Quando viveremos em um mundo de respeito para todos? Por Francis Guimarães.

Por Francis Guimarães.

Estou vivendo em uma nova cidade, em um novo estado, e estou conhecendo novos ambientes e realidades. No entanto, os desafios permanecem os mesmos: o preconceito, a discriminação e o capacitismo estão presentes em todos os lugares.

Caminhamos tentando acreditar que estamos indo em direção a um mundo mais justo, respeitoso e compreensivo em relação à diversidade humana. No entanto, ao nos depararmos com certos dissabores, percebemos que ainda estamos longe desse ideal.

Ainda temos um longo caminho a percorrer.

Aqui na cidade de Criciúma, no estado de Santa Catarina, é incontestável que existem aspectos positivos relacionados a acessibilidade arquitetônica. As ruas são melhores para caminhar, com pisos táteis de boa qualidade e bem instalados. No entanto, ainda encontramos muitos problemas em relação à acessibilidade. Existem diversos semáforos sonoros espalhados pela cidade, mas infelizmente muitos estão com o áudio desativado. Na região central, encontramos algumas ruas esburacadas e mobiliários urbanos instalados de forma equivocada, o que é bastante prejudicial para todos, mas especialmente para nós, cegos.

Como pessoa cega, o que mais me machuca não é bater a cabeça em um poste, nem mesmo cair em um buraco e sofrer alguns arranhões. Não é a dificuldade de atravessar a movimentada Avenida Centenário, em frente à rodoviária, sem o auxílio de um semáforo sonoro. O que é realmente ruim, péssimo e repugnante é conviver com o capacitismo, a falta de educação, o desrespeito e a desumanidade de algumas pessoas.

Por mais inacreditável que pareça, existem pessoas que querem manter distância de mim simplesmente porque sou uma pessoa cega. Não tenho problema com isso e, de modo algum, desejo ter contato ou proximidade com esse tipo de pessoa. Para mim, são seres indiferentes. Tudo o que eu gostaria é de ser respeitado.

Hoje, minha esposa, nossa filha de 3 anos e eu fomos convidados por um amigo, também cego, para conhecer uma lancheria famosa na cidade, o Daniel Lanches. Ao chegarmos lá, sentamos, fizemos nosso pedido e aguardamos enquanto tomávamos uma cerveja. Quando o lanche chegou e comecei a comer, ouvi um homem na mesa à frente, ao lado esquerdo, fazer um comentário acompanhado de gargalhadas sobre o “ceguinho”.

A gargalhada e o adjetivo “ceguinho” chamaram minha atenção, e comecei a prestar atenção nas asneiras que o homem dizia e nas piadas que fazia sobre mim e minha esposa. “Como que o ceguinho fez um filho?” ele perguntou, seguido de mais risadas. Minha família, meu amigo e eu nos tornamos o assunto central daquele circo.

Obviamente, ele não estava fazendo as piadas sozinho; outras pessoas na mesa riam junto com ele, degustando o prato da ignorância e do capacitismo, embriagados com o drinque da falta de respeito e bom senso.

Sentado na minha mesa, falei:

— Pois é, eu sou o cego palhaço, e eu odeio piadas com a minha cara.

Entre uma risadinha e outra, eles falaram em tom mais baixo.

— É, acho que ele ouviu.

Felizmente, sou apenas cego e tenho minha audição intacta, o que me permitiu ouvir as besteiras que falavam a nosso respeito e impedi-los de continuar.
Quem de nós é responsável por contribuir para um mundo melhor e lutar contra o preconceito? Se, naquele momento, o homem tivesse começado com as gracinhas, as piadas e o show de desrespeito, e os funcionários, garçons ou até mesmo as pessoas da mesa ao lado tivessem dito para ele parar, ou se não tivessem servido de plateia para suas escrotices, ele provavelmente não teria continuado.

No entanto, muitas vezes as pessoas até percebem que é errado, mas como não são diretamente afetadas, preferem participar da piada.

Ao refletir sobre esse tipo de pessoa, chego à conclusão de que elas acreditam estar blindadas contra as possibilidades da condição humana. As deficiências são inerentes à condição humana e, de forma extremamente democrática, podem chegar à porta de qualquer um. Não importa se são pobres, ricos, brancos, pretos, amarelos, gordos ou magros; todos estão sujeitos à cegueira, surdez, deficiência física ou intelectual.
As pessoas que riam e gargalhavam esquecem completamente que também têm um futuro incerto. Será que seus filhos ou netos não podem vir a ter uma deficiência? E se um dia essa fatalidade fizer parte de suas vidas, como reagirão a essas gargalhadas? Como se sentirão sendo o “palhaço” da vez?

Essa falta de respeito não incomoda apenas a mim, que sou cego, mas também se estende à minha filha. Mesmo sendo tão pequena, ela já me questiona sobre por que as pessoas dizem “ceguinho,” por que estão rindo e por que muitas vezes todos olham para nós.
Se nossa presença, por sermos cegos, estava causando curiosidade nesses indivíduos, eles poderiam facilmente fazer uma rápida busca no Google e encontrar no YouTube diversos canais que falam sobre o dia a dia das pessoas cegas.Mas se eles estivessem incomodados por estarmos ali, poderiam simplesmente trocar de mesa, mudar de restaurante ou olhar para o outro lado.

No Brasil, existem 506.000 pessoas cegas. Muitas dessas pessoas, assim como eu, já têm uma vida bem resolvida e compreendem que, infelizmente, precisamos enfrentar essas barreiras. Elas sabem que essa situação configura um crime de discriminação contra a pessoa com deficiência, conforme estabelecido na Lei nº 13.146, que prevê pena de 2 a 5 anos de reclusão e multa.

Por outro lado, há pessoas, especialmente aquelas que perderam a visão há pouco tempo, que estão passando por um processo de adaptação e descobrindo suas capacidades e limites. Situações como essa, protagonizadas por esse grupo de indivíduos, tornam o processo de adaptação e aceitação ainda mais difícil. Quando cenas como essas ocorrem, temos a prova de que a sociedade ainda não está preparada para lidar com a diversidade.
É preciso seguir, é preciso falar, é preciso ser teimoso e incansável. É fundamental mostrar que nós, pessoas cegas ou com outras deficiências, existimos!

Sentado naquela mesa, mesmo com o estômago embrulhado, busquei a calma. Quando minha filha me perguntou: “Pai, por que aquelas pessoas estavam rindo de você?”, eu respondi:

“Estavam rindo, minha filha, porque teu pai é cego. Eles não respeitam quem é diferente e são pessoas que estão paradas no tempo, que não evoluíram. Você, minha filha, está sendo criada para respeitar a todos: pessoas com deficiência ou não, homens, mulheres, ateus, cristãos, judeus, gordos, magros, pretos e brancos. Todos devem ser respeitados.

Tenho a clareza de que não conseguirei mudar o mundo e nem tenho essa pretensão, mas plantarei todas as sementes que eu puder, na esperança de que, quem sabe, futuras gerações encontrem uma realidade melhor.

Professor Francis Guimarães é especialista em Educação Inclusiva
Analista de Qualidade Digital
Criciúma, SC, 31 de julho de 2024

A opinião do/a/s autor/a/s não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.

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