Por Francisco Fernandes Ladeira.
Nos últimos dias, a visita de Vladimir Putin à Coreia do Norte (e seu encontro com o presidente daquele país, Kim Jong-un) foi um dos principais destaques dos noticiários internacionais da grande imprensa brasileira.
Na pauta do encontro, acordos econômicos e militares entre Moscou e Pyongyang, o que, sob o aspecto diplomático, é algo absolutamente normal, haja vista que ambos os Estados sofrem pesadas sanções e boicotes das principais potências imperialistas. Portanto, trata-se de uma questão pragmática, de sobrevivência.
Mas não foi dessa forma que os principais veículos de imprensa brasileiros noticiaram. Como Rússia e Coreia do Norte, apesar de suas contradições internas, são duas das poucas nações que não se curvam aos ditames do imperialismo mundial, logo a representação midiática sobre a reunião entre os presidentes russo e norte-coreano passou pelo tradicional “padrão de manipulação” pró-interesses de Washington e aliados.
Vejamos algumas das principais manchetes: “Acordo entre Coreia do Norte e Rússia tem linguagem forte, detalhes incertos e ‘provocação’ ao Ocidente” (O Globo), “Otan: Pacto entre Rússia e Coreia do Norte mostra alinhamento entre autoritários” (CNN Brasil), “Rússia e Coreia do Norte: A nova ameaça nuclear” (O Antagonista), “Putin tempera visita ao ditador Kim com exercício militar” (Folha de São Paulo), “Parceria de Putin e Kim Jong-un deixa o mundo em estado de alerta” (Veja).
Na manchete do jornal O Globo, observamos uma clara inversão do que ocorre na geopolítica global. Rússia e Coreia do Norte não “provocam” o Ocidente, mas o contrário. Como escrevi no início deste artigo, as duas nações são alvos de pesadas sanções e múltiplos boicotes internacionais. Inclusive, a provocação da Otan (via governo fantoche de Volodymyr Zelensky) foi a causa da invasão russa à vizinha Ucrânia.
Rússia e Coreia do Norte também não são “ameaças nucleares”, como prega O Antagonista. Conforme a história nos mostra, o único programa nuclear que representou (e ainda representa) uma ameaça global é o estadunidense, responsável por lançar bombas atômicas contra as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki.
Já os empregos dos termos “autoritários” e “ditador”, típicos do jornalismo de adjetivação, variam de acordo com o posicionamento de um chefe de Estado no xadrez geopolítico global. Quem é contra os Estados Unidos e companhia é automaticamente “autoritário” e “ditador”. Simples assim! Na Venezuela há eleições periódicas, mas Maduro, por ser “inimigo” do imperialismo, é “ditador” e “autoritário”.
Como a subserviência editorial é marca registrada dos noticiários internacionais da imprensa hegemônica, nada melhor do que colocar os interesses imperialistas como se fossem os mesmos de todo o planeta. Isso se chama “ideologia”. Por isso a revista Veja utiliza um recurso metonímico em seu texto (a parte representando o todo), ao apontar que a parceria Moscou-Pyongyang coloca “o mundo em estado de alerta” (no caso, “mundo” é eufemismo para potências ocidentais).
Por falar em Veja, no último mês de março, um artigo da revista do Grupo Abril trouxe a seguinte manchete: “Rússia usa veto para proteger Coreia do Norte de investigação da ONU”. Nessa linha “dois pesos duas medidas”, é possível afirmar que nunca veremos na grande imprensa brasileira um título de texto como “Estados Unidos usam veto na ONU para proteger o genocídio que Israel faz na Palestina”.
No entanto, foi no Jornal Nacional, numa matéria com pouco mais de dois minutos, que a fábrica de desinformação geopolítica operou com maior eficiência. Recorrendo ao mesmo artifício metonímico citado acima, o âncora William Bonner afirmou: “A comunidade internacional ganhou nesta quarta-feira (19) um motivo adicional de preocupação. Os líderes da Rússia e da Coreia do Norte assinaram um pacto de defesa mútua e cooperação militar”.
Nota-se, aqui, o uso de um termo com forte carga semântica negativa: líderes. Isso remete a um chefe de “bando”, um tipo de organização “selvagem”, anterior ao que conhecemos por “civilização”. Dificilmente vamos constatar em algum veículo de imprensa notícias como “Joe Biden, líder dos Estados Unidos” ou “Emmanuel Macron, líder da França”.
Em sequência, o correspondente internacional Rodrigo Carvalho, diretamente de Londres, emendou: “O ditador norte-coreano Kim Jong-un tratou Vladimir Putin como rei […]. Durante a visita, eles assinaram uma parceria que analistas veem como a mais importante – e preocupante – desde a Guerra Fria”.
Quem são esses analistas? Não são mencionados. Provavelmente são os chamados “especialistas em legitimação”, “estudiosos” que não precisam, necessariamente, dominar uma temática. Basta que concordem com os conteúdos ideológicos difundidos pelos noticiários da grande mídia.
Também o fato de Rodrigo Carvalho estar em Londres diz muito sobre quais interesses os noticiários do Grupo Globo atendem.
Como Kim Jong-un é uma das personalidades da geopolítica mundial mais caricaturadas nos discursos midiáticos não poderia faltar uma ironia no encerramento da matéria do Jornal Nacional: “No fim dessa viagem que deixou o Ocidente em alerta, Putin e Kim se despediram já com saudade”, conclui Rodrigo Carvalho.
Diante dessas linhas editoriais, não por acaso, décadas atrás, Milton Santos já dizia que os grandes grupos de comunicação transmitem uma informação manipulada, que em lugar de esclarecer a geopolítica global, confunde a audiência. Tal realidade ainda é a mesma atualmente. Dito de outro modo, se você quer saber o que se passa no mundo, não é indicado acreditar no que dizem Globo, Veja, Folha de São Paulo e afins.
Francisco Fernandes Ladeira é Licenciado em Geografia pela Universidade Presidente Antônio Carlos (Unipac). Especialista em Ciências Humanas: Brasil, Estado e Sociedade pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Mestre em Geografia pela Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). Doutorando em Geografia pela Universidade Estadual e Campinas (Unicamp).
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