expressão, assim como a liberdade de modo geral, depende essencialmente dos embates travados no processo de luta de classes.
É que cada classe social apenas aceita, valoriza, respeita e defende voluntariamente aqueles aspectos da liberdade de expressão que não firam suas aspirações e seus interesses maiores, ou seja, que não ponham em risco aquilo que a classe em questão considere como justo e desejável para si. Quando assim não ocorrer, a difusão de mensagens e ideias que ameacem suas estruturas só será tolerada se a correlação de forças na sociedade em questão não lhe possibilitar seu bloqueio.
Não devemos nutrir nenhuma ilusão com respeito ao que será ou não permitido ao campo popular no tocante à liberdade de expressão. Nada do que existe em termos de comunicação em favor das classes trabalhadoras em nosso país e em todos os demais países capitalistas advém de concessões voluntárias dos grupos dominantes. Só por meio de sua permanente e incansável luta ao longo do tempo, os trabalhadores do Brasil e do resto do mundo foram ganhando condições para fazer com que algumas de suas reivindicações viessem a ser respeitadas. É o que se dá, evidentemente, na questão da liberdade de expressão em sociedades de classes antagônicas.
Não nos resta a mínima dúvida de que a liberdade de expressão plena é o ambiente mais favorável para que as forças populares possam travar suas lutas dentro do capitalismo. Mas, de nenhuma maneira deveríamos entender isso como nos obrigando a sair em defesa da liberdade de expressão dos grandes conglomerados dos oligopólios midiáticos. Cabe aos trabalhadores lutar e zelar pelos direitos de livre expressão para os próprios trabalhadores, e nunca para seus grandes opressores. Portanto, considero equivocada a ideia de que deveríamos ter condenado, por exemplo, a limitação imposta à máquina mundial do fascismo representada por X de Elon Musk, para evitar criar condições para que medidas similares sejam aplicadas contra nós no futuro.
Estou mais do que convencido de que o grande capital e seus agentes nunca vão precisar de nenhum precedente para justificar que se aplique contra as organizações populares algum golpe de força. Tudo o que eles vão precisar para tal é que a correlação de forças no citado momento lhes viabilize a movimentação em tal sentido. As justificativas e explicações para que normalizem e tornem aceitável a situação serão encontradas e usadas em conformidade com as circunstâncias da ocasião.
Em meu entender, a maior e única garantia para que não sejamos alvos de limitações em termos de liberdade de expressão será conquistada através da intensificação do nível de organização e de conscientização de nosso povo, aprofundando nossa inserção junto ao mesmo, para que sejam as massas populares o grande fator que nos venha a prestar solidariedade ativa em nossa defesa no caso de que sejamos ameaçados.
Jair de Souza é economista formado pela UFRJ; mestre em linguística também pela UFRJ.
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